• Nenhum resultado encontrado

O ponto de vista normativo sobre o gênero: manuais de redação de resumos

A abordagem antagônica àquelas sociais e discursivas do gênero textual, entre as quais a sociorretórica de Miller e Bazerman, é aquela que faz a prescrição de aspectos estritamente formais para construção de um texto, sem problematizar as recomendações que apresenta, a natureza do texto ou a sua relação com as atividades ou instituições sociais que utilizam os gêneros.

Trataremos alguns manuais em língua francesa que seguem essa perspectiva normativa. Iniciaremos por um exemplo extremo da prescritividade para o gênero resumo de artigo, uma crítica publicada em uma seção de leitores da revista Pédagogie médicale, na qual o autor Maisonneuve (2009) faz a análise de um artigo publicado por Muscari et al. (2009) na edição precedente da revista. O texto de Muscari havia apresentado uma proposta de grade de avaliação da prova de leitura crítica do artigo científico, obrigatória para classificar os estudantes de medicina nas áreas em que eles poderão fazer sua especialização, assim como nos hospitais de residência em que eles realização a formação. Na prova, que representa 20% da nota total desse exame nacional (MUSCARI et al., 2009, p.20), são propostas seis a dez perguntas sobre a metodologia de um artigo de pesquisa e exige-se a elaboração de um resumo estruturado83 de até 250 palavras. Na crítica a esse texto, Maisonneuve deplora a necessidade do próprio exame do resumo e apresenta sua posição sobre a natureza da atividade de escrita do resumo:

Pour qu’il n’y ait aucune ambiguïté, je précise aussi d’emblée que je suis un ardent défenseur de la formation à l’analyse d’article scientifique, qui est indispensable pour développer l’esprit critique des futurs médecins […]. Mais on ne peut manquer d’être stupéfait par la somme d’énergie dépensée par les étudiants et les enseignants à propos de cette épreuve du résumé, dont je ne comprends pas l’intérêt, d’autant plus qu’il s’agit de faire le résumé d’un bon article. . . En l’espèce, on pourrait d’ailleurs considérer que le travail demandé correspond davantage à un exercice de contraction de texte [...] qu’à un réel travail d’écriture scientifique. (MAISONNEUVE, 2009, p.145)84

83 Um resumo estruturado apresenta expressamente os títulos das seções do resumo, em geral, “contexto, objetivo, material, métodos, resultados, discussão”.

E informa a sua receita de escrita para o gênero textual:

Depuis 20 ans que j’enseigne la rédaction médicale, comme d’autres enseignants de cette discipline, je dis que faire un bon résumé ne demande aucune imagination car il suffit de copier des phrases de l’article. Il ne faut pas réécrire le travail, ou faire de la paraphrase, car on risque d’introduire des erreurs ou des ambiguïtés par rapport à l’article. À mês yeux, faire un résumé ne demande aucune réflexion car, lorsque l’article original princeps est de bonne qualité, la recette est simple et peut être décrite em quatre étapes :

1) But de l’étude : copier la dernière phrase de l’introduction ;

2) Méthodes : copier la première phrase de chaque paragraphe des méthodes, puisque c’est dans ces phrases qu’il y a, en principe, les point principaux des méthodes ;

3) Résultats : faire, pour chaque tableau ou figure, une phrase qui en résume les données ;

4) Conclusion : copier la première phrase du chapitre discussion (nous avons montré que. . . , ce qui a changé notre stratégie diagnostique dans cette maladie en. . . ). (MAISONNEUVE, 2009, p.145).85

Maisonneuve concebe o resumo como um texto esquemático, no qual uma estrutura profundamente estandardizada faz dele em um texto rígido no nível não apenas das grandes partes, mas no conteúdo e localização das próprias frases não

formação para a análise do artigo científico, que é indispensável para desenvolver o espírito crítico dos futuros médicos […]. Mas não dá para não ficar estupefato diante do montante de energia gasta pelos estudantes e professores para essa prova do resumo, cuja pertinência eu não entendo, ainda mais que se trata de fazer o resumo de um bom artigo… Nesse caso, aliás, poderíamos considerar que o trabalho exigido corresponde mais a um exercício de contração de texto [...] que a um trabalho real de escrita científica.”

85 “Nos vinte anos em que ensino redação médica, assim como outros professores dessa disciplina, digo que fazer um bom resumo não exige nenhuma imaginação, pois basta copiar as frases do artigo. Não é preciso reescrever o trabalho, ou fazer paráfrases, pois corre-se o risco de introduzir erros ou ambiguidades em relação ao artigo. A meu ver, fazer um resumo não demanda nenhuma reflexão, pois, quando o artigo original prínceps é de boa qualidade, a receita é simples e pode ser descrita em quatro etapas:

1) Objetivo do estudo: copiar a última frase da introdução;

2) Métodos: copiar a primeira frase de cada parágrafo dos métodos, já que é nessas frases que há, em princípio os pontos principais dos métodos;

3) Resultados: fazer, para cada tabela ou figura, uma frase que resuma os dados;

4) Conclusão: copiar a primeira frase do capítulo discussão (nós mostramos que…, o que mudou nossa estratégia diagnóstica nessa doença…).”

apenas do resumo, mas em particular do corpo do artigo: “[...] copier la première phrase de chaque paragraphe des méthodes, puisque c’est dans ces phrases qu’il y a, en principe, les points principaux des méthodes [...]” (“[...] copiar a primeira frase de cada parágrafo dos métodos, já que é nessas partes que há, em princípio, os pontos principais dos métodos [...]”).

