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A

actuação do Governo ao longo dos qua- renta anos de vigência do Estado Novo pautou- -se, essencialmente, pela continuidade relati- vamente às orientações políticas definidas na década de 1930: a infra-estruturação dos siste- mas de águas e esgotos e, de forma mais abran- gente, a promoção das condições sanitárias das povoações, continuariam a ser responsabilida- des municipais, relativamente às quais o Estado deveria assumir uma postura de regulação técni- ca e financeira.

A regulação técnica do processo de infra-es- truturação de sistemas de águas e esgotos co- meçara logo em 1934175, com a definição dos requisitos necessários à assinatura de projectos de águas e saneamento: nas povoações com mais de 1000 habitantes estes só poderiam ser assinados por engenheiros civis ou de minas di- plomados por escolas nacionais ou estrangeiras equiparadas; nos casos de povoações com me- nos de 1000 habitantes, por agentes técnicos de engenharia civil ou de minas. Para cada projecto realizado nas ruas ou zonas das capitais de dis- trito tornara-se obrigatória, a partir de 1938176, a instalação de canalizações domiciliárias e res- pectiva ligação à rede de distribuição de águas, bem como um consumo mínimo mensal que seria contratualizado e contabilizado através de contadores alugados. E em 1941177 procedia-se de forma idêntica relativamente às instalações de saneamento nos prédios e respectiva ligação às redes públicas de esgotos. Finalmente, com a publicação do Regulamento Geral das Canali- zações de Águas em 1943178 e do Regulamento Geral das Canalizações de Esgotos179 em 1946 apresentavam-se os preceitos e as normas téc-

175 Decreto-Lei nº 23 511, de 26 de Janeiro de 1934. 176 Decreto-Lei nº 29 216, de 6 de Dezembro de 1938. 177 Decreto-Lei nº 31 674, de 22 de Novembro de 1941. 178 Portaria nº 19 367, de 14 de Abril de 1943. 179 Portaria nº 11 338, de 8 de Maio de 1946.

2.2

OS PLANOS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUAS

nicas relativos à instalação destes sistemas, ma- téria que viria a ser complementada mais tarde com o Regulamento Geral das Edificações Urba- nas180, onde se apresentavam as disposições ne- cessárias à execução de novas edificações ou à ampliação, alteração e reparação das edificações existentes.

Estaria assim enunciado o enquadramento técnico necessário, não só à regulação da ac- tividade das câmaras municipais mas também à concretização das duas iniciativas de plane- amento apresentadas ao longo do período: o Plano de Abastecimento de Águas às Sedes dos Concelhos, apresentado em 1944181, e o Plano de Abastecimento de Águas às Populações Ru- rais, de 1960182. O primeiro, publicado poucos meses antes da criação da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização (DGSU)183, para onde seriam transferidos os serviços de «melhora- mentos de águas e saneamento» e os «serviços de melhoramentos rurais», acentuava o enfoque urbano dos trabalhos a desenvolver. O segundo assinalava a consciência política relativamente à expressão do problema nas povoações rurais, onde continuava a viver a grande maioria da população nacional, praticamente sem acesso a sistemas de abastecimento domiciliário de águas ou redes de esgotos. No entanto, a abordagem seguida em ambos os planos apresentava, mais do que uma visão de planeamento integrado ca- paz de contribuir para a resolução do problema nas suas distintas vertentes, o reforço das pre- missas que já haviam sido enunciadas na década de 1930, e que assinalavam o papel de regula- ção técnica e financeira do Estado relativamen- te aos trabalhos a desenvolver pelas câmaras municipais. Para além disso, e comum a ambos 180 Decreto-Lei nº 38 382, de 7 de Agosto de 1951. 181 Decreto-Lei nº 33 863, de 15 de Agosto de 1944. 182 Lei nº 2103, de 22 de Março de 1960.

