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PONTOS DE ACESSO, REQUALIFICAÇÃO E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Alguns conceitos complementares, como os de ponto de acesso, recontextualização e requalificação, que fazem parte do funcionamento dos sistemas de perícia técnica, foram considerados importantes para este trabalho.

As relações de confiança dos indivíduos com esses sistemas se dão normalmente via compromissos impessoais ou sem rosto, ao contrário da confiança pessoal que se fundamenta em credenciais conhecidas ao longo de um relacionamento, em compromissos com rosto ou face a face, tornando os indivíduos fidedignos aos olhos uns dos outros.

Por outro lado, ocorrem também entre os indivíduos e os sistemas especialistas os processos de recontextualização, que se encontram entrelaçados aos processos de descontextualização, e produzem a remodelação das relações sociais de forma a comprometê- las, embora parcial ou transitoriamente, ao local (GIDDENS, 1991).

A maioria dos sistemas de perícia apresenta pontos de encontro entre grupos ou indivíduos que desenvolvem atividades relativas ao sistema e os atores leigos, sendo tais pontos denominados de pontos de acesso ao sistema de perícia, que constituem "o terreno comum dos compromissos com rosto e sem rosto" (GIDDENS, 1991, p.87) nos quais ocorre a recontextualização. Nesses pontos de acesso, os “representantes” do sistema de perícia se esforçam para parecerem confiáveis, constituindo o elo entre a confiança pessoal e a confiança no sistema. A confiança nesses sistemas, entretanto, não pressupõe necessariamente

tais encontros, e se fundamenta basicamente em princípios impessoais. Assim, ao serem confrontados com alguma quebra de expectativa em relação ao seu funcionamento, os sistemas de perícia respondem por meio de princípios impessoais, por exemplo, de dados estatísticos relacionados ao seu desempenho.

Encontram-se conexões variadas entre a experiência individual e os sistemas de perícia. Por intermédio dessas conexões, ocorre a requalificação, que constitui uma reaquisição de conhecimentos e competências, que é uma reação universal aos efeitos expropriadores dos sistemas abstratos (GIDDENS, 1997). Assim, nas condições de reflexividade da modernidade, o conhecimento local é informação reapropriada, derivada de sistemas abstratos de um ou outro tipo (GIDDENS, 1995).

Essa noção de conhecimento a partir de informação reapropriada é, de certo modo, complementar ao conceito de representação social que, Moscovici (1976), citado por Chaves (1997), aborda como um conjunto de conceitos, proposições e explicações originadas na vida cotidiana, no curso das comunicações interpessoais. É um estilo de conhecimento próprio da sociedade moderna e pertence a um universo consensual, em contraposição ao universo das ciências e do pensamento erudito em geral.

Contudo, "as ciências inventam e propõem a maior parte dos objetos, conceitos, analogias e formas lógicas a que recorremos para fazer face às nossas tarefas econômicas, políticas ou intelectuais" (MOSCOVICI, 1976, apud CHAVES, 1997, p. 2). A apropriação e utilização pragmática do conhecimento científico se dão às custas de uma reelaboração do conhecimento criado naquela esfera de pensamento (CHAVES, 1997).

Assim, pode-se dizer que as informações e conhecimentos que os indivíduos recebem ou deles se reapropriam, parcial ou seletivamente, originários dos sistemas de perícia técnica, são reformulados no decorrer das comunicações interpessoais e constituem parte do material disponível, imagens e linguagem, para a elaboração, no cotidiano, das representações sociais sobre objetos e conceitos, inclusive sobre os próprios sistemas de perícia técnica.

De modo geral, a organização do conhecimento técnico-científico permanece basicamente como descreve Giddens (1991), ou seja, guiados por princípios impessoais na atuação dos sistemas de perícia técnica, mas coesos. Beck (1998), porém, se refere ao que pode ser considerado como outra forma de reapropriação do conhecimento detido pelos sistemas de perícia técnica. Segundo esse autor, a consciência dos problemas presentes na sociedade de risco, assim como a percepção do aumento da incerteza que os acompanha, provoca comportamentos divergentes no corpo de experts de todas as especialidades. Pode-se dizer que esse fenômeno, aliado à enorme disponibilidade de informações atual, é explorado

por grupos para os quais os riscos decorrentes de determinadas tecnologias são inaceitáveis e que se manifestam ativamente contra elas. Para os agentes desses grupos, não existe o equilíbrio entre risco e confiança na atuação do sistema responsável pela operação da tecnologia em questão, ou ainda, a necessidade de confiança no sistema, decorrente do desconhecimento sobre os meandros de suas atividades, foi substituída pelo conhecimento proveniente de pareceres técnicos ou científicos divergentes, muitas vezes opostos àqueles sustentados pelos “representantes oficiais” dos sistemas peritos, mas, ainda assim, provenientes de peritos pertencentes ao sistema em questão.

Além da informação e do conhecimento disponíveis, que podem levar à descoberta de práticas de ocultamento ou camuflagem de riscos, a própria indeterminação dos riscos modernos tecnológicos contribui para a perda de confiança nos sistemas de perícia. Como afirma Giddens (1991, p.132) “mais danoso que a descoberta por parte do leigo deste tipo de ocultamento é a circunstância em que a plena extensão de um determinado conjunto de perigos e dos riscos a eles associados não é percebida pelos peritos”.

Guivant (2001) observa que nas análises das questões relacionadas aos riscos e a percepção de riscos, a polarização apresentada entre sistemas de perícia e o público faz parecer que os dois setores são homogêneos em relação aos seus posicionamentos, o que, argumenta, contraria a realidade de coalizões heterogêneas e não convencionais que são observadas entre os dois. Essas coalizões foram fundamentais para que os atores fora dos sistemas especialistas utilizassem também uma argumentação técnica sobre os riscos. Para a autora, o aparecimento de pareceres técnicos divergentes sobre os mesmos riscos levaria a debates a partir dos quais se iniciou a discussão da incerteza do conhecimento tecno- científico.

A situação de confrontação entre opiniões contrárias, ambas originárias do conhecimento técnico-científico operado pelos sistemas de perícia, que torna conhecida a indeterminação de alguns tipos de risco, não combina com a imagem de infalibilidade construída pelo conhecimento técnico-científico ao longo de sua consolidação na era moderna, dando origem a uma crescente crise de confiança na ciência e na própria idéia de perícia.

Assim, os mecanismos utilizados para a aceitação da ciência e tecnologias e para a construção da imagem de infalibilidade28, que serviram para elevar o conhecimento científico ao ponto máximo de consideração social e estabilizar a confiança nos sistemas de perícia,

28

Os mecanismos incluem a divulgação e popularização da ciência, o ensino, desde o início da vida escolar, da ciência consolidada, o ocultamento de divergências, problemas e riscos, dentre outros.

podem estar perdendo sua eficácia em uma sociedade na qual os agentes podem buscar as informações disponíveis, favoráveis ou desfavoráveis, ao invés da necessidade de se valerem da confiança.

Contudo, os cientistas sabem que a ciência não é infalível, que ela não trabalha com a idéia de verdade absoluta29 e que a verdadeira noção de investigação científica é quase oposta a isso.

O esclarecimento à sociedade das bases reais do conhecimento científico é extremamente benéfico para a própria ciência, que se livra da responsabilidade absurda da infalibilidade (BECK, 1998). A comunicação entre o conhecimento técnico-científico e a sociedade tem nesse aspecto esclarecedor das reais possibilidades da ciência um dos seus objetivos mais importantes.