2 AS POLÍTICAS SOCIAIS
2.2 A TRAJETÓRIA DAS POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL
2.2.2 A política de assistência social
A política de assistência social no Brasil, durante muito tempo,
foi apoiada pela matriz do favor, do clientelismo, do apadrinhamento e
do mando, configurando um padrão arcaico de relações. Associada a
isso, e por seu caráter filantrópico, geralmente privado e confessional, a
assistência social se caracterizou historicamente como não política,
sendo renegada como secundária e marginal do contexto das políticas
sociais (COUTO, et al, 2014).
O padrão de desenvolvimento do sistema de proteção social
brasileiro, assim como dos países latino americanos, ocorreu de forma
diversa do que nos países europeus, caracterizando-se pelo acesso a bens
e serviços sociais de forma desigual, heterogênea e fragmentado
(YAZBEK, 2012). A experiência colonial e a escravidão, que
persistiram no país por um longo período de tempo, colocaram para os
trabalhadores a responsabilidade pela sua subsistência. E até o século
XIX obras sociais e filantrópicas, ações de ordem religiosa e redes de
solidariedade ganharam corpo.
Em São Paulo, por volta dos anos 1560, surgiram instituições de
atendimento à pobreza que se expandiram nos séculos seguintes através
de ações sociais de diversas instituições religiosas. Essas práticas
caracterizavam um modelo de assistência que recolhia dos ricos e
distribuía aos pobres, mesclando ações de assistência e repressão e
caracterizaram a esmola como a “primeira modalidade de assistência
social aos pobres no Brasil colonial, seguida da criação de instituições
asilares e tutelares” (YAZBEK, 2012, p.295). A criação das Santas
Casas, que inicialmente atuavam com serviços ambulatoriais e
hospitalares, gradativamente ampliaram os serviços de assistência,
principalmente asilares, à população com hanseníase, doentes, inválidos,
crianças órfãs, entre outros.
Esse modelo sofre alteração com a expansão da econômica
através da exportação do café e, no início do século XX, a pobreza passa
a ser vista como incapacidade pessoal e objeto da benemerência e da
filantropia. É somente nos anos de 1930, com as diversas mobilizações
da classe trabalhadora, que alguns direitos passam a ser conquistados,
como a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e o salário mínimo.
Cabe destacar que, ao mesmo tempo em que houve conquistas, o Estado
brasileiro também transformou a questão social em problema de
administração desenvolvendo políticas e ações como forma de
desmobilizar a classe trabalhadora e controlá-la (YAZBEK, 2008) e
optou pela via do seguro social como forma de desenvolver acordos de
interesse do capital e dos trabalhadores.
Com o processo de industrialização, as políticas sociais passam a
se desenvolver de forma crescente, porém dividido, de um lado ações
voltados para os trabalhadores inseridos no mercado de trabalho formal
e, de outro, à população pobre, sem carteira de trabalho assinada ou
desempregada. Dessa forma, o Estado não somente incentiva a
benemerência, mas passa a ser responsável por ela, na medida em que,
no ano de 1938 é criado o Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS)
(YAZBEK, 2012).
Em 1942, com a criação da Legião Brasileira de Assistência
(LBA), o governo Vargas atrela o social ao primeiro damismo
(MESTRINER, 2001). Inicialmente voltada para atender as famílias dos
expedicionários brasileiros, com o tempo a LBA se volta para a
assistência à maternidade e à infância, iniciando a política de convênios
e caracterizando-se por ações paternalistas e de prestação de auxílios
emergenciais e paliativos, contribuindo significativamente para a relação
entre assistência social e a filantropia e a benemerência (YAZBEK,
2008).
Com a queda de Vargas, a retomada do Estado de direito e a
promulgação da Constituinte de 1946, o novo governo se aproxima um
pouco mais da questão social criando instituições como o Serviço
Nacional de Aprendizagem do Comércio (SENAC), o Serviço Social do
Comércio (SESC) e o Serviço Social da Indústria (SESI) e amplia os já
existentes LBA e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
(SENAI). E com a criação das escolas de Serviço Social nos anos 1936,
difunde-se a necessidade de introdução desses profissionais nas
instituições e de qualificação do voluntariado (MESTRINER, 2001).