Alguns anos mais tarde, contudo, e ao procurar fazer um balanço dos trabalhos realizados até 1954, o engenheiro director dos Serviços de Sa- lubridade da DGSU assumia um tom mais cau- teloso:

«Ao volver os olhos, numa recapitulação memorativa e crítica, para os últimos dez anos de actividade no campo dos abasteci- mentos de água e de drenagem de esgotos, dois pensamentos ocorrem naturalmente: poderia ter-se feito mais? Poderia ter-se feito melhor? A resposta a estas perguntas tranquiliza a consciência de todos os que in- tervieram em problemas tão decisivos para o bom nível sanitário do País: Governantes, que tiveram a clarividência das necessidades da Nação e que pela criação do organismo adequado deram a palavra de ordem e o impulso motor, Municípios, que alvoroçada- mente se lançaram ao trabalho, aproveitan- do plenamente as facilidades que o Estado lhes proporcionou, Engenheiros e Sanitaris- tas que tiveram a oportunidade de prestar a sua colaboração técnica. Não porque a obra realizada seja perfeita em todos os seus as- pectos, mas porque com os meios de acção de que se conseguiu dispor é duvidoso que pudesse ter-se alcançado mais e com maior eficiência»188.

A obra realizada teria consistido em «160 abas- tecimentos totalmente renovados em sedes e não sedes de concelho, 92 abastecimentos parcialmente melhorados e completados, num total de 252 sistemas, servindo uma população superior a um milhão e meio de habitantes»189, a que se deveriam acrescentar ainda 140 estações de tratamento ou correcção química e bacterio- lógica de água, e que no seu conjunto teriam implicado um investimento do Estado e dos Mu- nicípios de aproximadamente 400 000 contos. Por outro lado, assinalava-se ainda a criação de sistemas de abastecimento de água por fonta- nários em 2000 povoações rurais, apesar do pla- no em causa se destinar sobretudo às sedes de concelho, bem como a concretização de obras de drenagem de esgotos domésticos (25 obras gerais e 57 obras parciais e de melhoramento), com nove estações depuradoras que serviam 150 000 habitantes.

O discurso ‘tranquilizador’ do engenheiro-direc- tor dos serviços de salubridade, contudo, não era coerente com o relatório publicado pelo res- pectivo director-geral, nesse mesmo ano, onde

188 MOP (1954). Boletim da Direcção Geral dos Serviços

de Urbanização, Vol. I. Lisboa: MOP, p. 56.

189 Idem.

os planos, era a sua orientação exclusiva relati- vamente aos sistemas de distribuição de águas, ficando por enquadrar os sistemas de esgotos, o que só viria a ocorrer em 1970184, com a criação de condições especiais de financiamento para a construção deste tipo de infra-estruturas. O Plano de Abastecimento de Águas às Sedes dos Concelhos anunciava o propósito de promo- ver a realização dos estudos e obras necessários para que todas as sedes de concelho fossem convenientemente dotadas de água potável até ao final de 1954. Para o efeito seriam abertos concursos públicos, tendo em vista a adjudica- ção de projectos a realizar anualmente, podendo a Repartição de Abastecimento de Água e Sa- neamento185, se os projectos apresentados não fossem satisfatórios do ponto de vista técnico, promover a sua realização por engenheiros es- tagiários, sob sua superintendência. Uma vez avaliados os projectos, caberia ao Ministro das Obras Públicas e Comunicações a determinação daqueles que deveriam ser executados sob fis- calização da Repartição, com a comparticipação financeira do Estado: ora através de emprésti- mos concedidos pela Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, até um montante de 50% do encargo total, ora por comparticipação do Estado através do Fundo de Desemprego e do Orçamento de Estado, nos restantes 50%. Para além disso, determinava-se ainda que os abaste- cimentos de águas às sedes de concelho deves- sem ser explorados por concessionários ou sob o regime de serviços municipalizados186.

Quatro anos depois de iniciados os respectivos trabalhos, cuja conclusão se previa num horizon- te temporal de dez anos, afirmava-se no Livro de Ouro dos 15 Anos de Obras Públicas que o pla- no «veio resolver o problema em definitivo, quer técnica, quer financeiramente», uma vez que «desde 1932 a 1947 se realizaram 2346 abas- tecimentos por fontanário e 515 domiciliários, na quase totalidade das sedes de concelho»187.

184 No Decreto-Lei nº 157/70, de 13 de Abril, determina-

va-se que as obras de saneamento poderiam benefi- ciar de comparticipações do Estado nas percentagens de 75% (redes de drenagem de esgotos) e 90% (esta- ções de tratamento).

185 A «Secção de Melhoramentos de Águas e Saneamen-

to», com a transição da DGSH para a DGSU, passava a designar-se «Repartição de Abastecimentos de Água e Saneamento».

