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a transição do século XIX para o século XX o problema estaria já equacionado. Os surtos epidémicos sucediam-se, próprios de um país que não sabia defender-se do ponto de vista sanitário. Do ponto de vista científico, parecia ser consensual a importância da água como ele- mento essencial à promoção da higiene urbana, ou como vector de contágio. E a crescente pres- são demográfica sobre esses mesmos centros ur- banos, embora lenta, acentuava os riscos epidé- micos, implicando um significativo trabalho de infra-estruturação a desenvolver. De condutas de água para as cidades, de infra-estruturas de água nas cidades, de esgotos dentro das cida- des, de esgotos para fora das cidades; depois, haveria que transformar as habitações sem ins- talações sanitárias; finalmente, haveria que ligá- -las aos sistemas urbanos de água e esgotos. Em alternativa poderiam criar-se sistemas de distribuição por fontanário, mas estas infra-es- truturas não poderiam ser utilizadas mais tarde, caso se pretendesse a conversão para ligações domiciliárias98.

Muito mais haveria a fazer, contudo, para além das infra-estruturas. Compreendia-se igualmen- te a necessidade de promover a produção de es- tatísticas sanitárias; o reforço de capacidade dos meios laboratoriais; a regulação técnica das con- dições sanitárias das habitações e construções; o estudo acerca das melhores formas de captar e distribuir águas para consumo; a formação avançada de técnicos especializados; a fiscaliza- ção das captações de água e subsequentes infra- -estruturas; o planeamento das obras a realizar; a regulação dos serviços concessionados; a reco- lha e sistematização de dados estatísticos acerca 98 MOP (1956). Elementos para o estudo do Plano de Fo-

mento 1959 – 1964, Vol. VII – Abastecimento de Água às Populações Rurais. Relatório da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização (Direcção dos Serviços de Sa- lubridade). Lisboa: MOP, pp. 18-19.

poderá aproveitar, o estudo da sua pureza, as experiências de colorização, a fixação das regras da sua captação e a indicação das medidas de protecção que é preciso dispensar-lhe para que não possa ser contaminada a montante do pon- to de captagem»105. E o serviço de saúde pública respectivo seria incumbido da «análise química e bacteriológica dessa água e o estudo das suas reacções mórbidas sobre a população»106. Mais ainda, determinava-se que a água abastecida por quaisquer companhias estaria sujeita à fis- calização do Governo através do Conselho de Melhoramentos Sanitários.

No entanto, e apesar da clareza com que se enunciavam e consolidavam estas atribuições através da legislação publicada entre 1899 e 1904, tornava-se igualmente evidente que o su- cesso deste quadro governativo dependeria de um conjunto diverso de factores. Por um lado, da capacidade de articulação e cooperação inter- -institucional entre dois ministérios, e de ambos com as mais de duas centenas e meia de câma- ras municipais, que representavam uma enorme diversidade de contextos, contingências e dis- ponibilidades financeiras. Depois, colocava-se a questão da capacidade técnica das instituições envolvidas, nomeadamente ao nível do conheci- mento dos modernos preceitos de medicina sa- nitária e engenharia sanitária, fundamental aos trabalhos a realizar. Finalmente, e para que se pudessem orientar os recursos e as intervenções para a efectiva resolução dos problemas, seria necessário proceder a um diagnóstico geral da situação do país, e desejavelmente actualizá-lo com regularidade.

Esta última função seria realizada pela primei- ra vez pelo Conselho de Melhoramentos Sani- tários, sendo os seus resultados publicados em 1903 no Inquérito de Salubridade das Povoações mais Importantes de Portugal107, que se preten- dia pudesse vir a constituir um ‘arquivo sanitário’ a utilizar no futuro. Aplicado a 183 povoações do país, consideradas as mais importantes, os seus resultados não permitiam quantificar o nú- mero de habitações servidas com abastecimento de águas, visto que o trabalho deveria ser «me- lhorado sucessivamente até que se possa com- pletar com a inscrição dos prédios urbanos em cada localidade»108. Contudo, apresentavam-se já elementos de síntese e, com ilustrativo deta- lhe, descreviam-se algumas condições e infra-

105 Artigo 5º do referido decreto.

106 Idem.

107 MOPCI (1903). Inquérito de Salubridade das Povoa-

ções Mais Importantes de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional.

