• Nenhum resultado encontrado

2. AS METRÓPOLES EM SEU LONGO PROCESSO URBANO

3.1. Políticas habitacionais e remoções de favela ao largo do processo histórico brasileiro e

e suas inflexões socioeconômicas

A ordem que é possível destacar dessa auto estruturação não é nem histórica, nem a-histórica, mas trans-histórica, no sentido de que atravessa a história de um modo cumulativo mais do que simplesmente aditivo. Mesmo se comporta rupturas, mudanças súbitas de paradigmas, esses próprios cortes não são simplesmente esquecidos: tampouco fazem esquecer o que os precede e aquilo de que eles nos separam: também fazem parte do fenômeno de tradição e de seu estilo cumulativo. (Paul Ricoeur, 1995, p. 26.)

Ao analisar as políticas públicas voltadas às favelas, pesquisadores das ciências humanas apontam para a década de 1940 como a época em que ocorrem os primeiros projetos oficiais voltados à questão da moradia para pessoas de baixa renda (BAIERLE, 1992, BURGOS, 2006). No entanto, Valladares (2000), Baierle (1992), Maricato (2000) e Pesavento (1999) ressaltam que ações públicas de remoção de moradias consideradas precárias já

ocorriam em décadas anteriores, como as intervenções voltadas aos cortiços9. Valladares, em relação à gerência da pobreza pelos órgãos públicos, observa que no século XIX o cortiço era

(...) caracterizado como verdadeiro "inferno social", o cortiço era tido como antro não apenas da vagabundagem e do crime, mas também das epidemias, constituindo uma ameaça às ordens moral e social. Percebido como o espaço, por excelência, do contágio das doenças e do vício, sua denúncia e condenação pelo discurso médico-higienista foram seguidas por medidas administrativas: primeiro, uma legislação proibindo a construção de novos cortiços no Rio; em seguida, uma verdadeira "guerra" que resultou na destruição do maior de todos, o "Cabeça de Porco"; e finalmente, a grande reforma urbana do prefeito Pereira Passos, entre 1902 e 1906, que se propunha a sanear e civilizar a cidade acabando com as habitações anti-sanitárias. (VALLADARES, 2000, p. 07)

Betânia Alfonsin (2000) ressalta que a separação dos pobres na cidade é característica da sociedade ocidental pós-revolução industrial. Sua análise aponta para a necessidade de observar tanto o discurso oficial como as práticas dos governantes, uma vez que temáticas invisibilizadas nos discursos mantêm-se enquanto ações estratégicas. Os cortiços do século XIX, assim como as primeiras ―vilas de malocas‖ de Porto Alegre, são um exemplo, apresentam-se como invisíveis dentro do contexto público. Os cortiços foram proliferando pelo centro da cidade e nenhum serviço de apoio a seus moradores foi pensado e, quando inoportunos para determinado projeto urbano e para interesses imobiliários, foram removidos (Ibidem).

Essa perspectiva histórica é importante para observamos a longa duração de alguns processos socioeconômicos, incluindo a representação em relação às favelas e seus moradores, representações estas que justificavam as remoções compulsórias organizadas pelo poder público. Então, era comum, também na primeira metade do século XX, ouvir nos discursos dos governantes, ou ler nos jornais associações entre a moradia dos pobres e desordem ou sujeira. Podemos aqui exemplificar com a publicação no jornal Correio do Povo do relatório do então prefeito de Porto Alegre, Ildo Meneghetti, referente ao ano de 1949.

A complexidade do controle das malocas exige um trabalho rude e afanoso, se considerarmos o meio ambiente em que se deve processar a ação do poder público, face aos elementos heterogêneos e inadaptáveis, incapazes, em sua maioria, de compreender a situação de geral precariedade de que se reveste tal espécie de habitação. Ao invés, atêm-se seus moradores simplesmente à forma econômica de viver que as malocas lhes proporcionam, por não

9 Quanto à caracterização dos cortiços, entre final do Século XIX e início do XX, Maria da Penha Siqueira considera que ―representavam variações de um mesmo padrão: o da habitação coletiva. Caracterizados normalmente por um grande portal de entrada que assumiam formas de ferradura, da letra U, alguns apresentavam filas de cômodos alinhando quartos geminados, alguns assobradados‖ (SIQUEIRA, 2008, p. 225).

