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4 POLÍCIAS OSTENSIVAS NO RECIFE E EM MADRI: CONTEXTOS

4.1 Brasil e Espanha: um breve panorama histórico da segurança pública

4.1.1 Polícia no Brasil: mudanças e permanências

Durante o Império (1822 -1889) as forças policiais do Brasil eram compostas por corpos militares ainda pouco formados e pouco disciplinados com o objetivo de controlar a população local no contexto de uma sociedade escravocrata. É nessa época que são criadas as primeiras forças policias no País. Em 1808 foi criada a Intendência-Geral de Polícia da Corte, com a função de zelar pelo abastecimento da Capital à época, o Rio de Janeiro, e de manutenção da ordem. Em 1809 foi criada a Guarda Real, uma força policial militar que tinha a função de manter a ordem. Posteriormente, em 1831, a Guarda Real é extinta e em seu lugar foi criado,

no mesmo ano, o Corpo de Guardas Municipais Permanente, também militar (Holloway, 1997). Seja centralizada, no período do Império e durante as ditaduras no País, seja como forças dos estados federados durante as repúblicas, o caráter militar presente em suas origens acompanhará a polícia e os assuntos de segurança pública ao longo de toda a história do Brasil20.

Na a Primeira República (1889-1930) com a descentralização dos poderes nos estados e o crescimento das cidades brasileiras, as forças policiais estaduais passam a se formar como pequenos exércitos, as atividades de policiamento interno ficam em segundo plano, uma vez que o interesse primeiro das então chamadas “Forças Públicas Estaduais” era atuar como pequenos exércitos contra o governo central da Primeira República e manter a autonomia dos estados federados. Interesses políticos estavam acima dos interesses de manutenção da ordem interna (Ege, 2013).

A Guarda Civil de São Paulo surge em 1926 nesse contexto, como força auxiliar da Força Pública para dar conta da segurança na cidade, deixada em segundo plano. As atribuições da Guarda Civil eram: “Vigilância e policiamento da capital, inspeção e fiscalização de veículos, de pedestres, das solenidades, festejos e divertimentos públicos [...], serviços de transportes policiais e comunicações por meio de telégrafo e telefone da polícia” (Ege, 2013, p.51). Apesar de civil, a Guarda de São Paulo compartilhava de uma estética e características militares. Além disso, a presença militar nos mandos da organização continua existindo, estabelecendo regulamentos internos. As atuações da Guarda Civil, porém, são consideradas menos repressivas que as da Força Pública e o regulamento interno dava indicações para um serviço mais voltado para o cidadão:

Era principalmente na desenvoltura operacional que os aspectos civis e cidadãs da função podiam ser percebidos na Guarda Municipal paulista; a ação preventiva era recomendada, devia-se prevenir o delito para a boa manutenção da ordem. Remendava-se ao guarda cautela nos ‘motivos que geram suspeitas’, os indivíduos abordados deveriam ser tratados com termos que não os escandalizassem, deixando justificada ao abordado a necessidade da ação. De acordo com seu regulamento, as prisões em flagrante deveriam ser realizadas com ‘polidez policial’ (Ege, 2013, p.53).

A partir da ditadura de Vargas (1930-45) há um movimento de centralização e controle das forças policiais estaduais, agora já denominadas Polícias Militares, para evitar novas

20 “[A] proximidade das PMs com os meios de força combatente, sobretudo após a criação do estado republicano, não se restringiu apenas à adoção do sobrenome "Militar". Elas nasceram, em 1809, como organizações paramilitares subordinadas simultaneamente aos Ministérios da Guerra e da Justiça portugueses, e gradativamente sua estrutura burocrática foi tornando-se idêntica à do Exército brasileiro. Até hoje, o modelo militar de organização profissional tem servido como inspiração para maior parte das Polícias Militares” (Muniz, 2001, p.179).

insurreições armadas contra o governo central. Foi nesse período que pela primeira vez na Constituição de 1934 as Polícias Militares foram estabelecidas como forças reservas do Exército e se institucionalizou a instrução castrense nessas corporações. As polícias estaduais militares tinham a função de manter a ordem pública e reprimir divergentes políticos e é também durante o governo Vargas que os militares têm a institucionalização do foro privilegiado e a criação dos tribunais militares (Ege, 2013).

