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2. AS METRÓPOLES EM SEU LONGO PROCESSO URBANO

3.3 As metrópoles contemporâneas e os espaços das classes populares

3.3.2 Porto Alegre: o movimento da malha urbana e os espaços de segregação social

Viamão, eram locais de pouso e passagem. Mas o espaço que hoje compreende o centro de Porto Alegre passou a ser mais ―movimentado‖ devido à construção de um ancoradouro, conhecido como Porto de Viamão (trapiche construído onde hoje se localiza a Praça da Alfândega). Então, com o ancoradouro, por ali circulavam e pousavam pescadores, marinheiros, militares, comerciantes, entre outros viajantes. Essa circulação foi aumentando, embora aquelas terras tivessem dono. Elas pertenciam ao sesmeiro Jerônimo de Ornelas, mas ele era obrigado a assegurar passagem para ―fontes, portos e pontes,‖ devido às ―clausulas da servidão pública impostas nas concessões‖ de terra (FRANCO, 2000, p. 10).

A comunicação interna entre Viamão e Rio Grande, através da Lagoa dos Patos, movimentou o pequeno porto. Aliás, é nele que, em 1752, desembarcaram as famílias açorianas que ali acamparam para aguardar o momento em que ocupariam as terras prometidas pela coroa portuguesa. Esses açorianos, contudo, foram abandonados no porto e tiveram que cuidar da própria sobrevivência construindo, aos poucos, suas casas, a maioria onde hoje se localiza a Rua dos Andradas. Não recebendo as terras prometidas, mais de cem casais, optaram por ficar naquele espaço, trabalhando, por exemplo, com comércio, concerto de embarcações ou, a maior parte, exercendo a agricultura. Essa pequena comunidade recebeu o nome de Porto dos Casais, e, mais tarde Porto Alegre.

No ano de 1773 a capital do Rio Grande do Sul é transferida de Viamão para Porto Alegre. Dois fatores importantes para essa escolha foram a topografia e a presença do porto: ―a qualidade do local de implantação do núcleo, confluência do território ocupado e possuidor

de um sítio elevado junto a um excelente ancoradouro: águas profundas protegidas dos fortes

ventos de sudoeste‖ (SOUZA & MÜLLER, 1997, p. 43). Luciano Costa Gomes apresenta em sua tese a estimativa de 1769 habitantes em Porto

Alegre no ano de 1769, divididos entre 1224 (69,2) brancos e 1769 (30,8) escravos, não havendo o registro de índios e libertos para este período (GOMES, 2012, p. 37). Segundo ele, a porcentagem de escravos é equiparada às maiores cidades portuárias do Brasil, voltadas ao mercado externo. Esse número de negros cresce com o passar dos anos, assim como o registro de pardos, índios e forros. ―Rio Grande e Porto Alegre eram as maiores concentrações de forros, resultado da provável extensão das atividades urbanas (...) o meio urbano era um espaço privilegiado para a atuação dos negros e pardos libertos na freguesia‖ (Ibidem, 2012, p. 67).

No final do século XVIII, a freguesia de Porto Alegre já era importante elo para o mercado interno colonial, seja através das atividades relacionadas ao comércio, prestações de serviço e artesanato, entre outras praticadas na zona urbana; seja através das atividades rurais, como agricultura e criação de gado. A função militar é visível pela fortificação construída em 1778, em volta da zona urbana, e pela presença do Arsenal de Guerra, criado em 1774. (SOUZA & MÜLLER, 1999). Já na década de 1780,

a estrutura econômico-social da freguesia estava plenamente definida. A escravidão era, nesses anos, decisiva para o funcionamento de diferentes atividades produtivas, tanto que os cativos representavam a variável de maior relevo no intenso crescimento populacional da freguesia (GOMES, 2012, p. 269).

Em termos espaciais a cidade é dividida entre urbana e rural, havendo igualmente negros escravos em ambas (GOMES, 2012). Na zona urbana, no final do século XVIII, já existe a Praça da Harmonia e a atual Praça da Alfândega, além de outros equipamentos como escolas e uma casa de espetáculo. Fora dos muros da cidade localizavam-se, por exemplo, as pequenas propriedades agrícolas e a enfermaria que deu origem à Santa Casa de Misericórdia (SOUZA & MÜLLER, 1999). Os pobres da cidade, incluindo os negros escravos e libertos, trabalhavam e exerciam seus momentos de sociabilidade enquanto circulavam pelas ruas, praças, fontes de água e pela beira do Guaíba. Nessa época, exerciam funções tais como: vendedores de quitutes, aguadeiros, lavadeiras, carregadores e marinheiros (VIEIRA, 2014).

