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Pesquisa com crianças e sua importância para a qualidade no atendimento na Educação Infantil

A palavra infante, etimologicamente, significa “aquele que não fala”, associada à falta, à ausência, inscrita no marco de uma incapacidade. Por isso, como ressalta Kohan (2008), a etimologia latina da palavra “infância” reúne as crianças aos não habilitados, aos incapazes, aos deficientes, ou seja, a toda uma categoria de pessoas que são encai- xadas na perspectiva do que lhes “falta”, sendo assim excluídas da ordem social. Por essas razões, a infância ficou de fora da participação ativa na vida social, como os defi- cientes, estrangeiros, ignorantes e tantos outros faltosos.

A exclusão da infância da palavra e das instituições é bastante antiga e remonta, pelo menos, aos gregos do período clássico (KOHAN, 2008). Porém, ainda podemos perceber a permanência dessas concepções na sociedade contemporânea, seja no âmbito familiar, escolar, dentre outros em que a criança se faz presente (CRUZ, 2008).

A criança, há anos, vem sendo objeto de estudo de diversos campos da ciência. Embora o pesquisador selecione sua lente teórica para orientá-lo nesse processo, é importante considerar as contribuições que o diálogo com as demais disciplinas podem trazer para a reflexão e execução da pesquisa. Além disso, é necessário que exista uma vigilância epistemológica por parte do pesquisador, no sentido de considerar a infância uma categoria também social e histórica e, consequentemente, dar atenção às suas dimensões contextuais. Considerar essa diversidade só será possível se essa análise for articulada a uma construção teórica interdisciplinar complexa, por envolver compreen- sões distintas sobre uma das principais dicotomias no campo das relações sociais: natureza X cultura.

Grande parte das pesquisas realizadas foi sobre crianças, e não com crianças. Não podemos desconsiderar as grandes contribuições trazidas pelas pesquisas sobre as crianças para a construção do conhecimento na área ao longo dos anos. Porém, muitas dessas pesquisas tinham, e ainda têm, o pressuposto de que as crianças são seres incapazes, incompletos, sem a possibilidade de se expressarem e exporem seus pontos de vistas, necessidades e desejos, ou seja, não as considerando como sujeitos e cidadãos. No entanto, atualmente coexistem pesquisas com crianças que partem do pressuposto de que elas são cidadãos, atores sociais e culturais, protagonistas e repórteres competentes das suas próprias experiências e entendimentos, sendo, portanto, as melhores informantes do seu aqui e agora (CRUZ, 2008; LEITE, 2008).

Podemos constatar que vivemos em uma sociedade marcadamente adulto- cêntrica, portanto construída e pensada por e para adultos. Desta forma, trazer a criança ao palco do diálogo e buscar estabelecer com ela uma parceria implica, primeiramente, transgredir com o estabelecido e buscar meios de minimizar as relações de poder adulto- criança (LEITE, 2008). Porém, Cruz (2008) ressalta que qualquer mudança relacionada à dimensão afetiva, como as concepções, os valores, as representações e as posturas, são difíceis e demoradas, uma vez que se referem a significados construídos e assumidos pelas pessoas durante sua constituição como pessoa. A consciência dessa dificuldade

aumenta o importante papel que a produção científica pode e deve desempenhar no complexo processo de transformação da ideia de infância na sociedade (CRUZ, 2008,

p. 12). Os novos conhecimentos construídos pela ciência sobre a criança e os temas que lhes dizem respeito colaboram para a ampliação e o enriquecimento do conceito de criança.

Tonucci (2005) ressalta que a força dos dados da pesquisa científica poderá dar sustentação à batalha das crianças, convencendo aquelas pessoas que não são capazes de ouvi-las, compreendê-las e aceitá-las, mas que talvez se disporão a render-se diante das opiniões de seus colegas adultos e cientistas.

Nesse sentido, Souza e Castro (2008) ressaltam ser importante definir a compre- ensão do lugar social assumido pela criança na interação com o adulto em um contexto de pesquisa. Visão esta de uma criança não mais como um objeto a ser conhecido somente, mas como sujeito com um saber que deve ser reconhecido e legitimado no contexto da pesquisa. Nessa perspectiva, em vez de pesquisar “as crianças”, o objetivo passa a ser pesquisar “com as crianças” as experiências sociais e culturais que ela compartilha com as demais pessoas de seu ambiente, sendo parceira do pesquisador, na busca da compreensão da experiência humana.

Leite (2008) levanta o seguinte questionamento: Que importância tem, para a

produção de conhecimento, a voz das crianças, etimologicamente entendidas como aquelas que não falam? (LEITE, 2008, p. 118). Kramer (2002) afirma que a abordagem

de pesquisa com a criança permite-nos investigar a própria condição humana, sendo também um modo de compreender criticamente a produção cultural de nossa época e os lugares sociais que adultos e crianças ocupam nesse processo de criação.