Com o fim da ditadura de Vargas, a Constituição de 1946 definiu pela primeira vez as funções das polícias militares como responsáveis pela segurança interna e manutenção da ordem nos Estados, mas não modificou a sua natureza militar nem sua posição de forças auxiliares do Exército. As Guardas Civis, não apenas em São Paulo, cresciam e consolidavam suas atividades de policiamento interno nas capitais21, mas com o golpe militar de 1964 a militarização e centralização da segurança pública no Brasil se consolida e as Guardas começam a perder espaço na segurança:

Neste período nossos policiais receberiam o treinamento de guerra, cargas de baioneta e técnicas de controle de distúrbio civil norteariam a formação do policial-soldado em todos os estados, as forças públicas assumiriam o papel de destaque nos assuntos relacionados a aplicação da lei, deixando como coadjuvante a Guarda Civil, que após o golpe, foi diminuindo gradativamente devido a influência dos militares(Ege, 2013, p.66).

A Constituição de 1967 manteve as policias militares estaduais como força reserva do Exército e estas tornaram-se representantes do regime militar nos estados, já que apesar de serem forças estaduais, em 1969 o Exército passa a ter o controle sobre as polícias militares através da Inspetoria das Polícias Militares, órgão do Estado Maior do Exército, para evitar possíveis levantamentos contra o poder central. Em 1970 as Guardas Civis são militarizadas e a partir de então toda atividade de patrulhamento ostensivo nos estados federados é competência exclusiva da Polícia Militar. Os regulamentos disciplinares das polícias eram semelhantes aos do Exército e a formação dos policiais era responsabilidade do Ministério do Exército. A segurança pública militarizada servia ao Estado e não aos cidadãos (Carvalho, 2003).

Assim, durante o Regime Militar:

A definição de estrutura, os objetivos e os postos chave de coordenação [da polícia] foram avocados pelo Ministério do Exército. O objetivo da legislação era dar ao Comando Nacional a possibilidade de controlar a segurança pública. É este processo de federalização que merece ser estudado, pois revela a

21 Já em 1942 a Guarda Civil estava presente em 21 capitais. Em 1947 a Guarda Civil paulista deixa de ser auxiliar da Força Pública se tornando a primeira polícia civil sem ser subordinada aos militares no Brasil.

intencionalidade do regime militar na reorganização da segurança pública. As suas principais intervenções na área, com consequências sentidas até os dias de hoje, fizeram parte de um processo planejado de reestruturação do setor. Entre 1966 e 1970 a arquitetura institucional da segurança pública foi reformulada e recebeu os contornos que foram apenas parcialmente redefinidos na Constituição Federal de 1988 (Guerra, 2016, p.16).

Como aponta o trecho acima, com a redemocratização não ocorreram mudanças profundas no texto constitucional de 1988 relativo ao papel e posição das Polícias Militares estaduais em relação às Forças Armadas. As Polícias Militares continuam sendo forças de reservas do Exército e únicas responsáveis pelo policiamento ostensivo nos estados. Aparece contemplada a criação facultativa das Guardas Municipais no § 8º do artigo 144 da Constituição de 1988, porém, o papel das Guardas Municipais, diferente do papel desempenhado pelas Guardas Civis, não pode ser considerado de polícia ostensiva, dado que essa é uma atribuição exclusiva das Polícias Militares. As atribuições constitucionais das Guardas Municipais se restringem a proteção dos bens, dos serviços e das instalações do Município. Atualmente há, porém, uma multiplicidade de configuração dessas organizações nos municípios brasileiros, o que gera debates sobre a constitucionalidade da atuação de algumas delas.