sujeitarem-se ao pagamento de aluguel. Essas construções, como é sabido, foram levantadas clandestinamente em algumas ruas, em 32 locais diversos (...). Ressentindo-se dos mais rudimentares preceitos de higiene, constituem elas, é certo, grave perigo e constante ameaça não só à saúde de seus moradores, como mesmo da população em geral, e mais, séria advertência aos bons costumes, em virtude da semi-promiscuidade em que se encontram os ocupantes dos improvisados domicílios (...) temos procedido à remoção de centenas dessas moradias por seus pontos mais vantajosos para todos, inclusive mesmo para seus ocupantes, por disporem de área mais espaçosa onde mais comodamente se instalam. (CORREIO DO POVO, 1950, p. 09)

Como se vê, em meados do século XX mantém-se o discurso higienista tão presente na expulsão dos pobres dos cortiços. Nas antigas intervenções do poder público, voltadas à ―limpeza‖ da cidade, os engenheiros e médicos sanitaristas lideravam ―ações de controle da pobreza como sintoma de doença‖ (OLIVEIRA SOBRINHO, 2013, p. 215). Sendo Ildo Meneghetti engenheiro, é possível afirmar que, para além de prefeito, ele era parte de uma elite formada para liderar ações de progresso a partir de uma ordem higienista.

Pelo que observamos o discurso só apresentou algum sentido para as elites, uma vez que aos olhos dos moradores de malocas, sua agência em relação à moradia estava diretamente relacionada à sua sobrevivência na cidade. Não era objetivo não pagar aluguel, apenas os valores deste não condiziam com os seus ganhos. Nesse sentido, é interessante a análise de Agatha Carvalho quando ressalta que a origem das favelas está na precariedade urbana, na ―junção da pobreza dos habitantes com o descaso do Estado, mas também a partir de uma criatividade política e cultural e capacidade de articulação e organização demonstrada pelos seus moradores‖ (CARVALHO, 2016, p. 31).

Ainda sobre o discurso do Prefeito Ildo Meneghetti, convém esmiuçar um pouco a questão dos aluguéis. Ao abordar a política de Getúlio Vargas voltada aos trabalhadores, Adalberto Cardoso nos dá uma dimensão do que era o salário mínimo (criado em 1938) e do quanto o trabalhador gastava em aluguel:

O salário mínimo de 240 mil réis dava para alimentar 2,6 membros da mesma família por mês e nada mais. O simples aluguel de uma casa para essa família, por sua vez, requeria 2,6 salários mínimos. É claro que a renda mínima não se destinava a famílias de classe média, que gastavam apenas com criados, em 1939, 200 mil réis em média. (CARDOSO, 2010, p. 801)

No ano em que foi publicado o discurso de Ildo Meneghetti, o salário mínimo havia sido reajustado para Cr$380,00 e o preço dos aluguéis estava congelado, mas, mesmo assim o valor continuava alto e, além disso, havia carência de casas para alugar. Em 1942, foi criada

no Brasil a Lei do Inquilinato que estipulou o congelamento dos aluguéis com o intuito de proteger os trabalhadores e estimular a construção civil com casas para venda. No entanto, a principal consequência foi um recuo no mercado de aluguéis, com alto número de despejos em um contexto de crescimento das cidades e impossibilidade das pessoas de renda baixa efetuar a compra da casa própria (SIQUEIRA, 2008).

Para entendermos o contexto social em que as políticas de remoções compulsórias são engendradas, é interessante a leitura de Maricato (2003). A autora aponta que as grandes cidades eram representadas pelos cidadãos brasileiros como algo positivo até meados do século XX, quando fatores como violência e extrema miséria não eram disseminados pelos espaços das cidades. Inclusive, o imaginário da metrópole como lugar para viver bem e trabalhar, contribuiu para que os trabalhadores do campo migrassem em massa para centros urbanos que não estavam preparados para recebê-los.

Contudo é claro que outros fatores influenciaram o êxodo rural. Um exemplo foi o fato de a legislação trabalhista, criada em 1943, não abarcar os trabalhadores do campo. Eles também não foram beneficiados com o cercamento dos campos e as novas tecnologias agrárias como a mecanização das lavouras (normalmente apenas os latifundiários tinham condições de adquirir novos maquinários, por exemplo) (MONTEIRO, 2004, QUINTANA, 2011).

