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Pesquisa como educação, realidade como ensino

Carlos Eduardo Soares de Freitas

Eu vou à luta com essa juventude Que não corre da raia a troco de nada

Eu vou no bloco dessa mocidade Que não tá na saudade e constrói

A manhã desejada

(Gonzaguinha)

QUestÃo

É muito comum referir-se à formação universitária de Direito ou aos cursos de bacharelado no Brasil como “ensino jurídico”. Há algum problema com isso? A Lei nº 9.394/96 estabelece as diretrizes e as ba- ses para a educação nacional, e por meio da sua interpretação, é pos- sível analisar se há ou não limite nessa denominação. Trata-se de uma norma que serve de referência para a estruturação do que denomina de educação escolar, que é dividida em dois grupos conforme o seu Artigo 21: “I. Educação básica, formada pela educação infantil, ensi- no fundamental e ensino médio; II. Educação superior”. A expressão

utilizada para a formação universitária refere-se à educação superior, e não ensino, o que nos convoca a uma reflexão em torno das razões do desequilíbrio tendente ao ensino jurídico em desfavor a promoção de práticas de pesquisas nesse campo. E como parte desse desequi- líbrio, é possível identificar, no ensino jurídico, a predominância de métodos que privilegiam o uso de textos doutrinários na formação dos graduandos em relação à exploração de questões interdisciplina- res, de contextos históricos, e de temas sociais relacionados a conflitos na contemporaneidade. Diante desses dois problemas, como pensar a formação jurídica de estudantes integralmente imersos em preocupa- ções reais e de subsistência, como os alunos da turma Eugênio Lyra?

notas soBre edUCaÇÃo JUrÍdiCa e ensino JUrÍdiCo

A Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional se constitui como texto importante para a reflexão proposta. Ela regulamenta o Artigo 207 da Constituição Federal, que estabelece o princípio de indissocia- bilidade entre ensino, pesquisa e extensão. O Artigo 43 da lei elenca a série de finalidades da educação superior em oito incisos e em apenas dois deles há expressado relação com a formação profissional, enquanto que a sugestão da necessidade de criticidade, formação cultural e apro- fundamento do conhecimento estão presentes em todas as finalidades. A educação superior não se propõe, portanto, unicamente à formação de profissionais. Parece-me que esse aspecto já provoca um questiona- mento quanto à adoção da expressão “ensino jurídico”, em detrimento da pouquíssima utilizada “educação jurídica”. Portanto, é a partir da norma que se pode verificar uma imprecisão inicial dessa expressão en- quanto sinônima de toda a formação universitária em Direito.

Por outro lado, percebe-se a presença da pesquisa como prática que constitui a educação superior e a ser estimulada, assim como a extensão. É o que se verifica nos Artigos 43 e 44. Já o Artigo 52 cuida de identificar

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as universidades como “instituições pluridisciplinares” e equalizar a “formação dos quadros profissionais de nível superior” à pesquisa, à ex- tensão e ao “domínio e cultivo do saber humano”. Assim, não há, de maneira explícita na norma, uma predominância do ensino em relação à pesquisa e à extensão, mas sim a necessidade de uma articulação entre essas dimensões que compõem a educação universitária.

A lei dispõe, no mesmo Artigo 52, inciso I, de maneira objetiva, sobre algum conteúdo genérico que deve ser explorado na “produção intelectual institucionalizada”, como “o estudo sistemático dos temas e problemas mais relevantes, tanto do ponto de vista científico e cultural, quanto regional e nacional”.

No propósito de melhor entender o significado do ensino jurídico como parte de algo maior, a educação jurídica, é instrutivo examinar outras normas, como o Decreto nº 5.773, de 2006, que “Dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de institui- ções de educação superior e cursos superiores de graduação e sequen- ciais no sistema federal de ensino”. Ao tratar sobre o regime de trabalho docente, o decreto preserva tempo “para estudos, pesquisa, trabalhos de extensão, planejamento e avaliação” (Artigo 69, parágrafo único)