Por exemplo, a Guarda Municipal de São Paulo, a chamada Guarda Civil Metropolitana (GCM) possui porte de armas regularizado desde 2003 através da PORTARIA 128/13 - SMSU, após a aprovação da lei Federal 10.826 e tem atuado em assuntos de segurança pública preventiva, tendo como áreas prioritárias de atuação, de acordo com o site oficial da Prefeitura de São Paulo, a proteção escolar, através de rondas ou viaturas fixas nas escolas; proteção ao patrimônio, proteção do meio ambiente, através da fiscalização de Áreas de Proteção Ambiental; proteção aos agentes públicos; proteção às pessoas em situação de risco e controle do espaço público, através do monitoramento pela Central de Atendimento Permanente de Emergência, como apoio aos outros órgãos de estaduais emergências.

Assim, a GCM tem um papel bastante ativo em assuntos de segurança pública em São Paulo e suas atribuições não se resumem as descritas na Constituição. Atuam não apenas na proteção do patrimônio do município, mas também como polícia preventiva e de mediação de conflitos, fazendo um trabalho de polícia mais próxima ao cidadão. A herança militar, porém, aparece também nessa organização. Apesar de ter nascido civil e durante a democracia, com exceção de um Delegado de 2002 a 2004, os comandantes da GCM foram todos coronéis até 2009, quando o comando foi dado a um Inspetor.

Já a Guarda Municipal do Rio de Janeiro não possui porte de armas de fogo e suas funções são mais limitadas e mais próximas das atribuições descritas na Constituição quando

comparadas a GCM. Em 2011, a Prefeitura do Rio de Janeiro deu início ao projeto das Unidades de Ordem Pública (UOPs) onde os Guardas Municipais fazem patrulhamento 24h em bairros da cidade para “coibir desordens como estacionamento irregular, ambulantes sem licença, entre outras ações que venham a ferir o Código de Posturas e a Legislação do Município.”22 Mais uma vez se faz notar a permanência de um legado militar em assuntos de segurança pública no Brasil, apesar de sua natureza civil, o comandante da GM-Rio atualmente (2017) é um Coronel.

No caso da Guarda Municipal do Recife (GMR) seu comando é civil e o porte de armas também não está autorizado. Quando comparada com a GCM e GM-Rio, seu papel na segurança pública do município é ainda mais restrito, já que se resume a: “zelar pelos prédios públicos, pelas áreas de preservação do patrimônio natural e cultural do município e fiscalizar a utilização dos parques, praças e monumentos. ”23 Suas atividades são de proteção ao patrimônio público, atuação como agente de trânsito na CTTU (Companhia de Trânsito e Transporte) e na Brigada Ambiental. Atualmente (2017), conta com 1.425 agentes, de acordo com os dados da Prefeitura do Recife.24

A Lei nº 13.022, publicada em 11/8/2014 cria o Estatuto Geral das Guardas Municipais e amplia suas funções. Se prevê às Guardas Municipais o poder de polícia, autorizando o porte de arma e o dever de proteger não só o patrimônio municipal, mas os cidadãos e participar na segurança pública dos municípios através de patrulhamento e interação com a sociedade civil, como apontado no texto da lei: “para discussão de soluções de problemas e projetos locais voltados à melhoria das condições de segurança das comunidades”, bem como “garantir o atendimento de ocorrências emergenciais, ou prestá-lo direta e imediatamente quando deparar- se com elas” e “desenvolver ações de prevenção primária à violência, isoladamente ou em conjunto com os demais órgãos da própria municipalidade, de outros Municípios ou das esferas estadual e federal”25.

Apesar da entrada em vigor da nova lei, grandes mudanças ainda não se produziram nos municípios e a atuação das Guardas Municipais na manutenção da segurança pública no âmbito local ainda tem um grande caminho a percorrer. As Polícias Militares estaduais continuam sendo, na prática, as polícias ostensivas no Brasil incumbidas de lidar com as demandas diárias da segurança pública nos municípios. Continuam fortemente hierarquizadas, comandadas por

22 Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/web/gmrio/unidades-de-ordem-publica 23 Fonte: http://www.recife.pe.gov.br/pr/servicospublicos/guardamunicipal/ 24 Fonte: http://www2.recife.pe.gov.br/noticias/05/10/2015/prefeitura-aumenta-em-cerca-de-30-efetivo-da- guarda-municipal-do-recife 25 Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13022.htm

oficiais militares e com altas taxas de mortalidade de civis em confrontos armados para manutenção a ordem interna26.

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