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questão essencial do saneamento das po- voações foi enunciada, como já vimos, logo no início do século XX289. A resolução do problema sanitário, e com ela a redução da incidência de uma série de ‘doenças evitáveis’, presumivelmen- te amplificada em contexto urbano, vinha sendo testada com sucesso em diversos países europeus e nos Estados Unidos da América desde meados do século XIX: o seu ponto de partida consistia na criação ou expansão de infra-estruturas de águas e esgotos. Para o concretizar em Portugal, contu- do, seria necessário fazer quase tudo do princípio: criar ou expandir as respectivas infra-estruturas, praticamente em todo o país; promover a conver- são sanitária das habitações; garantir que eram ligadas às respectivas redes de águas e esgotos. Se o processo de infra-estruturação implicava o planeamento e o projecto das respectivas obras, para a sua execução seria necessário dispor de engenheiros habilitados nos mais avançados preceitos da engenharia sanitária. Mas a ques- tão sanitária implicava, para além da engenha- ria, a formação de médicos sanitários capazes de instituir uma nova visão de saúde pública à escala de todo o território nacional e de técnicos especializados, ora em trabalho laboratorial, ora na administração de serviços de águas e esgotos ao nível municipal. Daí que Ricardo Jorge tivesse tentado implementar um sistema de formação avançada em saúde pública capaz de integrar medicina e engenharia sanitárias num currículo de natureza transdisciplinar. Assim seria possível garantir a disponibilidade de técnicos habilitados para, entre outras funções, proceder à fiscaliza- ção sanitária das águas.

Mas esta última função não poderia ser concreti- zada sem que existissem meios laboratoriais sufi- 289 Ver a este propósito a secção respectiva do capítulo 1:

«As políticas de abastecimento e saneamento de águas como problema».

num projecto de obras públicas sem qualquer tipo de enquadramento estratégico.

Assim, e mesmo sabendo-se que os números registados seriam provavelmente inferiores à realidade, mantiveram-se muito elevadas as ocorrências de mortalidade por doenças infec-

ciosas associáveis às más condições de higiene e de acesso a água potável, sobretudo até à dé- cada de 1950 (Figura 15), verificando-se a sua descida progressiva a partir de então e até ao iní- cio da década de 1970. No caso da febre tifóide, por exemplo, cuja natureza endémica Cayolla da Motta associava aos «meios populacionais mal abastecidos de água potável», teria como habi- tuais fontes de contágio «aquelas que universal- mente explicam a prevalência da doença, para a qual contribui a higiene deficiente que urge melhorar-se»292. No entanto, diria, a progressiva e acentuada baixa de mortalidade verificada a partir de 1943 ocorre essencialmente «depois da aplicação generalizada de antibióticos apro- priados, em grande parte fornecidos pela DGS, a doentes pobres e indigentes»293. 294

292 Idem, p. 268.

293 Cayolla da Motta, L., Soares, C. (1955). «Evolução das

taxas de mortalidade e de morbilidade, de algumas doenças infecto-contagiosas em Portugal – 1902 – – 1952», in Boletim dos Serviços de Saúde Pública, Vol. I, nº 3-4. Lisboa: DGS, p. 260.

294 Febre tifóide, diarreia e enterite (<2 anos), diarreia e

enterite (>2 anos), cólera, poliomielite aguda, infec- ções do recém-nascido, enterite e outras doenças diar- reicas, gastrite, duodenite, enterite e colite, excepto a diarreia do recém-nascido. As fontes da figura são as mesmas da figura 4 (Capítulo 1), até 1930. Entre 1930 e 1973 as fontes são: INE (1931 – 1966) Anu- ário Demográfico, Imprensa Nacional, Lisboa; INE (1967 – 1968), Estatísticas Demográficas, Imprensa Nacional, Lisboa; INE (1968 – 1973), Estatísticas da Saúde, Imprensa Nacional, Lisboa.

