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4 PRÁTICAS INTERPRETATIVAS E SOCIEDADE

4.4 Processo de análise através da Pesquisa Biográfica Interpretativa

4.4.3 Terceiro Passo: r econstrução da história do caso (vida vivenciada) e análise detalhada

Buscamos nesse passo a perspectiva em relação ao passado, reunindo todas as sequências de um mesmo dado biográfico, seja por narrativa, argumentação ou outra forma de relato. Dessa forma, é possível ―voltar ao passado‖ através das percepções de Lian, através da forma e do conteúdo de sua narrativa (SUSIN, 2014, p. 110). Contudo, não é uma percepção lógica e concatenada com os temas que ela escolheu. Ocorre que o relato de determinado evento pode aparecer em outro tema, por exemplo. Ao considerar essa possibilidade se amplia o acesso do pesquisador a informações sobre a história vivenciada.

Podemos observar no Quadro C o registro, na sequência da entrevista, de todas as vezes em que Lian relata sobre o dado biográfico ―começa a trabalhar na lavoura, em uma pequena propriedade dos pais‖. Assim, podemos ter uma visão mais ampla de sua percepção do acontecimento à época (Rosenthal, 2017). Organizando os dados biográficos conforme o exemplo abaixo, é possível perceber relatos que, por estarem junto a outros temas, poderiam passar despercebidos para o pesquisador.

Quadro C

Reconstrução da Vida Vivenciada

1978 - Lian começa a trabalhar na lavoura, em uma pequena propriedade dos pais, com seis anos de idade.

1/1817

Eu e meus irmãos não fomos à pré-escola, porque era, era, era longe.

3/ 29

A gente trabalhava, é, de sol a sol

4/44-45

Inventamos muitas músicas e até tínhamos um jogo de palavras que costumávamos fazer durante o trabalho na lavoura.

3/23-24

Quando eu tinha seis anos, um dia me perdi da família. Eu e meu irmão mais velho largamos o trabalho escondido pra procurar fruta no mato perto do local que a gente tava colhendo milho.

7/38-39

Eu te eu tenho um problema grave na pele, é os médicos dizem que é por causa do sol, também, com seis anos eu já trabalhava ajudando meus pais na lavoura.

Como se vê, ao selecionarmos os relatos sobre determinado evento, retiramos informações que, na entrevista como um todo, pertenciam a diversificados temas e campos temáticos. No Quadro C, observamos que diversos relatos se referem ao tema ―muito trabalho e fadiga na infância‖, mas Lian não fala durante o desenvolvimento desse tema do quão cedo começou a ajudar seus pais, talvez porque lhe trouxesse um sentimento difícil de lidar naquele momento. Contudo, mais tarde, abordando sobre sua saúde no presente, argumenta que o médico disse que a doença grave que tem na pele é resultado da exposição demasiada ao sol desde os seis anos de idade, quando começou a trabalhar na roça com seus pais. Daí se observa a amplitude do campo temático ―sinto culpa por ter abandonado meus pais e ido para a cidade grande‖, uma vez que, em sentido latente, ela tenta desculpar-se pelo sofrimento que lhe causava trabalhar no campo.

Nesse passo, também é possível cotejar esses relatos com as hipóteses sobre a vida vivenciada (passo um) relacionada àquele dado. A partir daí, selecionar as hipóteses que irão compor nossa análise.

Segundo Rosenthal, é produtivo, junto à reconstrução da história vivenciada, analisar detalhadamente algumas passagens textuais, com o objetivo de ―decifrar em especial as estruturas latentes de sentido do material textual‖. Para esse processo de socio-análise em que buscamos ir além de uma primeira percepção, ir além do que é aparente, Rosenthal faz referência a Schütz quando aborda os motivos para e porquê (veja na seção 2.2.2). Ela também chama a atenção para a importância da hermenêutica objetiva elaborada por Ulrich Oevermann. Um exemplo está na análise da escolha das passagens, ou seja, do que será relato e quando será alterado. A partir das teorias de Oevermann, Rosenthal afirma que para o pesquisador a análise dessas escolhas das passagens deve ter como

critério fundamental a comunicação paralinguística – como longas pausas, equívocos, interrupções – e também a simples impressão de que o trecho contém mais significados do que a primeira leitura permite supor. Esse passo da análise serve também para a verificação e para a ampliação do escopo das hipóteses desenvolvidas a partir dos resultados de fases anteriores da investigação. Isso não significa, porém, que a análise detalhada de uma passagem tem como princípio uma hipótese já formulada. Nela, também temos que suspender o resultado de interpretações e avaliações feitas anteriormente e, como em um procedimento sequencial e abdutivo, partir de um fenômeno empírico – nesse caso, a unidade textual simples – para desenvolver possíveis hipóteses e projetar suas conclusões. (ROSENTHAL, 2014, p. 247)

Ao partir de um fenômeno empírico, é importante contar com a possibilidade de consultar fontes como fotografias, diários, romances, crônicas, certidões de nascimento, de forma que o cotejamento destas contribua para a criação de hipóteses bem fundamentadas. Na literatura, crônicas e romances auxiliam a percepção da dimensão cotidiana de determinada comunidade, bem como as transformações culturais que lhe são peculiares (MONTEIRO, 2015).

Em relação à Lian, é interessante buscar documentação sobre o local em que ela morava, dados sobre a agricultura no Brasil entre as décadas de 1970 e 1980 e sobre a história da instituição familiar.

Essas análises, sobre um contexto distante do presente, não significam que vamos trazer uma ―radiografia do passado‖, ou que vamos ao encontro de um passado que está ali no documento, pronto, à nossa espera (RAGO; GIMENES, 2014). Voltar o olhar para documentos, romances, jornais, indumentárias e outras ―evidências‖ possibilita uma análise mais aprofundada em relação ao contexto em que determinado entrevistado vivenciou determinados eventos.

4.4.4 Quarto Passo: contraste da história de vida narrada com a história de vida