O início da década de 1960, com o golpe militar e a instalação do
Estado autoritário, abriu o país ao capital monopolista, acirrando as
contradições do capitalismo periférico, culminando na expansão e na
modernização do sistema de proteção social brasileira. Nesse período,
houve a ampliação do INPS, a criação, em 1974, da Renda Mensal
Vitalícia (RMV), a criação do Ministério da Previdência e Assistência
Social (MPAS) que incorporou a LBA e a Fundação Nacional e Bem
Estar do Menor (FUNABEM) e a ampliação de alguns direitos
trabalhistas (YAZBEK, 2012).
A partir da década de 1970 observa-se um avanço organizativo da
sociedade civil, trazendo, nos anos 1980, a pobreza para o centro do
debate da agenda social do país. Com a promulgação da Constituição
Federal de 1988 e da LOAS em 1993, a assistência social passou a
integrar um novo campo: o campo da seguridade social e da Proteção
Social Pública. Porém, apesar da relevância de integrar a seguridade
social brasileira, a Constituição Federal de 1988 trouxe marcos
regulatórios excessivamente genéricos para orientar a implementação da
política de assistência social. Ao mesmo tempo, as questões que
alcançaram maior precisão no texto constitucional, resultaram em
regulamentações ultraminimalistas e restritivas, como foi o caso do
Benefício de Prestação Continuada (BPC), que delimitou a renda per
capita para acesso ao benefício em ¼ de salário mínimo e idade mínima
de 70 anos (BRASIL, 2008).
Em relação à LOAS, pode-se afirmar que ela inovou ao
apresentar um novo desenho para a assistência social, “ao afirmar seu
caráter de direito não contributivo, ao apontar para a necessária
integração entre o econômico e o social, a centralidade do Estado na
universalização e garantia de direitos e de acessos a serviços sociais com
a participação da população” (COUTO, et al, 2014, p.57). A LOAS
contribuiu para a redução da idade mínima para acesso ao BPC, sendo
atualmente 65 anos. Também inovou ao inserir o controle social na
política de assistência social, ou seja, da sociedade controlar a
formulação, gestão e execução das políticas assistenciais e poder indicar
caminhos para a instituição de novos parâmetros de negociação de
interesses e direitos de seus usuários, contribuindo significativamente
para o exercício da cidadania e da democracia.
Destaca-se, porém, que, mesmo após essas significativas
mudanças e inovações, a política de assistência social não foi
implementada conforme preconizava a legislação, principalmente no
que se refere ao financiamento, regulamentação e controle social. Isso
aconteceu, pois ao mesmo tempo em que ocorreram avanços
constitucionais também ocorreu uma investida neoliberal, fato que
colocou em andamento processos desarticuladores, de desmontagem e
retração de direitos e investimentos no campo social (COUTO, et al,
2014).
Com a entrada de FHC em 1995 e a busca pela estabilização da
economia, são observados resultados pouco favoráveis para a proteção
social na esfera pública estatal, culminando em desacertos e tensões
entre a adequação ao ambiente neoliberal e as reformas sociais exigidas
constitucionalmente. Nesse período, a assistência social será legitimada
como estratégia de enfrentamento à pobreza, conduzindo para a criação,
nos anos que se seguiram do Comunidade Solidária. O referido
programa trazia como prioridades: a redução da mortalidade infantil, o
desenvolvimento da educação infantil e do ensino fundamental, a
geração de ocupação e renda, a qualificação profissional, a melhoria das
condições e alimentação dos escolares e das famílias pobres, a melhoria
das condições de moradia e saneamento e o fortalecimento da
agricultura familiar. Contava com uma rede de parcerias organizada de
forma descentralizada e com base na solidariedade, firmando acordos
entre Estado e sociedade (DRAIBE, 2003). É importante mencionar que
as ações do Comunidade Solidária estavam voltadas aos segmentos
sociais mais carentes e eram desenvolvidas ações focalizadas, com base
em critérios territoriais e de renda. O incentivo ao voluntariado, assim
como a transferência de parte da responsabilidade do Estado pelas
políticas sociais para a sociedade civil, constituía-se em críticas ao
programa.
