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Poder, instituições e norma: meios de apropriação do

1 TERRITÓRIO E PODER: APORTES CONCEITUAIS PARA

1.3 Poder, instituições e norma: meios de apropriação do

Ao considerarmos a relação entre o poder e o espaço, bem como a maneira como tais relações são materializadas, é fundamental discutirmos a questão da norma e das instituições. Tal pensamento baseia-se na apreensão de que o poder representa a capacidade de criar assimetrias nas relações em prol de um fim determinado, tornando as normas maneiras de instrumentalizar tais assimetrias, à medida que esquadrinha e define os atores e sua ação espacial, sob a ótica da legalidade. Assim, pensar a conformação das normas, a partir da ação e da intencionalidade das instituições será o viés adotado nesta dissertação. Neste item a discussão entre as normas e as instituições será permeada pelo debate das técnicas do poder.

Em relação às características das técnicas do poder, Foucault (2008) destaca: (a) a definição de espaços de segurança, (b) o tratamento do acontecimento, (c) as formas de normalização e (d) a correlação entre a técnica de segurança e a população. Analisemos os três primeiros.

No que tange a definição dos espaços de segurança, importa ao autor compreender o problema da organização espacial da cidade, seja em termos abstratos da função da capital e do planejamento da cidade, bem como os conteúdos materiais da urbanização das cidades. Deste modo o autor resume suas proposições, afirmando que

enquanto a soberania capitaliza um território, colocando o problema maior da sede do governo, enquanto a disciplina arquiteta um espaço e coloca como problema essencial uma distribuição hierárquica e funcional dos elementos, a segurança vai procurar criar um ambiente em função de acontecimentos ou séries de acontecimentos ou de elementos possíveis, séries que vai ser preciso regularizar num contexto multivalente e transformável. O espaço próprio da segurança remete portanto a uma série de acontecimentos possíveis, remete ao temporal e ao aleatório, um temporal e um aleatório que vai se inscrever num espaço dado (FOUCAULT, 2008, p. 27).

Neste ínterim as discussões acerca da emancipação municipal podem ser compreendidas enquanto um dispositivo jurídico, ao criar uma diferenciação entre a porção do espaço ao qual se regulamenta a partir de unidade territorial especifica,

daquele ao qual não pertence, um dispositivo disciplinar, a medida em que permite uma ação reguladora mais aproximada, com regras especificas de fiscalização e coerção em relação aos assuntos da municipalidade e como um dispositivo de segurança, em que as políticas municipais atuariam sobre um novo conjunto de possibilidades, bem como as probabilidades quando da criação de um novo ente em relação ao conjunto, por exemplo no relativo a arrecadação de tributos e seus respectivos repasses.

No tocante ao tratamento do aleatório o autor irá discutir a relação com o acontecimento, tendo como exemplo as técnicas de governo utilizadas, principalmente pelo governo francês, para lidar com o problema da escassez alimentar. Ao considerar esta discussão Foucault (2008) identifica que em um primeiro momento adotou-se um sistema jurídico e disciplinar, ao mesmo tempo, tendo como premissa uma série de limitações, de preço, estocagem, exportação e cultivo de cereais. Sistema de limitações este que não prescindirá de mecanismos de vigilância que possam garantir tais limitações. Deste modo o autor argumenta que este ³sistema antiescassez alimentar, sistema essencialmente centrado num acontecimento eventual, um acontecimento que poderia se produzir e que se procura impedir que VH SURGX]D DQWHV TXH HOH VH LQVFUHYD QD UHDOLGDGH´

(FOUCAULT, 2008, p. 43-44).

Por outro lado, a partir das discussões empreendidas por fisiocratas e posteriormente com a adoção da técnica de governo mercantilista um outro GLVSRVLWLYR VHUi LPSOHPHQWDGR FRQIRUPH H[S}H R DXWRU ³p XP WUDEDOKR QR SUySULR elemento dessa realidade (...) é apoiando-se nessa realidade, e não tentando impedir previamente, que um dispositivo vai ser instalado, um dispositivo que é precisamente, a meu ver, um dispositivo de segurança e não mais um sistema MXUtGLFRGLVFLSOLQDU´(FOUCAULT, 2008, p. 49). Este dispositivo estará baseado não mais nas limitações e proibições do sistema precedente, mas na liberdade do comércio e a auto regulação entre os acontecimentos que manterá estabilizada a escassez alimentar.

No que concerne aos movimentos de emancipação municipal os dispositivos relacionados ao tratamento do acontecimento podem ser compreendidos a partir das diferentes regulações sobre o processo de divisão da malha municipal. Enquanto

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momentos de maior concentração de poder nos governos centrais e leis mais rígidas representam dispositivos jurídicos e disciplinares, em que há uma série de limitações a criação de novas entidades territoriais, seja pela exigência de estruturas dificilmente alcançáveis por áreas com menor arrecadação, seja pela exclusividade do poder central em criar tais unidades, ou por outro lado, dispositivos de segurança, em que são criados mecanismos descentralizados de controle, considerando que o conjunto da população regulará seu processo, por exemplo, a partir da realização de consultas plebiscitárias na área afetada, estabelecendo-se os critérios mínimos para sua realização.