Essa abordagem do texto concebe a totalidade dos artigos científicos como meros suportes de descobertas, todos similares, autônomos em relação à autoria, cuja função é a de recensear dados que precisam ser rapidamente encontrados nos mesmo lugares ordenados, ou seja, uma concepção de ciência objetiva que não contém disputa de paradigmas, não precisa fazer nenhuma reflexão e cujo gênero textual maior (o artigo completo) pode se contentar em ser um tipo de formulário ou uma declaração de patente.

Surpreende a afirmação de Maisonneuve de que a elaboração de um texto pode dispensar uma atividade reflexiva. Em parte essa afirmação repousa no aspecto de redução de um texto, que é o resumo, o que é uma visão limitada dos propósitos comunicativos desse gênero, como veremos a seguir. E por outro lado é reflexo do aspecto intensamente padronizado da escrita científica, que gera a concepção de que os textos científicos são protocolares e não uma elaboração argumentada. Na sua receita, a referência a Objetivo, Método, Resultados e Conclusão correspondem ao esquema bastante característico dos artigos em língua inglesa IMRD (Introdução, Método, Resultados, Discussões), apresentado recorrentemente como um reflexo dos procedimentos experimentais, como exemplifica outro manual, o de Pochet (2017), que nomeia, aliás, um gráfico ilustrativo da atividade científica como “Les quatre parties, les quatre étapes de la démonstration”. (POCHET, 2017, p.121)86, emparelhando forma e ciência. Além disso, para o autor “Ces standards sont basés sur près de 350 ans de pratique éditoriale (le Journal des Savants paraissait pour la première fois en 1661 [sic 1665]).” (POCHET, 2017, p. 120)87. Isso contém aliás um grave erro de análise, pois o formato do Journal des Savants de 350 anos atrás difere das revistas atuais e seu propósito editorial fazia dele um periódico de resenhas não um periódico de artigos

86 “As quatro partes, as quatro etapas da demonstração”.

87 “Esses modelos são baseados em cerca de 350 anos de prática editorial (o Journal des Savants é publicado pela primeira vez em 1661 [sic. 1665]).”

de pesquisa88. Mesmo Philosophical Transactions, que compartilha a origem das revistas junto ao Journal des Sçavants, que apresenta artigos propriamente de pesquisa não tem uma forma textual que possa ser vista como positiva, no sentido comtiano, e sempre evolutiva. Nesse 350 anos foram forjadas diferentes respostas a diferentes exigências da comunidade científica (BAZERMAN, 1988a, 1988b) o abandono de uma forma por outra seguiu o curso da institucionalização dos paradigmas e do status do experimento dentro da ciência.

Um último exemplo provém do guia elaborado por Fovet-Rabot (2015), publicado no site do CIRAD, (Centre de coopération internationale en recherche agronomique pour le développement)89. No qual, além de reproduzir as mesmas partes do IMRD, indicando as perguntas que subjazem cada seção, ele ainda delimita uma proporção desejável para cada parte: Introdução e Hipótese (¼ do resumo), Materiais e métodos (¼ do resumo), e Resultados e discussão (½ do resumo). O peso maior conferido aos resultados é naturalizado por uma perspectiva normativa. O artigo é segundo essa perspectiva, essencialmente um texto de reportagem de resultados e o resumo reforça essa concepção. Nessa abordagem não estão incluídas reflexões sobre que outras formas de produção científica existem e se os resultados são os aspectos mais relevantes a serem salientados; há outros aspectos como a discussão teórica, a narrativa histórica, a crítica, estudos de cunho social, de cunho aplicado, artigos calcados sobre outros padrões...

A prescrição e mais substancialmente as questões sobre a padronização na ciência subentende que aquilo que não está de acordo com a norma está mal escrito ou refletiria uma inexperiência da parte do pesquisador, nenhuma questão de ordem discursiva é apresentada para dar conta das diferentes apresentações de resumos, assim como não se leva em consideração diferentes aspectos do conhecimento científico ou diferentes práticas disciplinares. Se o gênero textual não é uma

88 Para os anos 1665-1946 ver a coleção online da Biblioteca Nacional Francesa http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb343488023/date e para 1909-2013 ver a coleção da base Persée http://www.persee.fr/collection/jds.

89 Segundo as informações do site oficial, é um organismo que promove a agricultura no quadro das questões ambientais, em particular nos países do Sul, sob o Ministério do ensino Superior, da Pesquisa e da Inovação francês e do Ministério Europeu de Assuntos Estrangeiros. http://www.cirad.fr/qui-sommes-nous/le-cirad-en-bref. Acesso em novembro de 2017.

formatação, o que significa de fato tomá-lo como uma produção integrada com o social, perspectiva que mencionamos na seção anterior?