Em outras palavras, a ofensiva neoliberal tem promovido o
desmantelamento da concepção de seguridade social proposta pela
Constituição Federal de 1988 e a adoção de medidas econômicas e do
ajuste fiscal que implicam no campo da política social, passando a
enfrentar um crescimento no índice de desemprego, pobreza e
indigência. Nessa direção, pode-se dizer que a assistência social, regida
sob a ótica neoliberal, tende a se configurar como política curativa,
paliativa e seletiva, voltada para segmentos sociais mais vulneráveis ou
em situação de risco social (RODRIGUES, 2011).
Apesar de sua prioridade ser o ajuste fiscal e a estabilidade
econômica, a partir de 2001, o governo FHC passa a criar, por meio de
um contrato com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, uma
rede de proteção social. Essa rede criou um conjunto de ações setoriais e
seletivas que conjugavam serviços sociais e transferências monetárias,
com destaque para a expansão do Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil (PETI), criado em 1996, para o Programa Nacional de Renda
Mínima, vinculado à educação, onde foram criados benefícios de
transferência de renda como o Bolsa Escola, o Programa Bolsa
Alimentação, o Agente Jovem e, em 2002, o Auxílio Gás (YAZBEK,
2012).
Esse conjunto de programas federais permitiu o crescimento da
relevância das propostas de transferências monetárias no âmbito da
política social. No governo Lula, uma das ações nesse sentido, foi a
criação do Programa Fome Zero, cujo Cartão Alimentação fazia parte.
No ano de 2003, porém, foi criado o Programa Bolsa Família, visando
unificar e articular o sistema protetivo do país. O Programa Bolsa
família unificou os programas federais de transferência de renda
existentes (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás. PETI,
Agente Jovem e Cartão Alimentação) visando “combater a fome, a
pobreza e as desigualdades por meio da transferência de um benefício
financeiro associado à garantia do acesso aos direitos sociais básicos” e
promover a inclusão social (YAZBEK, 2012, p.307).
Em termos de resultados, o Programa Bolsa Família contribuiu
para a retirada de milhões de famílias da linha da extrema pobreza no
país, porém, apesar dos avanços, o número de pessoas em situação de
pobreza no país ainda é elevado, assim como a taxa de desigualdade,
que é uma das mais altas do mundo. O que se tem observado é que os
programas de transferência de renda focalizados na pobreza e na
extrema
pobreza
revelam
mudanças
nas
políticas
sociais
contemporâneas, substituindo políticas e programas universais por
programas focalizados.
Dessa forma, a assistência social tem sido a política mais
propensa a arcar com o ônus do desmonte contemporâneo dos direitos
sociais. É ela, por conseguinte, a política na qual se observam os
retrocessos mais dramáticos das conquistas sociais previstas na
Constituição Federal brasileira vigente; e a mais instada a se submeter às
regras do workfare imperante desde meados dos anos 1970 (PEREIRA,
2014). Segundo Couto (2015), isso significa dizer que houve um
abandono do debate da universalização no campo da assistência e
proteção social, assumindo a focalização o papel fundamental. Da
mesma forma, o financiamento da política tem sido aplicado com o
entendimento de que a política de assistência social tem apenas
um papel residual, compensatório e dirigido somente a uma parcela da população incapaz de se sustentar por si própria. Reatualiza-se nessa perspectiva o entendimento da política como resposta a incapacidades individuais que devem ser parametradas, com imposição de metas que demonstrem o ‘envolvimento’ positivo tanto dos sujeitos que buscam atendimento na política de assistência social como dos trabalhadores que executam o trabalho [...]. Além disso, ao reconhecer o pouco investimento feito nesse campo, busca focalizar precisamente naqueles enquadrados mais necessitados, na justificativa da qualidade do gasto público, abrindo mão do debate tão caro à proteção social que é a
constituição do direito social universal (COUTO, 2015, p.673-674).