A pesquisa também foi lembrada pela Portaria nº 1.886, de 30 de dezembro de 1994, que fixou as diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo do curso jurídico, em cujo Artigo 3º consta: “O curso jurídi- co desenvolverá atividades de ensino, pesquisa e extensão interligadas e obrigatórias, [...] de forma a atender às necessidades de formação funda- mental, sócio-política, técnico-jurídica e prática do bacharel em direito”. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), preocupada com a forma- ção profissional e responsável pelo controle e fiscalização da prática dos advogados, baixou a Instrução Normativa nº 01/2008 que, ao tratar de critérios para autorização de cursos de graduação, leva em consideração a “qualidade da organização didático-pedagógica, incluindo ensino, pes- quisa, extensão, estágio e número máximo de alunos por turma” (art.

7º, V). Na mesma linha que as normas aqui mencionadas, há uma equi- valência de preocupações entre ensino, pesquisa e extensão.

Tanto a Portaria nº 1.866/94 quanto a Instrução Normativa da OAB utilizam a expressão “curso jurídico”, no qual se inclui o ensino jurídico. A OAB, responsável pelo exame que habilita egressos dos cur- sos de bacharelado em Direito, possui comissão nacional interna que cuida da “educação jurídica”, do que antes chamava de ensino jurídico. O que se infere, até aqui, é que o ensino jurídico é algo muito mais do domínio do cotidiano das faculdades de Direito do que um signi- ficante preciso para se referir aos cursos de bacharelado em Direito. O que as normas tratam é de um espaço mais amplo, sempre incluin- do pesquisa e extensão, tal qual a Lei de Diretrizes e Bases orienta. Substanciada a crítica ao uso impreciso da expressão ensino jurídico a partir das normas, é necessário conferir se no cotidiano há um ensino jurídico ou uma ampla educação jurídica.

No que diz respeito ao curso de bacharelado em Direito da Universidade doestado da Bahia (UNEB), campus I, o seu projeto pe- dagógico contempla essa amplitude e identifica-se com a preocupação de uma educação jurídica. É neste sentido que Maria de Fátima Noleto (2009, p. 109) afirma:

Assim, o curso de Direito da UNEB constitui-se em um espaço importante para a análise do fenômeno jurídico a partir de questões democráticas relativas à ordem cons- titucional brasileira, ao proporcionar uma formação jurídica capaz de impulsionar rupturas com os cânones clássicos da dogmática jurídica no sentido de atender às demandas dos agentes sociais. Nessa perspectiva, o cur- so tem um forte acento na produção e na socialização do conhecimento jurídico, através de um processo que articule ensino, pesquisa e extensão, insistindo na for- mação voltada para uma atitude ética, crítica e científica

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do bacharel em direito, para atuar, com competência técnico e política na efetivação da justiça social.

No entanto, no cotidiano dos cursos de bacharelado em Direito do país não se ouve falar na expressão “educação jurídica”, já o “ensi- no jurídico” comparece como cristalizado, naturalizado. O por vezes, insuspeito Wikipédia trata esses dois termos como sinônimos ao abor- dar que: “O ensino jurídico ou a educação jurídica é a formação em nível superior para lidar com o fenômeno do Direito”. A referência ao Wikipédia se deve pela aceitação desse site na comunidade acadêmica, incialmente alvo de dúvidas, e depois reconhecido como um termôme- tro de certo senso comum universitário de rasa qualidade.

a PesQUisa CoMo Parte da edUCaÇÃo JUrÍdiCa no Brasil

Mas há uma efetiva importância na utilização de um ou de outro ter- mo, ou na preferência nacional do “ensino jurídico”? Ou, antes disso, a formação jurídica não teria realmente como base exclusiva o ensino? A legislação, ao tratar da educação jurídica, não estaria exagerando em uma área em que deve ser privilegiada a técnica?

Essas questões devem circular bastante entre aqueles que buscam simplificar a formação, em confronto ao que propôs Noleto (2009). Neste sentido, a questão anterior e aparentemente mais simples seria: A formação jurídica deve se limitar à técnica mais fácil? Nesta linha, é possível identificar uma corrente silenciosa, hegemônica e muito pre- sente, que defende uma resposta positiva. Comentando de um outro modo, é possível constatar o predomínio de um tipo de formação: 1) Pautada em leituras pouco aprofundadas; 2) Sistante da realidade e do contexto histórico e social dos educandos; e 3) Fundada inteiramente

no método explicativo, engenhosamente criticado por Jacques Rancière (2005). Vamos tentar compreender esses aspectos.