Em meados do século XIX, quando termina a Revolução Farroupilha (1835-1845), a fortificação é demolida e a parte urbana da cidade cresce para além dos antigos muros. Atividades comerciais e portuárias ganham incremento, tendo como base o crescimento da

pecuária e da agricultura produzida na zona de imigração alemã e italiana do Rio Grande do Sul. A população de Porto Alegre passou de 12.000 habitantes em 1820 para 52.000 em 1890 (SOUZA & MÜLLER, p. 75). Pessoas de diversas etnias, migrantes e imigrantes exerciam as mais variadas demandas nas indústrias artesanais, nos clubes, no porto, nos restaurantes, etc. Os imigrantes alemães, por exemplo, predominavam no comércio de alimentos e no setor de vestuário. Eles predominavam, enquanto empresários, mas também exerciam outras funções subalternas no setor de comércio e prestação de serviço (GANS, 2000).

No final do século XIX havia a presença segmentada de uma classe média e alta composta, por exemplo, por donos de estabelecimentos comerciais, bancos, e variados estabelecimentos de prestação de serviço. Nesse grupo, além dos portugueses e brasileiros, observa-se a forte presença de imigrantes alemães e italianos. Essa faixa de trabalhadores de renda alta construíram suas moradias de uma forma já segmentada. Suas casas compunham a região alta da cidade como Rua Duque de Caxias, e Avenida independência. Já os trabalhadores de renda baixa, entre eles os escravos libertos, ocupavam os muitos becos da região central e espaços da Cidade Baixa.

Até iniciar o século XX, ainda havia a possibilidade de alugar quartos baratos na região central, geralmente em cortiços. Nos relatos de Coaracy Vivaldo, que viveu em Porto Alegre entre 1905 e 1919, é mencionado o valor dos aluguéis:

Aluguei um quarto na Rua General Auto, donde, pouco depois, me transferi para outro na Rua da Ponte. Pagava de aluguel de quarto quinze mil-réis por mês. Menciono a importância para mostrar como era então barata a vida em Porto Alegre. É verdade que os quartos, como as casas, eram alugados nus, só as paredes. (COARACY, 1962, p. 31)

Os escravos libertos continuam exercendo suas antigas funções. Sanda Pesavento destaca que havia predominância dos libertos em atividades de artesanato, mas as principais ocupações eram voltadas a serviços gerais,

tais como capinas de ruas, limpezas de calhas, auxiliares de igreja, venda ambulante de água e mercadorias (...) quanto às mulheres, eram parteiras, domésticas e quitandeiras (...) eram todas elas tarefas inerentes à vida urbana mas marginais ao mercado de trabalho regular. Exército de reserva, a força-trabalho dos libertos se inseria nas atividades pior remuneradas e que demandavam esforço físico, não exigiam habilitação técnica e não se constituíam em empregos estáveis. (PESAVENTO, 1989, p. 77)

Como consequência dos processos de abolição da escravidão, industrialização e urbanização acelerada a cidade muda de fisionomia na primeira metade do século XX

(MONTEIRO, 2004; SOUZA & MÜLLER, 1999; VIEIRA, 2014). A mudança de fisionomia é parte de um contexto nacional em que as cidades se adaptam à ―ordem republicana‖ com a presença de ―paradigmas de higienização e embelezamentos‖ (MONTEIRO, 2004, p. 52). Assim, a estrutura urbana é remodelada com as obras do novo porto, das avenidas João Pessoa e Borges de Medeiros. Para a época, guardando as devidas proporções, é possível considerar a transformação urbana como parte de um mega projeto que, em relação às características habitacionais, resultou em remoções dos pobres moradores dos becos. Nessa dinâmica, quem é removido vai ocupando, normalmente, outros espaços da cidade.

A nova ordem política republicana trouxe a necessidade de reorganizar a divisão social em outras bases, entre outras formas através de um processo de segregação dos espaços sociais urbanos de habitação e trabalho. Nesse sentido, os investimentos da Intendência e as melhoras urbanas ficaram concentrados na área central da cidade limitada aos 1o, 2o e 3o distritos, enquanto as novas áreas de crescimento como São João, Navegantes ao Norte, bairros operários demorariam muito mais a receber tais melhorias como água encanada, iluminação pública e energia elétrica domiciliar. (MONTEIRO, 2004, p. 53)

Na primeira metade do século XX, ocorre um processo de expansão das zonas de

moradia de Porto Alegre. Arrabaldes transformam-se em bairros da cidade, a partir de eixos de expansão como a Estrada da Cavalhada, Bento Gonçalves, Protásio Alves e Voluntários da Pátria (1997). Com isso, também se processa a gênese da descentralização da cidade. Junto com as moradias, nos novos bairros, crescem os estabelecimentos comerciais, de lazer e prestação de serviço (SOUZA & MÜLLER, 1997). Nesse processo de descentralização, ocorreram, na década de 1950, remoções de ―vilas de malocas‖ da região central da cidade. Em junho de 1952, foi registrada nos Anais da Câmara de Vereadores a presença na plenária de moradores da Vila Seca, Doca das Frutas e Novo Caes, que protestavam contra a remoção a partir de ―atos arbitrários e desumanos‖ (PREFEITURA, 1952, p. 178).