Rocha (2008) ressalta que o pressuposto de dar voz às crianças não significa que elas reproduzam as culturas dominantes e hegemônicas que configuram a estrutura social. Ao contrário, busca-se nessa escuta confrontar e conhecer um ponto de vista

distinto do que os adultos são capazes de ver e analisar no âmbito de seu mundo social. Segundo Cruz (2008), a busca de formas de ouvir as crianças, explorando suas múltiplas linguagens, tem como pressupostos a crença de que elas têm o que dizer e o desejo de conhecer o ponto de vista delas.

Para que as crianças possam se expressar e queiram fazê-lo, é preciso que os adultos saibam ouvir. Isso não significa apenas ouvi-las, mas procurar compreender, dar valor às palavras, às intenções verdadeiras de quem fala. Escutar significa estar ao lado delas, estar disposto a defender suas posições e pedidos (TONUCCI, 2005).

Larrosa (1998), citado por Oliveira (2001), apresenta a criança como sujeito, como “o Outro de nossos saberes”, perante o qual se deve colocar em posição de escuta. As crianças têm consciência de seus sentimentos, suas ideias, seus desejos e suas expectativas, sendo capazes de expressá-los desde que haja quem queira escutar. Além disso, há realidades sociais que só sob o ponto de vista das crianças podem ser compreendidas e analisadas (MANUEL PINTO, 1997, citado por OLIVEIRA, 2001).

Como ressalta Tonucci (2005), escutar significa precisar da contribuição do outro, pois não basta haver interesse, motivação, convicção de que se tem uma boa técnica para envolver as crianças, mas sim é preciso sentir, sincera e urgentemente, essa necessidade de precisar das crianças. Para o autor, a primeira e verdadeira condição para que se possa conceder a palavra às crianças é reconhecer que são capazes de dar opiniões, ideias e de fazer propostas úteis para os adultos, capazes de ajudar a resolver problemas.

Para Tonucci (2005), poderia ser permitido às crianças viver experiências de participação em suas famílias, em sua escola, em sua cidade, e garantir a elas a possibilidade de sentir a emoção de serem ouvidas e levadas a sério, de considerá-las. Segundo o autor, é importante que se aprenda a compreender as crianças para além da aparente simplicidade do que elas dizem, pois, quase sempre, quem diz coisas simples diz coisas importantes. Além disso, ressalta que é necessário sermos mais humildes e reconhecermos que para falar com uma criança, para levar em consideração aquilo que ela diz, é preciso comprometimento.

Cruz (2008) ressalta que um dos desafios a ser enfrentado pelos adultos, princi- palmente aqueles que desempenham papel decisivo no bem-estar, na aprendizagem e no desenvolvimento das crianças, é o de procurar compreender e considerar as falas das crianças por meio de suas múltiplas linguagens.

Para Rocha (2008), é necessário ampliar a abrangência dos termos ouvir e

escutar. Segundo a autora, o termo auscuta não é apenas uma percepção auditiva nem

uma simples percepção da informação, mas sim envolve a compreensão da comunicação feita pelo outro. Inclui a percepção e a compreensão, que passará por uma interpretação. Além disso, auscultar as crianças implica considerar seu espaço social, interessando tanto a pesquisadores e educadores como uma forma de conhecimento e de ampliar sua compreensão sobre as culturas infantis, como também de estabelecer com elas um diálogo intercultural, relação esta que se dá entre sujeitos que ocupam difere- ntes lugares sociais.

Souza e Castro (2008) ressaltam que os sentidos que emergem de um mesmo objeto cultural, quando articulados e confrontados nas interações entre adultos e crianças, podem suscitar questões instigantes sobre o papel geracional para uma visão crítica das transformações culturais, de nossa cultura contemporânea. Nesse sentido, a partir de uma perspectiva bakhtiana, os signos de uma cultura, assim como as signifi- cações, estão permeados de ideologia. Os sistemas ideológicos constituídos e a ideolo- gia do cotidiano (atos, gestos, palavras, etc.) se reconstroem mutuamente, numa intera- ção dialética constante.

Ao considerar a importância de dar voz às crianças, a entrevista se mostra um meio viável e possível, por seu caráter dialógico. Para o dialogismo, de acordo com Mikhail Bakhtin, toda enunciação faz parte de um processo de comunicação ininter- rupto, não existindo, então, um enunciado isolado, mas sim um elo em uma cadeia, só podendo ser compreendido no interior dessa cadeia. Dessa forma, as relações dialógicas são relações de sentido (SOUZA; CASTRO, 2008).