Assim, são utilizados textos rasos, de autores prestigiados por gran- des editoras, cujos conteúdos normalmente limitam-se a descrições breves sobre algumas teorias, e à defesa de teorias já cristalizadas e he- gemônicas, denominadas de doutrinas, sem qualquer preocupação de perturbar o juízo do leitor e provocá-lo a interrogar o aparente óbvio. Nos estudos baseados em jurisprudências, a matéria é aquela já assenta- da pelos tribunais superiores, com uma orientação de não ser mais ne- cessário o aprofundamento de questões “já resolvidas” pelo judiciário. Com isso, as leituras pouco aprofundadas coisificam conceitos prenhes de ideologias, sem permitir ao aluno que as identifique e as critique. Uma formação que pode tornar o bacharel em Direito apto a ser apro- vado em concursos públicos, mesmo que venha a ser um servidor de péssima qualidade.

A este aspecto, soma-se a completa omissão quanto à realidade. Os estudos resumem a conceitos descontextualizados e em geral anacrôni- cos. É possível encontrar alunos que saibam as características da demo- cracia grega, mas incapazes de uma leitura do que seria a democracia nos tempos atuais. A realidade vivida parece longe dos textos adotados pelo professor que lhe oferece um ensino descomplicado. E com isso, o estudante aprende um direito descompassado à complexidade que en- contra ao sair da sala de aula. No máximo, o ensino será pautado pelas experiências vivenciadas ou conhecidas pelo professor, mas de maneira superficial. E isso, como esclarece Demo (1987, p. 102), não significa um confronto com a realidade: “o empirismo é a metodologia mais simplória, porque acredita no observável. Inevitavelmente é superficial, se aceitarmos a ideia de que a realidade jamais se dá na superfície”.

O ensino jurídico do tipo facilitado é puramente explicativo. Aqui, é fundamental posicionar a explicação como o ato imposto pelo mestre ao aluno como meio de aprendizado, isto é, o mestre explica e o aluno

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aprende. Cada qual com o seu papel. Trata-se de uma tática que não prevê a autonomia do aluno e muito menos a sua emancipação em relação ao mestre e ao conhecimento. (SANTOS, 2003) Os conceitos e definições, assim como as normas e as leis, são explicados para que possam ser facilmente repetidos, sempre a partir da visão do mestre que, por sua vez, repete posicionamentos sem que, necessariamente, se apresentem pensamentos contrários.

Com isso, o ensino simplificado deixa de problematizar questões essenciais para uma livre e criativa reflexão sobre o direito. Neste sen- tido, os exemplos de Roberto Lyra Filho (1999), que alertou para o ca- ráter ideológico no conceito de lei, e Antonio Carlos Wolkmer (2003), ao denunciar como a ideologia está presente no conceito de justiça. A promessa é de que o graduando vítima de um ensino “facilitado” terá uma formação fortemente ideologizada e crente, que será um ba- charel mais técnico do que aquele formado a partir de um paradigma criativo e emancipatório. É muito provável a dificuldade deste bacharel em interpretar a norma, até porque a ele não foi permitido o ambiente para o exercício de interpretação da realidade.

A adoção do termo “ensino jurídico” e o esquecimento da “edu- cação jurídica” revelaria uma tendência à exclusividade de um ensino frágil em sala de aula para uma formação supostamente técnica do ba- charelando em Direito. Isso significaria o sacrifício, por meio da exclu- são, de práticas de pesquisa e de extensão.

Até aqui, vimos que a educação jurídica tem o respeito das normas, mas possivelmente sofre com a tendência de substituí-la por um ensino jurídico não emancipatório e de baixa qualidade. Esse quadro aponta para uma presença insignificante de pesquisas jurídicas no país.