Enquanto as regiões centrais de Porto Alegre são priorizadas para comércio e também para moradia de trabalhadores de renda média baixa, média e alta, as periferias e as cidades do entorno começam a abrigar boa parte dos trabalhadores de renda baixa. ―Os municípios que tiveram maior incidência de loteamentos entre 1940 e 1954 foram Porto Alegre, Canoas e os atuais Municípios de Gravataí, Cachoeirinha, Alvorada, Sapucaia do Sul e Guaíba‖ (BARCELLOS, 2004, p. 71).

A capital, na década de 1960, já contava com mais de 600.00 habitantes em um contexto de crescimento industrial atrelado às cidades próximas. Assim Porto Alegre apresenta uma estrutura sócio-ocupacional em que grande parcela dos trabalhadores

qualificados reside na capital; enquanto a maior parte da mão de obra, pouco ou não qualificada, reside nas chamadas ―cidades dormitório‖ (MAMMARELLA et a.l, 2015).

É visível, nesse contexto, o processo de metropolização, sendo uma das características a conurbação – dinâmica relacionada à união da malha urbana com a malha das cidades vizinhas (ALONSO, 2008). A Região Metropolitana de Porto Alegre, entre esse período até a década de 1990, apresenta

um arranjo espacial específico complexo e criativo, com a existência de dois centros de atração socioeconômica e cultural – um é Porto Alegre e o outro é composto por Novo Hamburgo e São Leopoldo – cuja identificação remonta à gênese da historia metropolitana. Portanto, a RMPA foge ao padrão comum de macrocefalia. (FEDOZZI; SOARES & MAMMARELLA,

2015, p. 34)

Já nas últimas décadas, o espaço metropolitano polarizado por Porto Alegre passa por um processo de desconcentração com a formação de uma policentralidade com centros econômicos e tecnológicos. Porto Alegre – que na década de 1960 já se diferenciava por abrigar trabalhadores de mais alto nível, em comparação às demais cidades de seu entrono – se apresenta como o espaço mais elitizado da região metropolitana tendo o maior número de profissionais de nível superior e dirigentes. A análise da tipologia socioespacial mostra também a polarização interna a partir da densidade de pessoas de classe de renda alta em bairros como Moinhos de Vento e Bela Vista que ―receberam grandes investimentos imobiliários e de infraestrutura a partir das décadas de 70 e 80‖ (MAMMARELLA et al., 2015, p. 168). Especificamente em relação às dinâmicas do mercado imobiliário durante a década de 1990, Tanya M. de Barcellos considera que:

Porto Alegre mostra uma dinâmica que se volta fundamentalmente para as camadas de renda mais alta da população. Junto com essa concentração de empreendimentos voltados para as elites em alguns bairros como Moinhos de Vento, Bela Vista, Petrópolis, Mont‘Serrat e Três Figueiras, observam-se um avanço do mercado em bairros antes predominantemente operários e populares, que rapidamente estão se diversificando socialmente, como Sarandi e Passo da Areia, e a expansão de projetos na zona sul da Cidade, dirigidos para as camadas médias e de renda mais elevada. (BARCELLOS, 2004, p. 88)

Essa dinâmica socioespacial envolvendo o mercado imobiliário influencia na fragmentação da cidade. Através do censo de 2010 do IBGE foram identificadas no município de Porto Alegre 108 favelas. A renda per capita em 62,07% dos domicílios dessas comunidades é inferior a um salário mínimo. Outro dado importante é que:

A taxa de desemprego nas favelas de Porto Alegre é de 7,38%, enquanto no restante da cidade é de 5,30%. Quanto às horas trabalhadas no emprego principal, 70,31% dos

trabalhadores das favelas trabalham até 44h semanais, contra 76,35% do restante da cidade. Referente à categoria do emprego principal, o predominante em ambas as regiões é o emprego formal com carteira assinada (58,83% nas favelas e 51,91% fora delas). O trabalho informal é maior nas favelas, representado 18,03% dos empregos, enquanto nas demais regiões representa 13,12% . (OBSERVA POA, 2013)

Observa-se pelas pesquisas aqui referenciadas que, embora Porto Alegre e a Região Metropolitana apresentem suas dinâmicas socioespaciais inseridas em um macro contexto de policentralidade e tendência de elitização da metrópole, a presença do ―espaço dos pobres‖ nessa metrópole é constante e muito significativa na década de 2010. No entanto há que ressaltar as dificuldades que, em específico, moradores de favela têm em permanecer em regiões centrais da metrópole, dificuldade esta marcada pela forte representação de seus espaços enquanto ―manchas destoantes‖ na malha da urbe, o que parece refletir o processo cultural e espacial de segregação.

3.4 Cidades e remoções compulsórias de moradia: entre a literatura e a proposta de uma