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1. Análise de Discurso Crítica

1.6 Por que Análise de Discurso Crítica?

Embora tenha apresentado ressalvas sobre determinadas leituras da ADC, nas considerações iniciais, essa abordagem é adotada nesta pesquisa como teoria e método. O enfoque fundamenta-se basicamente na proposta de Norman Fairclough (2001)35 e Fairclough e Chouliaraki (1999)36, tanto para

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Teorias do Norte são, segundo Boaventura de Sousa Santos (2007), as produzidas no hemisfério Norte, em oposição às Teorias do Sul, produzidas no hemisfério Sul.

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Fairclough, N. Discurso e mudança social.Trad. I. Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

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Chouliaraki, L. e Fairclough, N. Discourse and late modernity: rethinking Critical Discourse

analisar os filmes, quanto para a avaliação dos diversos elementos que se referem à construção do discurso de brasilidade.

A ADC se interessa por toda e qualquer forma de relação que contribua para discutir a manutenção ou reestruturação das relações de poder entre os sujeitos sociais. Isso torna necessário o questionamento sobre o modo de representação da alteridade, uma vez que é por esse questionamento que são evidenciadas as estratégias discursivas semióticas e/ou linguísticas que tentam esvaziar a construção discursiva da naturalização de discursos arbitrários de brasileiros.

Para esta pesquisa, a noção de brasilidade será considerada uma categoria de análise, haja vista ser fundamental para pensar em estereotipagem do brasileiro. Além disso, tomá-la dessa forma acaba por revelar as relações de poder entre os sujeitos sociais (conforme as colaborações de SPIVAK, 2010). Por isso, a ADC é adotada aqui com o objetivo de buscar conhecer em que medida as formas simbólicas estabelecem e sustentam essas relações de poder, pois a representação discursiva dos brasileiros sobre os brasileiros evidencia a posição ideológica assumida e defendida tanto pelos autores/diretores dos filmes nacionais, quanto pela comissão de avaliadores do Oscar para a categoria de melhor filme em língua estrangeira.

Conforme já mencionado anteriormente, o discurso, de acordo com a ADC, é concebido como “um dos momentos da prática social, que é composta por mais outros cinco momentos: instituições/ritos; práticas materiais; crenças/valores/desejos; poder; e relações sociais. Cada momento interioriza todos os outros. Então, pode-se dizer que o discurso é uma forma de poder, um modo de formação de crenças/valores/desejos, uma instituição, um modo de relato social, uma prática material.”37

O esquema elaborado por Rodrigues38 permite uma melhor visualização desta imbricação do discurso e os outros momentos:

37

Chouliaraki, L. e Fairclough, N. 1999. Op. cit, p. 6.

38

Rodrigues, E. G. Sobre a consciência e a crítica: discurso, reflexividade e identidade na formação de professores(as) alfabetizadores(as). Universidade de Brasília: dissertação de mestrado, 2001.

Re laç ões Soci ais Discu rso/Linguagem P rátic as M a te ria is In st itu õe s / Ritu

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ese

jos

Figura 6: Esquema de visualização da relação do discurso com os outros momentos da prática social (RODRIGUES, 2001, p. 27).

Aplicando-se esse esquema à discussão sobre a constituição da brasilidade, é possível perceber que o discurso de brasilidade, nesses produtos culturais, evidencia uma relação indissociável com as crenças/valores/desejos, utilizados pela indústria cinematográfica nacional. Esta se vale de seus recursos de publicidade e patrocínio, para representar relações sociais consideradas como sendo “brasileiras autênticas”, materializadas discursivamente em filmes nacionais. Essa construção está voltada não para brasileiros, que, de algum modo, reconhecem o que os representa, mas para estrangeiros que têm uma visão idealizada/estereotipada do brasileiro, em virtude de que, muitas vezes, não têm contato com outros discursos que possam promover a abertura discursiva sobre questões culturais, sociais, políticas e étnicas sobre o Brasil.

Nessa perspectiva, o processo de produção é afetado pelas interpretações feitas pelo Ministério da Cultura (MinC), primeiramente, e pela comissão que avalia os vários filmes de diferentes nacionalidades que concorrem ao Oscar na categoria de melhor filme em língua estrangeira39,

posteriormente. Em outros termos, nesses casos, os

39 Ressalto aqui o recorte feito pela comissão do Oscar, para tratar não de “filme estrangeiro”,

mas “filme de língua estrangeira”, ou seja, o foco é a língua, e não a cultura. Selecionar um filme pela língua utilizada é redutor, e, ao mesmo tempo, fica implícito que para concorrer às categorias principais do Oscar o filme tem de ser em inglês; esse modo é excludente e marca a questão do monopólio cultural da premiação (agradeço ao meu amigo Harrison por essa reflexão).

produtores/roteiristas/diretores parecem ter em mente, como primeiros leitores de seus textos, não os brasileiros, mas a Comissão do MinC – que se preocupa em selecionar o filme que possa ser indicado ao Oscar –, e a Comissão do Oscar. Os brasileiros não possuem poder suficiente para dar esse prêmio a filmes nacionais40. Toda essa conjuntura evidencia a construção social de “olhares” interpessoais que são manifestados discursivamente41

.