Marcos Nobre (2004) considera que o isolamento do direito em re- lação às ciências sociais e um enfoque que confunde a pesquisa jurídica com a elaboração de pareceres estão entre os motivos que prejudicam a prática da pesquisa em Direito. O autor também aborda o quanto essa

prática tem sido valorizada em países como a Alemanha e os Estados Unidos. Mendes (2010) acompanha a crítica de Nobre e considera que, mesmo nesse cenário, há uma perspectiva de crescimento das pesquisas jurídicas no país.

A pesquisa e a extensão, caso efetivamente ocorram e se bem re- lacionadas com o ensino, permitem que se possa falar em educação superior. No caso dos cursos jurídicos, é preciso uma visão cuidadosa também sobre a qualidade da pesquisa e da extensão. Infelizmente, a pesquisa tem se confundido com a elaboração do trabalho de conclu- são do final do curso, a ser apresentado como monografia ou artigo; e a extensão com o núcleo de prática jurídica.

A prática da pesquisa deve respeitar o que dispõem as normas co- mentadas no início desse escrito, as quais tratam de uma atividade cujo fim é o aprofundamento, com critérios, planejamento e métodos, de um determinado estudo. Neste sentido, o Artigo 43, inciso III, da Lei de Diretrizes e Bases da educação, ao cuidar das finalidades da educa- ção superior, dispõe: “incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimen- to do homem e do meio em que vive”.

Em vista disso, é preciso cautela para não colocar a pesquisa como uma tarefa breve, simples e básica. No caso da área do Direito, cuja pes- quisa ainda está incipiente no Brasil (NOBRE, 2004), o esforço dos cur- sos jurídicos deve se direcionar ao reconhecimento da atividade como necessária, complexa, contínua e de intrínseco diálogo com o ensino e a extensão, no que couber.

Portanto, não se está falando do estudo elementar realizado para a preparação de uma aula ou de um seminário, mas de atividade própria da educação superior, que visa o desenvolvimento da ciência, da tecno- logia e da cultura, e que pode ter financiamento próprio, assim como a extensão e diferente do ensino, como prevê o Artigo 77, parágrafo 2º, da

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Lei nº 9.394/96. Como base para essa atividade, os cursos jurídicos con- tam com componentes curriculares específicos, como a Metodologia da pesquisa − com pequenas variações na denominação, a depender das instituições de ensino superior − em que docentes e discentes dis- cutem, aprimoram e elaboram projetos de pesquisas.

Horácio Wanderlei Rodrigues (2006) percebe, com cuidado, que a partir da obrigatoriedade da disciplina Metodologia e do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), houve uma maior preocupação em torno da pesquisa. É que assim como o ensino pode cair em um ambiente sem criticidade e nulo de criatividade, a pesquisa pode se limitar a uma tarefa meramente formal e sem qualidade. Para isso, ele nos chama a atenção sobre a potencialidade da pesquisa a ser desenvolvida no direi- to e o que se deve evitar para não a empobrecer:

Na pesquisa jurídica a hipótese é sempre confirmada, porque em Direito não de descobre, se justifica. E isso não é pesquisa científica; mas é a pesquisa que tem sentido para o mundo do Direito. Entretanto é exata- mente aquela que não é trabalhada nas disciplinas de Metodologia da Pesquisa. (RODRIGUES, 2006, p. 13)

As contribuições de Rodrigues pautam-se em sua preocupação em assentar um ambiente favorável à pesquisa em direito no Brasil. Há uma quantidade crescente de trabalhos apresentados em congressos e seminários, mesmo considerando que parte desses eventos se situam na lógica do mercado editorialista e de cursos privados de curta dura- ção, setor que, em geral, se posta indiferente às pesquisas aprofundadas e de qualidade. Contudo, esse crescimento ainda não alcança um pata- mar satisfatório. (NOBRE, 2004)

Após os alertas do que não seria a pesquisa, para uma compreensão de o que aqui se afigura como pesquisa, ainda contamos com a reflexão de Rodrigues (2006, p. 9):

A pesquisa é hoje a forma privilegiada de produção de conhecimento. Inclui a busca do e o acesso ao conheci- mento já produzido, sua organização e sistematização e, quando se tratar de pesquisa científica, a produção de co- nhecimento novo. A pesquisa se constitui, portanto, em um processo específico de apropriação e de produção do conhecimento, exigindo, para a sua adequada efetivação, a aquisição de habilidades e competências próprias e a utilização de métodos e técnicas pertinentes.