108 Idem, p. 2.

construção (ou adaptação) de habitações com instalações sanitárias adequadas –, aí se descre- viam com detalhe os procedimentos a seguir, bem como as entidades governativas que deve- riam intervir tendo em vista a sua concretização. O Regulamento de Salubridade das Edificações Urbanas enunciava as normas de técnica sani- tária a serem seguidas na construção de novas habitações ou na reconversão sanitária de habi- tações existentes101. Apresentando-se o seu elen- co, detalhavam-se preceitos técnicos, bem como os procedimentos a seguir pelas câmaras muni- cipais. Em Lisboa e no Porto não poderiam ser construídos quaisquer prédios, bairros ou gru- pos de casas para habitação, nem proceder-se à reconstrução ou modificação de qualquer prédio existente, sem licença das respectivas câmaras. No entanto, esta teria que ser fundada em pa- recer prévio do Conselho de Melhoramentos Sanitários, ou da sua delegação distrital. E em todas as restantes câmaras do país deveriam ser publicados regulamentos sanitários dos respecti- vos concelhos, de acordo com as normas agora publicadas, adaptados às circunstâncias locais, e igualmente sujeitos a sanção do Conselho. Já o Regulamento de Fiscalização das Águas Po- táveis Destinadas a Consumo Público102, tendo por objectivo indicar às câmaras municipais os procedimentos a seguir no abastecimento de águas potáveis, reforçava as suas atribuições essenciais: «as câmaras municipais serão desde já obrigadas a proceder às obras necessárias, para que as águas das actuais fontes dos res- pectivos concelhos fiquem protegidas contra qualquer agente da sua contaminação, e a es- tabelecer posturas, informadas pelas delegações de saúde, para manter o asseio, evitar depósitos imundos e outra qualquer causa de poluição das águas, tanto no lugar onde são colhidas como na sua passagem»103. Para o efeito, e em jeito de contribuição para o exercício das atribuições sanitárias, deveriam custear a criação de uma rede distrital de laboratórios de análises quími- cas e bacteriológicas, para uso de delegados e subdelegados de saúde104.

Qualquer povoação que pretendesse abastecer- -se de águas potáveis deveria solicitar ao Gover- nador Civil do seu distrito, através do presidente da câmara, o inquérito sobre as condições de salubridade. O serviço de minas do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria de- terminaria então o «volume de água que se

101 Decreto de 14 de Fevereiro de 1903. 102 Decreto de 11 de Maio de 1904. 103 Artigo 2º do referido decreto.

As políticas de abastecimento e saneamento de águas como problema

-estruturas sanitárias relativamente às povoa- ções inquiridas. Assim, das 183 povoações, 110 teriam acesso a abastecimento de água de boa qualidade, sendo esta de má qualidade em 62 dessas localidades, e escassa em apenas 23 (ver Figura 3).109

Depois, descreviam-se os contextos locais re- lativamente a estas variáveis, indicando-se: a origem da água captada (poços ou nascentes); quais os meios de captagem utilizados; quais as condições de transporte das águas da chuva, das regas, das manufacturas, dos despejos dos prédios, dos depósitos sólidos e líquidos das la- trinas, e do lixo e lamas das ruas; a situação das fossas existentes, como eram construídas, qual a sua forma e situação, se são estanques e como se faz o seu despejo; a disposição dos canos de esgoto, sua forma e materiais utilizados na sua construção; o destino dos despejos, ora retidos em fossas, ora transportados para longe da po- voação; etc. (ver quadro 1 onde se apresentam, a título de exemplo, os casos das cidades de Lis- boa e Castelo Branco).110

No entanto, e apesar de ser uma iniciativa pioneira, e de ter sido entendida como um primeiro passo tendo em vista a criação de um arquivo que im- portava desenvolver, aperfeiçoar e actualizar no futuro, o inquérito de 1903 evidenciava uma sé- rie de limitações significativas. A primeira, e mais relevante, diz respeito à sua abrangência popula- cional: incluindo 183 povoações, representando um total de 1 117 817 habitantes, ficavam fora do

109 MOPCI (1903). Inquérito de Salubridade das Povoa-

ções Mais Importantes de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, pp 3

110 Apresenta-se apenas uma selecção das variáveis inqui-

ridas.

seu âmbito de observação 3 921 927 habitantes,111 ou seja, mais de três quartos do total da população residente em Portugal continental em 1900. Assim, e se através do inquérito se determinava que 110 povoações tinham acesso a água de qualidade, e que essas povoações representavam um total de

761 414 habitantes, não era possível determinar a situação relativa ao remanescente da população. Depois, não se enunciavam os critérios de aná- lise da qualidade dessas mesmas águas, perma- necendo a dúvida relativamente à forma como as mesmas eram avaliadas, acentuada pela uti- lização de expressões de natureza subjectiva na sua descrição detalhada («águas de boa qualida- de», «águas de qualidade aceitável», «águas de má qualidade», etc.).

Finalmente, e em relação às restantes variáveis inquiridas, denotava-se igualmente a falta de cri- tério uniforme na avaliação, bem como a carência de outros dados que poderiam ser significativos do ponto de vista do diagnóstico, nomeadamen- te os tipos de abastecimentos prevalecentes em cada povoação (domiciliário ou por fontanário) ou a regularidade com que eram feitas as análises à qualidade da água, e por quem.

Na verdade, novos inquéritos sanitários só vol- tariam a ser realizados na década de 1930, fac- to que denotava, para além da incapacidade de recolher informação necessária à monito- rização dos propósitos políticos apresentados, a ineficácia geral dos pressupostos da reforma sanitária implementada no início do século XX. 111 Recorde-se que, de acordo com o Censo de 1900, re-

sidiam em Portugal continental 5 039 744 habitantes.

25 143 65 8 58 14 86 26 72 23 62 110

Depósitos insalubres no campo a pequena distância Sem fossas nem canos de esgoto Fossas mal construídas Fossas móveis Depósitos insalubres dentro das povoações Sem canos de esgoto Fossas bem construídas Canos de esgoto mal construídos Canos de esgoto bem construídos mas rede incompleta

Nº de povoações Água de má qualidade

Água em quantidade escassa

Água de boa qualidade Figura 3

Situação sanitária nas 183 povoações mais importantes de Portugal continental em 1903109