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4 PRÁTICAS INTERPRETATIVAS E SOCIEDADE

4.4 Processo de análise através da Pesquisa Biográfica Interpretativa

4.4.2 Segundo Passo: análise do campo temático

Nessa etapa, expomos alguns tópicos referentes à forma como procedemos em relação ao sentido que o entrevistado dá à sua trajetória no momento em que nos concedeu a entrevista, analisando seu interesse de apresentação e seu campo temático a partir da análise do texto construído pelo entrevistado.

Rosenthal salienta a importância dos estudos do psicólogo Aron Gurwitsch para a análise do campo temático (ROSENTHAL, 2014). Ele estudou profundamente o campo da consciência a partir da influência de Schütz e Husserl. Na obra The Collected Works of Aron Gurwitsch, editada em 1962, Gurwitsch escreveu uma dedicatória: ―In memory of Alfred Schütz the nobleman, scholar, and friend‖ (GURWITSCH, 2009). Na apresentação do livro, os editores registraram que Edmund Husserl foi quem apresentou Schütz a Gurwitsch. É interessante termos consciência desse contexto, porque essa interação nos abre caminhos para, nesta seção, referenciar de forma interligada as ideias de todos eles.

Um dos conceitos de Schütz, importante para a teoria do campo da consciência de Gurwitsch, é o de ―província de significados‖ ou províncias da realidade (SCHÜTZ, 2003). Como já vimos, em um processo intersubjetivo, a pessoa no cotidiano interage a partir de seu estoque de conhecimento presente em províncias de significados que balizam o agir e o significar em sociedade. Pois Gurwitsch interessou-se em estudar o momento em que, na interação com o horizonte externo, perceptivo, o sujeito significa. Quando foca em um tema, esse tema (que pode ser uma lembrança) irradia um campo que Gurwitsch chama de campo temático. Assim como Husserl, Gurwitsch está interessado em ―como o mundo real em sua temporalidade, em sua consistência intersubjetiva, em sua objetividade se constitui em nossa consciência‖ (ZILLES, 2007, p, 217).

Pensando em nossa abordagem metodológica, durante o fluxo de uma narrativa ocorre um processo de ―voltar-se a‖, de ―olhar para‖ determinados temas já vivenciados. Esse fluxo faz parte do que Husserl chama de intencionalidade, sendo esta dependente da atenção. É a atenção que destaca o objeto de seu fundo, que transforma em temático um conteúdo qualquer da consciência. Ela possibilita que ―o caráter de ser intencional‖ envolva toda a consciência tendo um papel objetivador (SANTOS, 2015, p. 91).

Gurwitsch trabalha com a ideia de consciência enquanto um fenômeno temporal em que simultaneidade e sucessão estão presentes. O campo da consciência apresenta uma ―totalidade dos dados copresentes‖, dados que, de forma gestáltica, se articulam, ou seja, não são somatórios. Ele dá o exemplo do momento em que estamos escutando uma música: uma

nota ouvida não desaparece, ela é retida, ressoa junto com a chegada de uma nova nota musical (GURWITSCH, 2009). Assim, há um entrelaçamento de passado e de presente através da Gestalt em que vários itens se sustentam e se influenciam, sendo que cada item tem um papel, mas sem deixar de fazer parte do todo, sem o qual ele muda o seu papel. A ―sua qualidade, a sua existência, a sua raison d’être, depende de e é derivada de sua contribuição com o todo no interior do qual ele está integrado, a partir daquilo que a Gestalt em sua articulação interna atribui a ele‖ (Ibidem, p. 26).

Levando em consideração esse processo gestáltico, podemos dizer que para buscar a gênese de determinada experiência, a partir de uma entrevista narrativa biográfica, é preciso levar em conta que o tema exposto pelo entrevistado precisa ser visto em articulação com todo o campo de consciência relacionado àquele tema. Importa, nesse sentido, a organização dos dados copresentes, uns em relação aos outros (GURWITSCH, 2009, p. 02). Essa organização, que se dá no campo da consciência, tem para Gurwitsch um padrão que se estende a partir da existência de três dimensões, a saber:

– tema: Está presente quando focamos a atenção, é o momento em que sua mente é absorvida por algo, a partir do sistema de relevância do sujeito (Ibidem, p. 53, 333);

– campo temático: conjuntos de experiências que se dá a ver, que irradia a partir do momento em que o sujeito foca no tema. É o contexto em que o tema se apresenta através de uma dada experiência. Assim, em um campo temático encontram-se dados pertencentes e relacionados apenas a um determinado tema (Ibidem, p. 53, 332);

– margens: percepções que não são nítidas em determinado campo temático, mas que ficam mais nítidas em outro. São ―pensamentos em transição‖ (Ibidem, p. 303).