E com as provocações de Demo (1987, p. 23):

Pesquisa é a atividade científica pela qual descobri- mos a realidade. Partimos do pressuposto de que a realidade não se desvenda na superfície, não é o que aparenta à primeira vista. Ademais, nossos esquemas explicativos nunca esgotam a realidade, porque esta é mais exuberante que aqueles.[...] Não combatemos a especulação, porque a divagação teórica pode ter faces criativas e constituir-se em exercício de reflexão válido. Combatemos somente a especulação pela especulação, que é viver no mundo da lua, como se a realidade fosse um jogo de ideias.

Ao relacionar a pesquisa com a realidade, Demo chega a uma in- terseção fundamental para a discussão proposta neste texto. A pesqui- sa nas ciências sociais, assim como a extensão, vincula-se à realidade e auxilia o ensino dando-lhe subsídios, argumentos e aproximações com o contexto histórico e social. A mediação do estudo teórico e o pensa- mento abstrato complementam esse conjunto de elementos essenciais para a pesquisa:

A falta de um quadro teórico de referência traduz ime- diatamente um traço típico da mediocridade científica, porque a pessoa não dispõe de material de discussão,

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seja retirado de outros autores, seja proposto por si mesma. A teoria faz mal somente quando se encerra em si mesma e passa a ser um castelo do ar. Pode ser, por exemplo, o caso de alguém que pratica a docência sem pesquisa. Se pensarmos bem, não se tem nada a ensinar, se não tivermos construído algo através da pesquisa, não existindo a pesquisa, o professor torna-se um mero re- petidor de textos e de ideias dos outros. Conta para os alunos o que leu por aí, será somente um transmissor de conhecimentos, não é propriamente um cientista, ou seja, um construtor do saber. (DEMO, 1987, p. 24)

a tUrMa eUGÊnio lYra e as ContradiÇÕes QUe ela ProvoCa

Diante das críticas até aqui elaboradas ao ensino jurídico, analisemos a turma Eugênio Lyra. As peculiaridades são muitas. Uma primeira se re- fere à composição da turma. Os estudantes são, todos eles, vivenciados de conflitos e violências, as quais experimentaram com algum grau de ativismo de resistência contra situações de desigualdades. Um público cantado por Gonzaguinha: “aquele que sabe o sufoco de um jogo tão duro”, e em assim sendo, não lhe faltaria a realidade, já que ela, de tão dura, justificou a própria existência do curso e da turma. Tem-se, então, uma primeira diferença em relação aos cursos em geral: com alunos tão embebidos dos seus próprios contextos, não lhes caberia um ensino que não o pautado nas realidades vividas. É aí que se revela um desafio para o professor: posto em cheque o seu papel de explicador (RANCIÈRE, 2005), vê diante de si a oportunidade de uma emancipação mútua, do aluno e dele próprio. Essa é uma segunda peculiaridade, pois ao pro- fessor caberá buscar espaços, nas mentes curiosas dos estudantes, para abstrações em meio à rudeza da vida e, em paralelo, o docente poderá

fugir do papel de explicador e se colocar também no lugar de quem reflete como, talvez, um aprendiz.

O interesse dos estudantes parece dirigir-se à defesa de sujeitos co- letivos de direito: os assentados, os acampados, os quilombolas, os atin- gidos por barragens, as comunidades tradicionais e de fundo de pastos. Logo pode ser identificada outra diferença em relação aos seus cole- gas dos cursos tradicionais, cujo anseio maior direciona-se, em geral e às vezes unicamente, a um melhor posicionamento individual após a conclusão da graduação. Considerada essa hipótese, revelar-se-ia a hegemonia da ideologia liberal em cursos onde deveria predominar a sensação de revolta e de indignidade frente a desigualdades e injustiças sociais, econômicas, políticas.

Assim, os estudantes da turma Eugênio Lyra oferecem aos seus do- centes uma curiosidade genuína. Eles estão prontos a tentar compreen-