Em pesquisa editada em 1951, o sociólogo Laudelino Medeiros conclui que, em Porto Alegre, já no final da década de 1940, as pessoas de origem rural perfaziam um total de 49,45% dos moradores das malocas. Em uma das vilas analisadas, ele realizou um levantamento em relação à profissão que exerciam seus moradores. Concluiu que 54,25% ―trabalhavam de biscates e changas‖ – pequenos serviços ou bicos. Uma atividade considerada rentável e o ―centro de interesse coletivo‖ da comunidade era a coleta de papel velho em um lixão que havia do lado da vila. Quanto ao lazer, havia duas canchas de jogo de osso, muito frequentadas pelos homens (MEDEIROS, 1951).

A migração em massa foi trazendo novos contornos aos bairros e favelas ocupados pelas famílias de baixa renda. A complexidade do processo de urbanização passa a ser interesse de estudos nas Ciências Sociais e Econômicas em meados do século XX, com foco nos processo de ―superurbanização‖. Pesquisadores de orientação marxista, na década de 1960, estudaram sobre a ―massa marginal‖ e a incapacidade do sistema de absorver esses trabalhadores (VALLADARES, 2005).

Também, naquela década, entre as linhas de pesquisa se sobressaem as que partem da Teoria da Marginalidade para pensar os processos urbanos. Essa teoria absorve duas

dimensões novas em relação aos estudos de até então: a dimensão espacial – tendo os bairros marginais como foco de observação – e a dimensão sociocultural a partir da cultura da pobreza (VALLADARES, 2005). Essa teoria tem origem nos estudos de Robert Park que se dedicou a entender o homem marginal, como veremos nesse capítulo.

A Teoria da Marginalidade, segundo Perlman (1977), tornou-se a base do discurso para justificar a remoção. Podemos exemplificar isso através de um documento produzido pela prefeitura de Porto Alegre em 1966. Nesse ano, foi realizado um levantamento sócio habitacional constando uma seção especial chamada ―Marginalismo Habitacional‖ que, ao definir maloca, afirma: ―Nesses aglomerados predominam a promiscuidade, a completa falta de higiene, a mortalidade infantil, a delinquência juvenil, os desajustes familiares, o ‗meretrício‘ desde as mais tenras idades e enfermidades diversas‖ (PREFEITURA, 1966).

O discurso do marginalismo habitacional, utilizado pelo poder público de Porto Alegre em 1966, foi acompanhado de contundentes ações institucionais de expulsão dos moradores de favela para as franjas da cidade. Nesse ano, foi criada a Vila Restinga, 27 quilômetros de distância do Bairro Centro, localizada em um espaço rural em que não havia nenhuma instituição, nenhum tipo de infraestrutura ou estabelecimento comercial. A única linha de ônibus perfazia apenas dois trajetos por dia até a região central da cidade, onde as pessoas ainda trabalhavam (ZAMBONI, 2009).

A criação da Vila Restinga, hoje Restinga Velha, nos faz pensar sobre a forma em geral como, desde o século XIX, as pessoas eram praticamente expulsas de sua moradia. A mudança não se limitava à troca de cortiços e favelas por outro tipo de habitação. Na prática, as pessoas eram incentivadas a sair de regiões mais valorizadas para morarem em zonas periféricas, com pouco ou nenhum recurso. Eles ficavam ―geograficamente isolados das inúmeras oportunidades que a vida urbana tem para oferecer, e que os havia atraído inicialmente‖ (PERLMAN, 1977, p. 236).

Esse tipo de intervenção urbana, que parte da necessidade de ―lugares para os pobres‖, encontrou uma de suas bases teórico-explicativa na ideia de ―ecologia urbana‖ (ver seção 1.3.3) seguida, inicialmente, pelos sociólogos da Escola de Chicago, criada em 1892 (FRÚGOLI Jr., 2005) e depois disseminada pelo mundo em meados do século XX (MONTE- MÓR, 2006). A partir dessa concepção o ―organismo urbano‖ é entendido como um múltiplo de zonas com espaços e funções determinados, havendo uma ―segregação natural por valores e interesses comuns‖ (Ibidem, p. 65). A ideia de Zonas Naturais de Robert Park, e a importância que atribuía à intervenção urbana para a transformação moral, estruturaram algumas políticas públicas de remoção, mas modificando a ideia inicial de Park sobre o

homem marginal. No Brasil o marginalismo era ―algo a ser erradicado materialmente, um sintoma que teria uma cura simples: remoção das favelas e construção financiada pelo governo de moradias adequadas de baixo custo‖ (PERLMAN, 1977, p. 137).