O Ato da experiência, na concepção de Gurwitsch, pode ser visualizado a partir dessas três dimensões em formas circulares. O círculo menor é o tema, em sua volta está o campo temático, ou seja, vemos o tema contido no campo temático e, em volta do campo temático, estão as margens, ou as ―franjas‖. A percepção em relação a essas dimensões compõe a teoria da Gestalt que leva em consideração, por exemplo, a possibilidade de que um determinado tema tenha alterado o seu campo temático. Gurwitsch apresenta o seguinte exemplo: se pensarmos em Goethe, podemos ter como campo temático os dados referentes à sua poesia, mas também podemos pensar em Goethe enquanto um político que esteve a serviço do estado (Ibidem, p. 314).

Quanto à margem (fringes), refere-se a dados desarticulados, vagos, mas que apresentam, durante o fluxo subjetivo, alguma afinidade com o tema. São ―palavras, frases, imagens e representações que passam diante de nossa mente‖ quando focamos em algo

(Ibidem, p. 302), Gurwitsch chama de halo as possibilidades de reflexão que se apresentam nas fringes e que podem ser ―experimentadas como relevantes para o tema‖ (Ibidem, p. 302).

Compreender as dimensões do campo da consciência contribui para a análise de determinado tema narrado pelo entrevistado ―dentro de um contexto mais amplo‖ em que unidade e continuidade se apresentam ―em virtude de um princípio específico de relevância constitutiva‖ (GURWITSCH, 2009, p.393).

Para finalizar, salientamos que Gurwitsch relacionou os estudos sobre a intencionalidade da fenomenologia de Husserl com a ideia de Gestalt. Ele considera que o campo da consciência precisa ser analisado a partir da ―ordem da existência‖, da articulação de todo o campo formado por: tema, campo temático e margens.

Embora exista a intencionalidade, o processo de articulação entre essas três dimensões do campo da consciência não permite que o narrador desenvolva um pensamento totalmente dentro do que considera desejável comunicar (ROSENTHAL, 2017). Em relação a esses aspectos é importante considerar as diferenças entre vivenciar, recordar e narrar.

A história de vida narrada constitui-se na inter-relação entre aquilo que se manifesta à consciência na situação de vivência (noema de percepção) e o ato de percepção (noesis), entre as vivências formalmente sedimentadas e tornadas imagens pela memória (noema de recordação) e o ato de voltar-se a ela no tempo presente do relato (ROSENTHAL, 2017, p. 38).

O momento da entrevista propriamente dito, a partir da metodologia que expomos anteriormente, permite que o entrevistado desenvolva a Gestalt com sequências de exposição biográficas que, mesmo parecendo desarticuladas, estão conectadas com um ou mais campos temáticos (ROSENTHAL, 2017).

Em relação aos temas abordados dentro de uma exposição autobiográfica, Rosenthal salienta que um determinado relato não é o tema, mas a forma como o tema se manifesta. Este, então, refere-se ao que trata o relato, fazendo parte de um campo temático que precisamos identificar. Assim, buscamos compreender a entrevista através da teoria da Gestalt, levando em consideração que cada tema que observamos em um relato foi ―destacado de um fundo‖, fazendo parte de um campo temático (Ibidem).

4.4.2.1 O Campo temático de Lian

Ao pedir, na segunda etapa da entrevista, que Lian16 contasse sobre algum momento de sua infância, ele passou a narrar sobre os afazeres que tinha quando criança, descrevendo o penoso trabalho na lavoura junto aos pais e irmãos, e também abordou a tarefa de cuidar dos irmãos mais novos. Seus relatos podem ser englobados no tema ―muito trabalho e fadiga na infância‖.