É no diálogo que se dá a produção de linguagem, sendo fundamental buscar compreender os sentidos que estão por trás das palavras, dos gestos, das expressões. Portanto, é preciso considerar os diversos contextos em que tanto o pesquisado quanto o pesquisador se relacionam, pois a orientação social estará sempre presente em qualquer enunciação, sendo esta verbal ou não verbal (SOUZA; CASTRO, 2008).

Para Francischini e Campos (2008), a perspectiva discursiva tem como pressu- posto que os discursos dos sujeitos são reveladores de suas crenças, seus valores e suas concepções, cabendo ao pesquisador compreender seu significado. Assim, surge a necessidade de, na ação investigativa, considerar a diversidade de processos que envol- vem as relações entre pesquisador e criança, em virtude de uma assimetria dessa relação decorrente das diferentes posições e papéis sociais assumidos por esses sujeitos.

Ferreira (2005), citado por Leite (2008), ressalta que pesquisar com as crianças

implica em romper com noções de poder unilaterais entre adultos e crianças e criar contextos de relação capazes de lhes permitir fazerem ouvir as suas vozes e serem escutadas (LEITE, 2008, p. 122). Para isso, é importante que a criança queira, esponta-

neamente, participar da pesquisa; que o pesquisador descreva não só o lugar físico da realização da pesquisa, mas também o lugar político e social; que o pesquisador tenha consciência de que o modo como ele se apresenta para as crianças acentua ou diminui as tensões de poder; e que o pesquisador fique atento à sua linguagem corporal, gestos e olhares.

É preciso considerar que as crianças se expressam de um modo muito peculiar e diferente do adulto. Embora elas se expressem diferentemente de nós, é importante assumir como legítimas as suas formas de comunicação e relação, mesmo que os signi- ficados que as crianças atribuem às suas experiências sejam diferentes daqueles que os adultos que convivem com elas lhes atribuem (FERREIRA, 2005, citado por LEITE, 2008).

A expressão das crianças envolvidas nas pesquisas dá pistas sobre suas maneiras de ser e de agir, suas formas de experienciar o mundo e de significá-lo (LEITE, 2008). De acordo Rocha (2008), a ênfase na escuta das crianças justifica-se pelo reconheci- mento das crianças como agentes sociais, de sua competência para a ação, para a comu- nicação e para a troca cultural. Esta legitimação da ação social das crianças é resultado também do reconhecimento e da definição contemporânea de seus direitos fundamentais – de provisão, proteção e participação.

Segundo Silva et al. (2005), conhecer as ações e produções infantis e as relações entre adultos e crianças são passos essenciais para a intervenção e a mudança. Tonucci (2005) ressalta que essas crianças, tão distantes de nós e tão necessitadas de nossa ajuda e de nosso afeto, difíceis de ouvir e de compreender, possuem em si uma força revolu- cionária: se estivermos dispostos a nos colocar na altura delas, a lhes dar a palavra, elas serão capazes de nos ajudar a compreender o mundo e nos indicará as possibilidades de mudança e nos dará a força para que ela aconteça.

Diante do marco teórico que norteou esta pesquisa, fica claro compreender como é importante definir um referencial teórico para direcionar e ajudar a compreender os dados. À luz da teoria piagetiana, podemos compreender como a criança constrói o seu conhecimento e suas representações sobre a escola e como ela interage com o mundo ao seu redor. Para compreender as representações das crianças sobre a instituição escolar

como conhecimento social, construído na interação com as pessoas a partir do que é definido pela sociedade, é importante também compreender como, historicamente, a concepção de escola e de ambiente escolar vem sendo construído ao longo dos anos, refletindo hoje na maneira como a sociedade vê e conceitua o papel da escola.

Embora seja importante conhecer como a escola vem sendo entendida ao longo dos anos, faz-se igualmente necessário e urgente considerar o que os estudiosos da área discutem hoje sobre o ambiente escolar e sua organização, além das reflexões sobre o papel do brincar na instituição e na rotina, visando ao pleno desenvolvimento da criança. E para conhecer o que as crianças pensam sobre a escola e como a conceituam é necessário ouvi-las, possibilitá-las expressar suas ideias e concepções de mundo, e não solicitar a outros que falem por elas. As crianças têm o que dizer sobre sua realidade e suas vivências, constatação esta que aponta para a necessidade cada vez maior de pesquisas com crianças.

Para que a “voz” das crianças pudesse ser ouvida e compreendida sobre o que pensam sobre a escola, optou-se, nesta pesquisa, pelo procedimento de coleta e análise de dados denominado método clínico piagetiano, em coerência à opção teórica, a teoria piagetiana, e por ser um método que possibilita conhecer o que as crianças pensam, sentem, agem e percebem sobre o mundo.