concretização destas funções291, as opções polí- ticas enunciadas no início da década de 1930, e que estruturaram a visão do Estado Novo sobre o saneamento das povoações até ao início da década de 1970, assinalaram um retrocesso rela- tivamente à configuração política enunciada no início do século. Não só porque determinaram

o enfoque essencialmente urbano da acção a desenvolver, deixando de lado a grande maioria da população nacional, mas também porque a visão predominantemente infra-estrutural sobre o problema, sem que se criassem as condições necessárias ao exercício das restantes funções enunciadas, limitou de forma muito significativa a implementação de uma configuração política que não pode deixar de ser considerada particu- larmente inovadora, tendo em consideração que foi enunciada nos primeiros anos do século XX. O falhanço do projecto de formação avançada em saúde pública, a inexistência de alternativas consis- tentes de formação para engenheiros sanitários e demais técnicos necessários à fiscalização sanitá- ria das águas e das infra-estruturas, os limitados meios laboratoriais disponíveis ao nível central e a incapacidade de concretizar uma rede de labo- ratórios distritais, não só persistiram até à década de 1970, como criaram uma enorme contradição: sem que se pudesse garantir a respectiva pota- bilidade das águas, as infra-estruturas poderiam funcionar como factor de promoção de saúde ou como vector de doença. Para além disso, ficavam por resolver questões tão essenciais como a gestão técnica dos serviços de águas ou o registo exausti- vo das causas de morte e doença à escala de todo o território nacional. Daí que se possa dizer que as políticas públicas de abastecimento e saneamento de águas se transformaram, até à década de 1970, 291 Ver a este propósito o capítulo 1.

0 5000 10 000 15 000 20 000 25 000 1902 1907 1912 1917 1922 1927 1932 1937 1942 1947 1952 1957 1962 1967 1972 Nº de óbitos Figura 15

Número de óbitos por doenças relacionadas com água / higiene294

Quarenta anos de atraso no saneamento das povoações

de 1930, que não existiu verdadeiramente a in- tenção política de criar as condições necessárias para a sua resolução à escala de todo o território nacional. O reconhecimento de que a questão sa- nitária continuava por resolver, sobretudo nas po- voações rurais onde vivia a maioria da população nacional, a par da transferência de responsabili- dades para as câmaras municipais, que declara- damente não tinham capacidade técnica e finan- ceira para a sua resolução, não podem deixar de ser vistas como opções políticas conscientes. Depois, começaram a tornar-se habituais os fe- nómenos de responsabilização, ora da situação financeira do país que não permitiria o investi- mento necessário, ora da actuação das câmaras municipais, que de forma recorrente iam dei- xando o problema por resolver. No entanto, e na medida em que houve capacidade financeira para investir noutros domínios de governação nacional, ou tendo em consideração que ao longo de todo o período de vigência do Estado Novo se manteve o regime de tutela política e administrativa do Estado sobre os corpos admi- nistrativos, estas não podem deixar de ser vistas como ‘falsas questões’.

Doenças como «a cólera ou outras doenças in- testinais, tais como a febre tifóide, são doenças veiculadas pela água», afirmar-se-ia em tom ex- clamativo no relatório publicado pela Organiza- ção Mundial de Saúde já em 1975, como se ain- da pudessem persistir dúvidas do ponto de vista político: «esse é um facto incontestável!»295. Ao que se acrescentava ainda que a sua manifesta- ção depende também da higiene das habitações e alimentos em sentido mais abrangente, na me- dida em que a infecção «não se transmite senão quando os produtos alimentares e as bebidas não estão isentos desses microrganismos»296, e a falta de higiene individual «é uma causa importante da persistência e da rapidez da transmissão»297. No entanto, e mesmo sabendo-se que esta cor- relação já era reconhecida no início do século, a deficiência dos meios de fiscalização sanitária (água e infra-estruturas), bem como o grau de incerteza relativamente às estatísticas de morta- lidade e morbilidade, impediam uma avaliação exaustiva e detalhada do problema.

Na verdade, e constatando-se a longevidade e a persistência destes problemas, não pode deixar de se considerar, sobretudo a partir da década

295 Wood, W.E. (1975). «Luta contra epidemias de origem

hídrica (em especial de cólera, febre tifóide e outras in- fecções intestinais) pela melhoria dos abastecimentos pú- blicos de água», in DGS (1975). Protecção Sanitária Am- biental: planificação a nível nacional e papel na luta contra epidemias de origem hídrica. Lisboa: DGS, p. 107.

296 Idem.

297 Araoz, J., Subrahmanyam, D.V. (1975). «A luta contra

a cólera e o saneamento do ambiente», in DGS (1975). Protecção Sanitária Ambiental: planificação a nível na- cional e papel na luta contra epidemias de origem hí- drica. Lisboa: DGS, p. 81.

CAPÍTULO 3

ELEMENTOS PARA O ESTUDO DO