Levando em consideração que um tema é parte de uma totalidade e se destaca do campo temático (ROSENTHAL, 2017), devemos analisar bem todas as partes do texto transcrito para, assim, criar hipóteses quanto ao campo temático. No caso de Lian é possível que percebêssemos que o tema ―muito trabalho e fadiga na infância‖ está dentro do campo temático ―sinto culpa por ter abandonado meus pais e ido para a cidade grande‖. Em vários trechos da entrevista, ela salienta o quanto era sofrida sua vida, justificando, assim, a migração. Quando o campo temático era a relação afetuosa e divertida com os irmãos, a temática do trabalho na infância muda para ―me divertia trabalhando, junto com meus irmãos‖. Assim, apenas através de outro campo temático, foi possível entender outros aspectos de sua trajetória que não o trabalho cansativo, importante para justificar uma possível culpa que ela tenha por ter saído de casa. Percebe-se que em ―cada mudança – realizada em correspondência com o foco de atenção – na ordenação de aspectos específicos do relato, modifica-se a construção em sua totalidade‖ (Ibidem, p. 18).

Através da lógica do procedimento sequencial e abdutivo, buscamos entender o porquê de o entrevistado abordar um tema de determinada forma e qual a consequência para o seu relato da postura que assumiu, seja latente ou consciente (ROSENTHAL, 2016, p. 236). Assim, não nos debruçamos sobre eventos que fizeram parte de sua vida, mas sobre o interesse que Lian demonstra no presente ao narrar, ou argumentar, ou só mencionar ou nem sequer mencionar determinada vivência. Algo embaraçoso ou confuso para o entrevistado pode ser esclarecido se o pesquisador for além da análise de conteúdo. É possível perceber, aliás, quais temas são evitados: ―Na maioria das vezes essas omissões são notadas pelo

16 Lian, como já mencionamos anteriormente, é a representação das 12 narrativas que documentamos a partir de entrevistas realizadas entre os anos 2016 e 2018.

ouvinte quando o narrador pula detalhes, quando o esquema de relato é substituído por um esquema de argumentação ou descrição‖ (ROSENTHAL, 2017, p. 114).

Também nesse passo da análise partimos da ―suspensão‖ do que é tido para nós como certo até então para, assim, organizarmos hipóteses primárias e secundárias que possibilitem melhor compreensão das escolhas do entrevistado em relação ao que relatar. A suspensão é importante antes de

nos perdermos no interior do sistema de interpretação dos produtores do texto e na lógica da situação concreta de ação. Livres das exigências da situação cotidiana impostas pelo agir e de quaisquer limitações que possam ter origem em outras ações subsequentes mais prováveis, podemos projetar as mais diversas sequências e, assim, reconstruir, no posterior desenvolvimento da análise, as escolhas e as rejeições ―sistemáticas‖ de alternativas. (ROSENTHAL, 2016, p. 89)

Ao elaborar hipóteses relacionadas ao momento presente do entrevistado, estamos lidando com a forma como hoje ele vivencia suas memórias, a partir de uma linha de raciocínio que ele foi construindo através de novas experiências ao longo dos anos. Estamos focando na vida narrada pela análise do material textual transcrito. Vejamos um exemplo estruturado conforme a metodologia proposta por Gabriele Rosenthal:

Quadro B

Sequência no texto Pg./Linha Tipo de texto Conteúdo/Hipóteses

3 2/3-4 Descrição 3. Despois de vir para a

cidade grande manteve-se morando nela até o momento da entrevista. 3.1. tenderá a trazer para a narrativa apenas temas que ocorreram depois de sair de casa.

3.1.1. Relatando sobre a vida na cidade ela se exime de falar sobre a vida no campo. 3.1.1.1. Lian não fala sobre os motivos de ter saído de casa.

Observe no Quadro B que, pela criação de hipóteses, se busca compreender o sentido que Lian quer dar a suas vivências no momento em que compartilha com os pesquisadores o seu relato. Nesse processo, entram as escolhas daquilo que não pretende detalhar ou até não mencionar. Segundo Reif, ―o exercício de trazer hipóteses de forma abdutiva para cada tema

da entrevista é para procurar elucidar o interesse de apresentação do entrevistado. Como ele quer ser compreendido? E de que forma faz isso?‖ (REIF, 2016, p. 39).

Como Lian quer ser compreendida? Pensar em hipóteses voltadas a cada sequência do relato contribui para que, de forma aprofundada, busquemos suas estratégias em lidar com o passado. Estratégias estas que servem de referência para suas ações presentes, inclusive o ato de conversar sobre a sua vida com uma pesquisadora que nunca vira antes.

4.4.3 Terceiro Passo: reconstrução da história do caso (vida vivenciada) e análise