Boaventura Santos, na década de 1970, publicou um estudo das dinâmicas sociais de uma favela do Rio de Janeiro a qual chamou de Pasárgada. Ele observou que o medo da remoção orientava o repertório de estratégias de sobrevivência na favela:

Antes de os terrenos de Pasárgada passarem para o domínio público, várias foram as tentativas empreendidas pela polícia para expulsar em massa os moradores. E mesmo depois disso a sobrevivência da comunidade nunca esteve garantida, uma vez que se conheciam casos de remoção de favelas construídas em terrenos do Estado. Chamar a polícia aumentaria a visibilidade de Pasárgada como comunidade ilegal e poderia eventualmente criar pretextos para remoção. (SANTOS, 1993, p. 06)

Vanessa Zamboni analisa a história de antigos moradores das vilas Ilhota e Santa Luzia localizadas em Porto Alegre e removidas para a Vila Restinga em 1966. A autora acompanha, através de entrevistas e fontes documentais, a formação de um novo território que reuniu pessoas de comunidades diferentes, expulsas de suas moradias localizadas próximas ao bairro central da cidade.

Percebeu-se que os territórios de origem permanecem vivos em suas lembranças, dando-lhes nome e identidade (...) as remoções ao serem impostas de forma arbitrária, desconsiderando aspectos fundantes desses grupos sociais, tais como os laços de pertença aos territórios e ao próprio grupo, tornam-se eventos traumáticos, com sequelas irrecuperáveis. (ZAMBONI, 2009, p. 09)

Na década de 1970, vários pesquisadores passaram a defender a ideia de que não fazia sentido considerar uma favela como um espaço marginal uma vez que são lugares também afetados pelos contextos socioeconômicos. ―Além de crescerem junto com a cidade e apresentarem um grande dinamismo econômico, reuniram uma população que integrava o sistema político, econômico e social dominante‖ (VALLADARES, 2005, p. 254).

Perlman (1977), analisando as favelas cariocas, registrou na década de 1970 que, embora houvesse uma separação entre os moradores da cidade formal e os moradores de favela, eles mantêm interação principalmente através do trabalho, com os moradores da cidade urbanizada. Ela critica a Teoria da Marginalidade descrevendo o ambiente das favelas e seus moradores, ressaltando a diversidade econômica e cultural desses espaços onde, por exemplo, se encontram associações de moradores e famílias que prosperaram com o comércio local. Sobre Nova Brasília/RJ, Perlman salienta a presença de sapatarias, lojas de artigos de

umbanda, loja de roupas etc. Ela sustenta que a favela é parte vital da cidade e nela está integrada.

Estudos mais recentes (BAIERLE, 1992; MAGALHÃES 2013, MENEZES, 2016) também enfatizam o processo de organização dos moradores de bairros de baixa renda e das favelas brasileiras durante o século XX. No Rio de Janeiro foi criada, na década de 1950, a União dos Trabalhadores Favelados e a Federação das Associações de Moradores da Guanabara (FAFEG) que apresentavam como pauta de luta a criação de projetos de urbanização e não remoção. Sérgio Baierle destaca que em Porto Alegre, na década de 1970, já havia 23 associações, apenas na grande Vila Cruzeiro. Em 1979, a Associação dos Moradores da Vila Tronco, parte da Grande Cruzeiro, organizou um abaixo-assinado com a participação de 23 mil pessoas cujo objetivo era sensibilizar as autoridades para a não remoção de moradias e:

Não aceitação de planos feitos em gabinetes fechados por tecnocratas e exigência de consulta popular no caso de planos que envolvam os moradores (...) já que o objetivo era embelezar a área, não era necessário remover os barracos, bastava fornecer o material que os moradores construiriam belas casas em regime de mutirão (...) novas remoções não serão aceitas. (BAIERLE, 1992, p. 290)

Maricato também apresenta importante contribuição ao tratar do processo de segregação espacial que acompanha a formação das favelas e o fenômeno das remoções compulsórias no Brasil. Ela sustenta que esse processo começou com as inúmeras famílias que não tinham condições de comprar ou alugar um imóvel, passando a morar em áreas irregulares (dois milhões de pessoas apenas no município de São Paulo). Normalmente esses territórios apresentam problemas de infraestrutura: ―transporte precário, saneamento deficiente, drenagem inexistente, dificuldade de abastecimento, difícil acesso aos serviços de saúde, educação e creches‖ (MARICATO, 2203, p. 152). Acresça-se que, moradores de favelas costumam ter menos oportunidades de emprego formal e profissionalização com ―maior exposição à violência (marginal ou policial), discriminação racial, discriminação contra mulheres e crianças, difícil acesso à justiça oficial, difícil acesso ao lazer‖ (Ibidem). A forma como os órgãos do Estado, responsáveis pelas políticas de habitação, lidam com esse fenômeno está vinculada, segundo ela, aos interesses imobiliários que marcam o contexto de privatização da esfera pública.

