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Políticas afirmativas e seus impactos sociais

Capítulo 2 – Contextualização

2.4 Políticas afirmativas e seus impactos sociais

As ações afirmativas já produzem impactos sociais contrastantes, dentre eles: tornam complexas as concepções de igualdade; revisam valores das sociedades liberais e democráticas relacionados ao direito individual, ao mérito e esforço pessoais; reconstroem o papel da identidade social na sociedade; reafirmam as visões críticas em relação aos seus limites e conseqüências favoráveis à hierarquização social e ao privilégio das elites; explicitam os mecanismos relacionados à distinção hereditária, aos dotes naturais, às circunstâncias que produzem e reproduzem os privilégios na distribuição de bens e de mobilidade sociais; e se

29 tornam fontes de revitalização da participação democrática na concepção e implantação das políticas sociais, quando potencializam a arbitrariedade do Estado na criação e na condução dessas políticas.

Algumas oportunidades produzidas pelas políticas de identidade são, por exemplo, a redefinição de mérito estudantil, como

a capacidade que os estudantes têm de, em condições adversas, superarem as dificuldades encontradas por meio do esforço realizado, mesmo que os resultados ainda não sejam os mesmos que os daqueles estudantes que se encontravam em situações bem mais favoráveis. (Moehlecke, 2004, p. 774).

Nesse sentido, as histórias pessoal e social precisam ser computadas no esforço do estudante para seu processo de aprendizagem acadêmica, seu desempenho e sua conclusão de curso.

Outra contribuição das ações afirmativas, particularmente relacionada às cotas raciais, no Brasil, é o importante confronto do uso da noção de raça em contraposição à busca do seu extermínio. Este confronto abrange a revisão da idéia de uma nação que se imagina miscigenada e indiferente às distinções raciais. Neste sentido Moehlecke (2004) questiona:

Reforçar a democracia racial, mesmo que na condição de ideal de sociedade, não implicaria o risco de apenas perpetuar nossa maneira “nativa” de discriminar e inferiorizar determinados grupos raciais, ainda que de modo sutil, sem que qualquer questão de raça precise ser nomeada? Como escolher entre as “ciladas da diferença” e as ciladas da democracia racial? Em qual apostar nossas fichas? (Moehlecke, 2004, p. 766). Bobbio (1997) nos ajuda a delimitar os impactos das ações afirmativas ao afirmar que a justiça igualitária pressupõe identidade, diferenciação e explicitação de quem é quem na

30 sociedade. Quando afirmamos que “todos os homens são ou nascem iguais”, precisamos especificar “com que entes estamos tratando e com relação a que são iguais, ou seja, é preciso responder a duas perguntas: a) igualdade entre quem?; e b) igualdade em quê?” (Bobbio, 1997, pp. 11-12). Os significados de justiça estão relacionados à legalidade e à ação justa que efetive alguma relação de igualdade.

O caráter universalista da concepção de igualdade civil e o liberalismo da igualdade de oportunidade construíram a obscuridade identitária e cultural, a exclusão de segmentos sociais, dentre eles, os povos colonizados, as mulheres, as crianças e os negros, que supostamente não possuíam a natureza humana dos chamados homens, eram considerados incapazes intelectualmente e de participarem da vida política. Essas ideologias resultaram, por exemplo, nas declarações de direitos humanos, que se conjugavam com a escravização da população negra mundial.

Inserido nesta ótica, Rawls (2002) propõe, para a efetiva justiça social, uma política da diferença, por meio da utilização da identificação racial como medida de igualdade e propõe a igualdade democrática, por meio da combinação do princípio da igualdade de oportunidades com o princípio da diferença. Essas propostas sugerem que as desigualdades de nascimento, os dons naturais e as posições menos favorecidas advindas de gênero, raça e etnia são imerecidas e têm de ser compensadas, os desvios das contingências precisam ser reparados na direção da igualdade.

A noção de merecimento precisa, pois, ser ressignificada. Dessa forma “o homem representativo mais privilegiado não pode dizer que o mereça e, portanto, que tenha direito a um esquema de cooperação no qual lhe seja permitido adquirir benefícios de modo que não contribuam ao bem-estar alheio.” (Rawls, 2002, p. 64).

31 Portanto, a justiça social só é atingida quando as liberdades formais se convertem em liberdades reais por meio da distribuição reparatória de oportunidades.

As concepções distintas de justiça, política social e igualdade, universalistas ou focalizadoras, as visões distintas sobre as relações raciais, a complicada inter-influência entre classe e raça, principalmente no Brasil, as responsabilizações pessoais e sociais, as noções de qualidade e a crítica quanto ao conceito de raça para certificar um direito ou como critério de seleção produzem profundas polêmicas envolvendo políticas com ações class-based ou race- based. Em nosso país, é tentador supor que as políticas sociais racialmente neutras são mais eficientes, pois a pobreza da população envolve, em sua maioria, os negros. Porém, essas políticas sociais têm mantido e reproduzido a situação de desigualdade racial que perdura há séculos.

Nesse sentido, acreditamos que as políticas universais, focais e de identidade se complementam. A luta de classes conjugada à questão racial e à multiculturalidade torna-se mais potente na busca da justiça social. Esse processo pode resultar na ampliação da participação da população nas concepções e gestões de programas que tanto redistribuam os bens, riquezas e benefícios sociais, como minimizem a miséria psíquica, ou seja, os empobrecimentos voltados às relações humanas.

Algumas misérias psíquicas que consideramos importantes para serem atacadas são: a intolerância às diferenças, o racismo, a anulação do outro em seus processos identitários e a competição destrutiva que bloqueia a emancipação do cidadão enquanto sujeito da história. Essa luta envolve a expansão e a melhoria na qualidade de qualquer modelo e destino de política social, particularmente, da educação básica, visando não apenas reparar econômica e socialmente os pobres e os negros, mas também desenvolver sua auto-estima, expressão cultural e criatividade.

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