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Pessoalidade e autorreflexividade

Capítulo 3 – Análise

3.3 Fatos singulares fornecidos pelos dados

3.3.1.4 Pessoalidade e autorreflexividade

Para a presente pesquisa, é fundamental a preocupação com a caracterização do sujeito, e uma das considerações que se mostrou bastante evidente é a de que a pessoalidade está diretamente relacionada ao modo como o sujeito se constitui na escrita.

Em princípio, caracterizamos a pessoalidade conforme vista nas pesquisas de orientação teórico-metodológica da etnografia, e nesta perspectiva, o sujeito do discurso, embora afetado por diferentes práticas letradas, é uma construção que prioriza os objetos tal como empiricamente constatáveis, havendo menos preocupação com as representações atinentes a um plano mais opaco da linguagem. Essa é uma das justificativas para a adaptação da noção de pessoalidade.

Do ponto de vista adotado em nossa pesquisa, ela é produto da plurivocidade60, e, justamente por isso, trazemos, na presente seção, as considerações de pessoalidade na perspectiva enunciativo-discursiva, em que o sujeito não é unívoco (ou seja, não é coincidente consigo mesmo), bem como suas implicações teóricas, e as consequências dessa nova apropriação do conceito para a presente pesquisa. Isso é algo bastante relevante pois partimos de uma concepção em que, no processo de referenciação61, a palavra não é correspondente exata do mundo por causa da interferência do sujeito no processo, de modo que cabe ao sujeito construir essa relação (mas não ao sujeito tomado como indivíduo empírico apenas). Esse processo é justamente aquele que organiza os objetos de discurso e o sujeito não existiria nesse processo caso a linguagem e o mundo fossem diretamente (e homogeneamente) conectáveis.

Da perspectiva enunciativa de Authier-Revuz (1990), a heterogeneidade da linguagem se manifesta de forma mostrada (considerando como formas mostradas aquelas linguisticamente descritíveis, que inscrevem o outro na linearidade) e pela heterogeneidade constitutiva (ou seja, não marcada em superfície, pois é um princípio que fundamenta a própria linguagem). As formas de heterogeneidade mostrada, segundo a autora, inscrevem o outro na sequência do discurso e podem se manifestar, por exemplo, no discurso direto, aspas, na formas de retoque, glosa, discurso indireto livre ou ironia.

Essas noções se constroem a partir do exterior da linguística, estabelecendo concepções do sujeito e de sua relação com linguagem. Para a autora, a linguística explicitar esse exterior, pois este se volta implicitamente ao interior, ou seja, a própria linguagem.

A heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso é apoiada na consideração do discurso como produto de interdiscursos e do sujeito. A heterogeneidade mostrada consiste em formas linguísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito com a heterogeneidade constitutiva do discurso. Nessa perspectiva, os fatos da linguagem são determinados fora dos

60A opacidade dos enunciados pode ser constatada na sua materialidade por meio de uma rede de relações associativas implícitas. Nessas associações, é de fundamental importância considerar a presença dos sujeitos, bem como o seu trânsito por diversos espaços sociais.

domínios do sujeito e, por isso, o dialogismo é construído no interior do discurso. Como consequência, a palavra é sempre uma palavra alheia, sem neutralidade e atravessada pelos discursos socialmente constituídos. A implicação direta dessa forma de estabelecer o dialogismo é a interpretação do sujeito fora do centro de intencionalidade, que ignora a “maquinaria estrutural do discurso”, que se apoia na crença de que é fonte do dizer, quando é apenas o suporte. Essa é uma ilusão constitutiva e necessária ao sujeito, que negocia os sentidos com a heterogeneidade constitutiva da linguagem, pois ele não coincide consigo mesmo, nem com o interlocutor.

Partindo dessa concepção de sujeito, Authier-Revuz (1998) propõe que o dizer é afetado pelos quatro campos de não-coincidência, a saber, da não-coincidência interlocutiva, do discurso consigo mesmo, entre as palavras e as coisas e das palavras consigo mesmas. Essas não-coincidências são formas de heterogeneidade constitutiva da linguagem com as quais o sujeito negocia ao entrar no jogo da enunciação.