Quando a localização de uma terra ocupada por favelas é valorizada pelo mercado imobiliário, a lei se impõe. Lei de mercado, e não norma jurídica, determina o cumprimento da lei. Não é por outra razão que as áreas ambientalmente frágeis, objeto de legislação preservacionista,

―sobram‖ para o assentamento residencial da população pobre. Nessas localizações, a lei impede a ocupação imobiliária: margens dos córregos, áreas de mangues, áreas de proteção ambiental, reservas. (MARICATTO, 2003, p. 159)

A partir da leitura de Maricato, é interessante focar a análise na estrutura e no traçado do espaço urbano brasileiro que se configurou no século XX, relacionando-o à segmentação de classe. Nesse sentido, os estudos de Caldeira e Frúgoli Júnior são importantes contribuições. Frúgoli destaca as configurações espaciais produzidas salientando que a concentração e heterogeneidade das cidades dão lugar à cidade moderna, segmentada com locais especializados que preveem modernos meios de locomoção para vincular os espaços, sendo as ruas não mais lugar de sociabilidade, de compras, mas de tráfego (FRÚGOLI JÚNIOR, 1995).

Caldeira (2000) ressalta a presença no Brasil, desde a década de 1980, dos condomínios (enclaves fortificados), caracterizados pela presença de um segmento social em um mesmo espaço de lazer, trabalho e consumo. A opção pelos condomínios, segundo ela, resulta no abandono da esfera pública, considerada violenta e perigosa.

Cabe aqui um aparte em nossa análise dos estudos sobre o Brasil para registrar que Jane Jacobs (2011) já apresentava estudos nesse sentido, apontando para dinâmicas sociais nos Estados Unidos que, de fato, resultaram em ambientes públicos estéreis ou mais violentos, justamente pelo completo abandono. Ao analisar as metrópoles norte-americanas de meados do século XX, Jacobs aponta para os problemas que podem advir de uma cidade que mantém rígidos princípios funcionalistas caracterizados pela monotonia e esterilidade. Ela sustenta a necessidade de distritos como o de North End, em Boston/US, em que pessoas de variadas classes e etnias interagiam nas ruas e no comércio local. O distrito era formado por profissionais como carpinteiros, serralheiros, padeiros. As ruas ―tinham vida com crianças brincando, gente fazendo compras, gente passeando, falando‖ (JACOBS, 2011, p. 145). Bairros estéreis, para ela, são aqueles que não geram encontros, trocas comercias, enfim, que não sejam bons para o povo e seus negócios.

No Brasil da década de 1970, embora haja a presença de favelas e cortiços na região central das metrópoles, a maior parte das populações de baixa renda encontra-se na periferia. Consolidam-se, nessa época de Ditadura Militar, programas como o Remover para Promover, em Porto Alegre. Esse programa possibilitou a construção de diversos conjuntos habitacionais financiados pelo SFH (Sistema Financeiro de Habitação). O SFH foi criado em 1964, tendo como órgão gestor o Banco Nacional de Habitação (BNH). As remoções das favelas faziam

parte de projetos de intervenção urbana centrados na dualidade centro/periferia. O sistema, também subsidiava financiamento para pessoas de baixa renda comprar um imóvel. Surgem, então, as Companhias Habitacionais (COHAB). Para a compreensão desse contexto referente à segunda metade do século XX, os estudos de Otilia Carrion são interessantes por apontar o processo das políticas voltadas à moradia com foco em uma análise socioeconômica.

Carrion (1991) informa sobre as possibilidades que pessoas de baixa renda encontravam para adquirir uma casa antes e durante a criação do SFH. Anteriormente, ou seja, até a década de 1960, os poucos financiamentos que existiam eram feitos através de Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões. Com o financiamento em mãos, comprava-se um terreno e aos poucos a casa era construída. Já a partir de 1964 ocorrem mudanças:

(...) desestimulou-se esse tipo de procedimento. A alternativa, o produto que passou a ser oferecido para a população de menor poder aquisitivo, foi a casa própria já pronta, nos moldes construtivos do BNH. Então, o adquirente devia comprar o terreno com a casa já construída. É claro que isso restringiu muito as possibilidades de acesso à moradia no mercado formal: o interessado ou tinha a renda exigida e a disponibilidade financeira para comprar o imóvel