A terceira característica dos dispositivos de segurança refere-se as formas de normalização. Ao iniciar esta discussão o autor traça importante diferenciação entre a normalização e a normação. Tratando dos mecanismos disciplinares Foucault argumenta que

a normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um modelo ótimo que é construído em função de certo resultado, e a operação da normalização disciplinar consiste em tornar as pessoas, os gestos, os atos, conformes a esse modelo, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem não é capaz (FOUCAULT, 2008, p. 75).

Por enquadrar as pessoas, as coisas e o os atos em um esquema dual, normal e anormal, o autor defende que se visa mais a normação do que a normalização.

Tendo como exemplo de estudo o tratamento da varíola, e posteriormente a vacinação, ao comparar as técnicas disciplinares e as de segurança o autor afirma que

nas disciplinas, partia-se de uma norma e era em relação ao adestramento efetuado pela norma que era possível distinguir depois o normal e o anormal. [Nas técnicas de segurança], ao contrário, vamos ter uma identificação do normal e do anormal, vamos ter uma identificação das diferentes curvas de normalidade, e a operação da normalização vai consistir em fazer essas diferentes distribuições de normalidades funcionarem uma em relação as outras e em fazer de sorte que as mais desfavoráveis sejam trazidas às que são mais favoráveis. Temos portanto aqui uma coisa que parte do normal e que se serve de certas distribuições consideradas, digamos assim, mais normais que as outras. São essas distribuições que vão servir de norma. A norma está em jogo no interior de normalidades diferenciais. O normal é que é primeiro, e a norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel operatório. Logo, eu diria que não se trata mais de

uma normação, mas sim, no sentido estrito, de uma normalização (FOUCAULT, 2008, p. 83).

Assim o entendimento das técnicas de poder envolvidas nos movimentos de emancipação municipal esta característica pode ser compreendida a partir da definição da forma normal de um ente territorial deste âmbito, em que consiste?

Como se organiza? Que funções e estruturas deve deter? Assim são discutidos os critérios que levariam a permitir a criação de uma nova unidade, uma norma que poderá ser tanto generalizadora, quanto regionalizada.

A partir destas três características das técnicas do poder, definição de uma porção do espaço de atuação, forma de considerar e tratar o acontecimento, controlando sua ocorrência e suas características, bem como a instituição da normalização, definido o que é, ou dentro do quadro especifico, o que pode ser aceito enquanto normal, serão encaminhadas nossas leituras. Pois tais características podem ser observadas nas disputas acerca da apropriação do espaço por meio da criação de novos entes territoriais, tais quais os municípios.

Neste sentido, compreender o encadeamento destas ações demanda o entendimento que não é somente ligado ao indivíduo ou o grupo. Deste modo, trataremos da discussão acerca do papel das instituições nestes processos. Ao debater sobre DVRFLHGDGHFDSLWDOLVWD2¶1HLOO(2004) afirma que

a dimensão político-institucional propicia as relações entre o Estado, a sociedade e o regime político e compreende o modelo de desenvolvimento adotado. Teria por finalidade assegurar os objetivos e ações planejadas do Estado, assim como o funcionamento das instituições, normas e regulamentações que implementam a economia e orientam os atores políticos através de seus projetos (O'NEILL, 2004, p. 50).

Nestes termos compreender a função das instituições é fundamental a compreensão dos arranjos territoriais, tendo em vista sua estreita relação com as normas e regulamentações. As instituições surgem a partir da tipificação da sua ação, ou seja, elas surgem a partir do momento em que seu objetivo é determinado, não existindo fora do papel que lhe cabe (O'NEILL, 2004).

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1RFDPSRGDHFRQRPLDVHJXQGR2¶1HLOO(2004), as instituições representam um conjunto de regras que são obedecidas, sob a ameaça de sanções, em uma outra perspectiva, a partir do novo institucionalismo sociológico, estas são marcos de referências culturais, aos quais os indivíduos não conseguem desvincular seu comportamento, a leitura da ciência política, por sua vez, concebe que as instituições representam o conjunto de normas, tradições e costumes, sendo a fonte de estabilidade que orienta o comportamento do indivíduo na tomada de decisões.

Ao considerar a relação entre as instituições e o território a autora afirma que

uma forma de institucionalização clara é a que encontramos no território definido pelas relações de poder. A sociedade, através de um pacto ou mesmo de normas estabelecidas pelo Estado, legitima o poder quer através do voto, elegendo representantes, quer através da definição de contornos políticos-administrativos nos territórios. A ação é deslocada do indivíduo para um comportamento coletivo ou sancionado pelo coletivo, que é institucional (O'NEILL, 2004, p. 60).

Ao discutirmos, nos capítulos subsequentes as diferentes regulamentações acerca do poder local no Brasil, em especial a partir da Constituição de 1988, e a análise do exemplo específico da busca de emancipação do Alcântara, em relação ao município de São Gonçalo, as características das técnicas de poder, bem como o entendimento dos pactos institucionais estabelecidos serão as linhas norteadoras da análise. Entretanto, conformando a base teórica desta pesquisa é necessária a reflexão sobre os discursos.