186 Em 1947 o limite máximo dos empréstimos a contrair

seria aumentado para 200 000$00 (inicialmente este limite seria de 150 000$00) e elevava-se para 75% a comparticipação do Estado relativamente ao custo to- tal das obras de abastecimento por fontanários (Decre- to nº 36 575, de 4 de Novembro de 1947).

187 MOP (1948). Livro de Ouro: Quinze anos de Obras Pú-

Os planos de abastecimento de águas

lador criticara as autarquias precisamente por darem preferência a «obras de natureza diver- sa – monumentais umas, outras de valorização urbanística –, em prejuízo daquelas que afinal mais importam para a saúde das povoações»192. A situação, contudo, não deixava de ser caricata, na medida em que, como já tivemos ocasião de verificar, tanto governadores civis como presi- dentes de câmaras municipais eram nomeados, directamente, pelo próprio Governo.

Em todo o caso, no capítulo relativo ao abasteci- mento de água às populações rurais, publicado em 1956 no âmbito dos trabalhos preparatórios para o Plano de Fomento 1959 – 1964, reforça-

va-se novamente a ideia de que, um ano e meio depois de ter expirado o prazo de conclusão do Plano de Abastecimento de Águas às Sedes dos Concelhos, «o programa encontra-se, apesar de tudo, praticamente realizado»193, razão pela qual se poderia então avançar para a resolução do problema no contexto das povoações rurais. Assim, o Plano de Abastecimento de Águas às Populações Rurais, publicado em 1960, assumia um objectivo ambicioso ao determinar que, «no menor prazo possível, todas as povoações com mais de 100 habitantes fiquem satisfatoriamente dotadas de um sistema de distribuição de água potável»194. A questão, contudo, não parecia ser efectivamente urgente para o Governo, que 192 Preâmbulo do Decreto-Lei nº 33863, de 15 de Agosto

de 1944.

193 MOP (1956). Elementos para o estudo do Plano de Fo-

mento 1959 – 1964, Vol. VII – Abastecimento de Água às Populações Rurais. Relatório da Direcção Geral dos Serviços de Urbanização (Direcção dos Serviços de Salubridade). Lisboa: MOP, p. 6.

194 Base I da Lei nº 2103, de 22 de Março de 1960. se apresentava a relação entre o número total de

obras de abastecimento de águas e saneamento comparticipadas pelo Estado e o número total de obras efectivamente concluídas pelas câma- ras municipais: entre 1945 e 1960 terão sido financiadas 8555 obras, das quais apenas 1107 teriam sido concluídas190. 191

As condições de financiamento e os montantes efectivamente concedidos não seriam, desta forma, suficientes para a realização das obras, hipótese que coloca em causa todo o processo de planeamento técnico, financeiro e econó- mico que havia sido enunciado como condição necessária à atribuição das respectivas comparti-

cipações. Ou, em alternativa, as câmaras muni- cipais não afectavam as verbas disponibilizadas à sua concretização, o que leva a supor que não existiam meios eficazes de fiscalização e monito- rização dos trabalhos a realizar. Em qualquer dos casos, é possível concluir que o plano não surtiu o efeito desejado.

É certo que já em 1944, no preâmbulo do de- creto que anunciava o Plano de Abastecimen- to de Águas às Sedes dos Concelhos, o legis-

190 MOP (1954). Boletim da Direcção Geral dos Serviços

de Urbanização, Vol. I. Lisboa: MOP, pp. 21-22; MOP (1958). Boletim da Direcção Geral dos Serviços de Urbanização (1955 – 1957). Lisboa: MOP, p. 9; MOP (1961). Boletim da Direcção Geral dos Serviços de Ur- banização (1958 – 1960). Lisboa: MOP, p. 25.