Por ser um produto áudio-visual, o filme necessita de uma concepção de análise que englobe todas as características que o definem (roteiro, enredo, imagem, som). Sobre essa questão Kress e van Leeuwen42 alertam-nos para o fato de que o aspecto linguístico nem sempre pode evidenciar o estereótipo ou a discriminação, enquanto o visual pode apresentar-se carregado de conteúdo discriminador. Por isso, ressalto a necessidade de pensar uma análise integrada, tanto com categorias verbais quanto visuais, de maneira não separada. Dessa forma, os recursos de linguagem empregados (a metáfora, a metonímia, a intertextualidade) devem ser pensados tanto visual como verbalmente. Alia-se a isso a especificidade da multimodalidade textual, pois alguns elementos característicos podem ser expressos visual e verbalmente, e em parte eles divergem – algumas coisas podem ser “ditas” apenas visualmente, outras só verbalmente. Mas quando algo pode ser “dito” tanto visualmente quanto verbalmente, a maneira pela qual isso será dito é diferente43.

Como os objetivos desta pesquisa referem-se a questões de representação, o interdiscurso possui um papel importante na análise: por meio dele é que será possível observar a relação das ordens discursivas com o discurso de brasilidade, especificando como estão articulados outros discursos e outras vozes (linguagens usadas por uma categoria particular de pessoas em ligação com suas identidades, por exemplo, a voz médica – CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH, 1999, p. 63). Para entender melhor os conceitos de interdiscurso e discurso, recorro a Fairclough (2001, p. 96) que entende o interdiscurso em termos de ordem de discurso. No entanto, Magalhães (2000,

40

Isso será melhor explicado na Seção 2.2.1.

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Os detalhes da seleção serão tratados no próximo capítulo.

42

Kress, G. e van Leeuwen, T. Reading images: the grammar of visual design. London and New York: Routledge, 1996.

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p. 91) estabelece uma diferença entre os dois: o interdiscurso refere-se “à diversidade dos gêneros discursivos e sua interrelação; e a ordem de discurso refere-se à totalidade de práticas discursivas em uma sociedade ou instituição, à interrelação entre as práticas, às articulações e rearticulações entre elas”. Quanto ao conceito de discurso, dado por Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 63), deve ser entendido como sendo o tipo de linguagem usada para construir algum aspecto da realidade sob uma perspectiva particular, por exemplo, o discurso político liberal.

Diante do exposto, percebe-se a relevância de delinear quais discursos e vozes aparecem, e como são expostos, nos filmes, principalmente para delimitar as questões de estereotipia que envolvem aspectos ideológicos quando da construção dos filmes. Assim, a ênfase da análise é fundamentada, sobretudo, nas práticas sociais, por considerar que os indivíduos interagem socialmente. Embora alguns deles acreditem que a sociedade seja uma coletividade homogênea, em que os interesses em comum e em benefício de todos prevaleçam (democracia), há uma constante luta em que os interesses se localizam e se constroem, como se pode ver em vários estudos em diferentes áreas.

O processo de representação dos sujeitos sociais envolve não só os representados, mas também os representadores, como bem ressaltam Chouliaraki e Fairclough44 sobre a reflexividade envolvida nesse processo. Isto é, os sujeitos estão, de certa forma, representando-se ou representando parte do que fazem. No entanto, essa representação, quando ligada à semiose, se dá de forma a conceber o mundo social como autoevidente, o que resulta na consequente inércia da representação45, que é caracterizada pela conservação social de representações dos sujeitos sociais. No caso do filme, podemos perceber orientações do autor no discurso, por meio, por exemplo, das posições da câmera, como será apresentado na Subseção 1.7.2.

Atualmente, com a existência de inúmeras inovações tecnológicas, deve-se pensar a mídia de uma forma semiótica, em que a comunicação conceba o linguístico e o visual como elementos que se

44

Chouliaraki, L. e Fairclough, N. 1999. Op. cit.

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Thompson, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Mercado Aberto, 1995, p. 59.

complementam. Tal abordagem é feita por Chouliaraki e Fairclough46, que propõem um conceito de discurso que engloba a percepção semiótica47. O discurso é, assim, um momento da prática social, em interação com os outros momentos dessa prática, englobando elementos semióticos, o que

inclui a linguagem (escrita e falada e em combinação com outras semioses, por exemplo, com música, canto), comunicação não-verbal (expressões faciais, movimentos corporais, gestos, etc.) e imagens visuais (por exemplo, fotografias, filmes). (CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH, 1999, p. 38).

Portanto, o conceito de discurso pode ser entendido como uma perspectiva particular sobre várias semioses, vistas como momentos de práticas sociais em articulações com outros momentos não discursivos.