Interessa-nos particularmente a ideia de não-coincidência interlocutiva, em que o sujeito não é coincidente consigo mesmo, dado o fato de que os sentidos não são de fato partilhados inteiramente entre os interlocutores. A ideia de não- coincidência constitui a grande diferença da perspectiva de Authier-Revuz com a noção de pessoalidade defendida pela etnografia. O sujeito sempre busca o ajuste ao dizer do outro por meio do ajuste do próprio dizer, perante as possibilidades de recepção do outro, também pelo fato de que os dizeres não pertencem ao sujeito, mas são tomados, contraditoriamente, em função (mas sem determinação estrita das diferentes atividades linguageiras com as quais têm contato.

Essa negociação do sujeito com a heterogeneidade constitutiva cria uma configuração metaenunciativa que caracteriza o modo pelo qual se manifesta. Esse processo, por sua vez, se instaura na enunciação a partir da modalização autonímica, definida por Authier-Revuz (1998, p.177) como a forma que “implica uma atividade linguageira de auto-representação do dizer pelo enunciador”, e que, por sua vez, delimita os fatos pontuais de não-coincidência. Isso ocorre, pois

(...) o locutor faz uso das palavras inscritas no fio de seu discurso (sem ruptura sem autonímia) e, ao mesmo tempo, ele as mostra. Sendo assim, sua figura normal de utilizador das palavras é desdobrada, momentaneamente, por uma outra figura, a de

observador das palavras utilizadas; e o fragmento assim designado – marcado por aspas, itálico, uma entonação e/ou qualquer forma de comentário – recebe, em relação ao resto do discurso, um outro estatuto. (AUTHIER-REVUZ, 1982. p. 92)

Dentro do panorama estabelecido em nossa pesquisa, mais especificamente, no processo de referenciação, conforme analisamos nas redações de vestibular, interpretamos a configuração metaenunciativa (em que o sujeito negocia os sentidos no texto), e a modalização autonímica (que define o modo como essa negociação se estabelece), em termos de procedimentos autorreflexivos.

Nossa argumentação inicial propõe uma revisão do processo de referenciação para a escrita do vestibular, a partir da ideia de que há um investimento cronotópico que organiza os objetos de discurso, construído especificamente entre o processo de referenciação e o processo de argumentação. Esse investimento cronotópico – marcado pela discrepância entre tempos/espaços que produzem o efeito de abertura entre o (já-)enunciado e a enunciação – caracteriza a autorreflexividade na escrita e é responsável pela caracterização dos processos de generalização (por mínima aderência ao enunciado) e particularização (por máxima aderência ao enunciado).

Retomando igualmente nossa consideração sobre o engajamento do leitor na escrita, remetemos à noção de autorreflexividade já apresentada. Na perspectiva que estamos defendendo, a autorreflexividade:

(1) possibilita ao escrevente a reflexão sobre a forma e os sentidos tidos como necessários para engajar o seu leitor, e;

(2) é acionável ao longo do processo de referenciação e de construção dos objetos de discurso de forma a marcar a presença do sujeito (e não de elidi-lo).

A pessoalidade está, portanto, diretamente relacionada à autorreflexividade. Isso se dá, pois a pessoalidade é a instância em que o escrevente, quando se vê diante da proposta de redação, entra no jogo de assumir ou recusar certas identidades associadas a essa prática; rejeita ou adere a certas posições que se refletem no seu modo

de lidar com os sentidos no texto; que configuram a pessoalidade, por meio da emergência das marcas de pessoa na superfície do texto.

Isso posto, considerando a perspectiva segundo a qual o sujeito é não- coincidente consigo mesmo, propomos que a pessoalidade seja considerada, formalmente, como um dos modos pelos quais a autorreflexividade se manifesta na redação de vestibular. Portanto, a pessoalidade ganha um estatuto de construção textual-discursiva submetido em relação ao exterior que lhe é constitutivo e manifesta esse exterior no processo de autorreflexividade. Portanto, essa manifestação da pessoalidade pela autorreflexividade dá à pessoalidade um caráter ativo, mas como um efeito das determinações que recebe do exterior. A manifestação da autorreflexividade é caracterizada pelas relações cronotópicas que, por sua vez, interferem no processo de referenciação e de argumentação. Em outras palavras, as relações cronotópicas no processo de referenciação e de argumentação são construções linguageiras que exprimem as determinações do exterior. Elas produzem o procedimento, também linguageiro, da autorreflexividade, o qual permite ler, no fim do caminho, a pessoa ou a pessoalidade com a especificidade das práticas letradas em que o escrevente se insere e a partir das quais constrói essas figuras textuais.