191 Fonte: elaboração própria com base em MOP (1954).

Boletim da Direcção Geral dos Serviços de Urbaniza- ção, Vol. I. Lisboa: MOP, pp. 21-22; MOP (1958). Bo- letim da Direcção Geral dos Serviços de Urbanização (1955 – 1957). Lisboa: MOP, p. 9; MOP (1961). Boletim da Direcção Geral dos Serviços de Urbanização (1958 – 1960). Lisboa: MOP, p. 25. 0 200 400 600 800 1000 1200 1400 1600 1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960

Nº de obras comparticipadas Nº de obras concluídas

Figura 9

Relação entre o número de obras comparticipa- das e o número de obras concluídas191

A falta de elementos disponíveis acerca dos tra- balhos desenvolvidos ao abrigo deste plano ao longo dos anos seguintes não nos permite ana- lisar o grau de concretização das obras previs- tas. No entanto, a comparação dos resultados dos inquéritos realizados em 1941 e em 1972, únicos a abranger a totalidade do território nacional (continente) ao longo do período de vigência do Estado Novo, permite-nos con- cluir que o ritmo de infra-estruturação do país com sistemas domiciliários de águas e esgotos se apresentou muito lento: se em 1941 tinha acesso a sistemas de distribuição domiciliária de águas 26% da população nacional residente no continente, e não se apresentavam dados relativos às redes de esgotos, em 1972 a per- centagem de população servida com redes de distribuição domiciliária de águas era de 40% e a população servida com redes de esgotos não passava dos 17%.

A preponderância de uma visão infra-estrutu- ral sobre o problema do saneamento, que se acentuara de forma significativa com o Estado Novo, não podia deixar de ser considerada re- dutora face a um problema cuja complexidade já havia sido enunciada no início do século e que implicava a articulação de uma série de recursos técnicos e institucionais que continu- avam a não estar disponíveis à escala de todo o território nacional: os meios laboratoriais, essenciais ao exercício das atribuições sanitá- rias e à regulação da qualidade das águas; o investimento na formação de médicos e enge- nheiros sanitários, e demais técnicos especiali- zados, em número suficiente para suprir as ne- cessidades funcionais da administração central e local; a capacidade organizativa das câmaras municipais, essencial à subsequente gestão dos serviços de águas e esgotos, e à articula- ção destas funções com as da administração sanitária, tendo em vista a promoção da saúde das povoações. Para além disso, era o próprio processo de monitorização que se apresentava de forma deficiente, nomeadamente no que diz respeito à expansão das infra-estruturas existentes no país.

concedia um período de seis anos à Direcção- -Geral dos Serviços de Urbanização para que procedesse ao inventário das nascentes direc- tamente aproveitáveis para este fim, bem como para o desenvolvimento dos trabalhos de pes- quisa e captação de águas subterrâneas, não se prevendo no referido plano um prazo para a execução das respectivas obras a realizar. Do ponto de vista financeiro, a fórmula adopta- da era idêntica à que havia sido apresentada em 1944: reforçando-se a responsabilidade das câmaras municipais na elaboração dos estudos necessários e na execução das respectivas obras, o Estado poderia prestar assistência técnica e criava um enquadramento financeiro que previa a comparticipação do custo das obras até 75% do valor total e, ainda, a possibilidade de ob- tenção de crédito em condições favoráveis, na medida em que os estudos efectuados pelas câmaras municipais compreendessem a análise económica dos serviços de águas e esgotos e demonstrassem que as receitas próprias desses serviços eram suficientes para cobrir os respec- tivos encargos.

A situação das povoações rurais relativamente ao abastecimento de água seria então consi- derada muito precária, reconhecendo-se que na «sua imensa maioria, não só não dispõem da quantidade mínima indispensável ao consu- mo de agregados familiares tão pouco exigen- tes como ainda são os nossos, como também a pouca água que utilizam está longe de obedecer aos padrões sanitários mais modestos». Assim, afirmava-se no relatório da DGSU publicado em 1956 que, apesar de perpassar «por todo Portu- gal um anseio febril de renovação – como se se quisesse recuperar de um salto todos os longos lustros de estagnação e abulia», o ritmo a que vi- nham sendo concretizadas as obras nas povoações rurais era incomportável e deveria ser acelera- do: «à cadência do último lustro, só daqui a 160 anos estará concluído o abastecimento das 10 315 + 886 = 11 201 povoações com mais de 100 habitantes que no Continente e nas Ilhas aguardam esse indispensável melhoramento»195.

195 MOP (1956). Elementos para o estudo do Plano de Fo-

mento 1959 – 1964, Vol. VII – Abastecimento de Água às Populações Rurais. Relatório da Direcção Geral dos Serviços de Urbanização (Direcção dos Serviços de Sa- lubridade). Lisboa: MOP, pp. 17-18.

Os inquéritos às infra-estruturas sanitárias do país

2.3

OS INqUÉRITOS àS INFRA-ESTRUTURAS