Para análises discursivas, Fairclough (2001) construiu um modelo de análise tridimensional do discurso, baseado na gramática sistêmico- funcional de Halliday (1985). Esse modelo aborda três funções que contemplam elementos textuais, interpessoais e ideológicos de maneira simultânea. No entanto, esse modelo acabou por abrir questões sobre o que deveria ser analisado. Por isso, Meurer (2005, p. 95) esboçou, de uma maneira didática, o modelo tridimensional de discurso teorizado por Fairclough, conforme a Figura 7, mostrando o que deveria ser incluído e/ou analisado no discurso:

46

Chouliaraki, L. e Fairclough, N. 1999. Op. cit, p. 38.

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Ressalta-se aqui que outros pesquisadores também já fizeram essa junção, a citação de Chouliaraki e Fairclough se justifica pela adoção da ADC como teoria e metodologia para esta pesquisa.

PRÁTICAS SOCIAIS (o que as pessoas fazem) EXPLICAÇÃO Ideologia Hegemonia INTERPRETAÇÃO Força Coerência Intertextualidade Interdiscursividade DESCRIÇÃO Léximo Gramática Coesão Estrutura PRÁTICAS DISCURSIVAS

(produção, distribuição e consumo de textos)

TEXTO (evento discursivo)

Figura 7: Modelo tridimensional de Fairclough adaptado por Meurer (2005).

Nesta pesquisa, por exemplo, o foco de análise estará mais centrado nas práticas discursivas, por envolver produção, distribuição e consumo de filmes. Mesmo parecendo redutor focalizar a análise nas práticas discursivas, podemos perceber que as outras duas dimensões a acompanham e aparecem também nas análises empreendidas. O corpus desta pesquisa se constitui de 14 filmes, e é por meio do evento discursivo neles materializado que podemos perceber implicações relacionadas a questões interpessoais (no caso brasilidade). Os estereótipos de brasilidade demonstram escolhas políticas e hegemônicas importantes para a análise, pois subjetivam a maneira de outros – estrangeiros – olharem para o Brasil.

Depois de apresentar o seu modelo tridimensional, em 199948, Fairclough, em parceria com Chouliaraki, problematizou questões sociais consideradas por eles como importantes e acabou estendendo o seu modelo de análise, ao explicitá-lo da seguinte forma:

1. Um problema (atividade, reflexividade). 2. Obstáculos na superação do problema: (a) Análise de conjuntura;

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(b) Análise da prática e do momento discursivo: i. Prática(s) relevante(s)?

ii. Relação do discurso com outros momentos? - discurso como parte da atividade

- discurso e reflexividade. (c) Análise do discurso:

i. Análise estrutural: a ordem do discurso ii. Análise interacional:

- análise interdiscursiva

- análise semiótica e linguística

3. Funcionamento do problema na prática. 4. Maneiras possíveis de superar os obstáculos. 5. Reflexão sobre a análise.

Relacionando o modelo tridimensional a este novo modelo, percebemos que grande parte dos elementos tocados no primeiro modelo ainda continua: as letras a, b e c do número 2 correspondem, respectivamente, à prática social, à prática discursiva e ao texto do modelo apresentado anteriormente (FAIRCLOUGH, 2001).

Em sua concepção inicial, a ADC foi considerada, por muitos, como uma teoria “messiânica”, em virtude de muitos “adeptos” tentarem “fortalecer”, “resolver topicamente problemas sociais complexos”. Por isso, acabou sendo rejeitada por alguns teóricos. A concepção dessa nova formatação da teoria, explicitada acima, principalmente nos itens de números 2 e 4 (obstáculos na superação do problema e maneiras possíveis de superar os obstáculos, respectivamente) acaba por reforçar esse caráter considerado messiânico, mas isso não invalida a teoria como um todo.

Acredito que a desnaturalização discursiva promovida pela ADC já é em si uma possibilidade de superação do problema e, por isso, a considero extremamente importante, pois apresenta a realidade também como uma construção discursiva. Além disso, a ADC inclui o poder social/cultural que determinados elementos possuem de não só se reinscreverem, mas de silenciarem outras opções de representações.

Observações sobre as motivações ideológicas nas escolhas textuais e os silêncios estabelecidos por elas são úteis para o desenvolvimento de uma leitura crítica para praticamente tudo, o que inclui a própria ADC. No entanto, como o discurso está amalgamado ao aspecto social, não é possível prever soluções simples para “resolver” situações consideradas problemáticas. Todo e qualquer objeto de análise balizado no social deve ser considerado complexo. Os objetos são fixados culturalmente e suas materialidades estão em toda parte – e em lugar algum – além de serem históricos, porque são frutos de determinadas conjunturas que, quase sempre, os naturalizam.

Os modelos aplicados ao objeto desta pesquisa evidenciam que, quanto à dimensão textual, há aspectos que revelam como o filme está estruturado, como os elementos coesivos (verbais e não verbais), lexicais e iconográficos estão relacionados às outras duas dimensões: práticas discursivas e sociais. Na análise do filme como prática discursiva, são abordados, em especial, a produção, distribuição e consumo do gênero filme (ver capítulo 2 sobre gênero textual). Para a prática social não é possível negligenciar a influência que a construção desse gênero textual – por meio de escolhas (de tema, recursos, inovações etc.) – provoca socialmente, na construção de ideologias e hegemonias, voltando o foco para o discurso sobre brasilidade (ver capítulo 3 sobre brasilidade).