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3 AS MARCAS DA PAISAGEM ALÉM DAS FRONTEIRAS:

3.3 Por uma nova escala de conservação: a ecorregião

Na medida em que se avança na compreensão da necessidade de conservação da natureza, avançam também os questionamentos sobre as melhores estratégias a serem utilizadas. O ideário preservacionista que defende que a única forma de proteger a natureza é afastá-la do ser humano, em áreas protegidas, como se fossem “ilhas intocadas”, precisa ser ultrapassado. A proteção do meio natural não deve ser feita em detrimento das necessidades humanas. Neste sentido, proposições

conservacionistas precisam ser reforçadas e progredir no sentido de práticas de proteção que considerem a situação cultural e econômica das sociedades e que compreendam a conservação como uma possibilidade de uso sustentável da natureza.

A referência histórica utilizada mundialmente para o modelo das “ilhas intocadas” é o parque nacional de Yellowstone, que, quando criado, em meados do século XIX, também determinou que a região fosse reservada e proibida de ser colonizada, ocupada, vendida e que toda pessoa que se estabelecesse ou ocupasse aquele parque ou qualquer de suas partes (exceto as já estipuladas) fosse considerada infratora (DIEGUES, 2001).

Em conformidade com o 'modelo Yellowstone' foram criadas muitas áreas preservadas, destinadas à recreação pública, sem moradores e sem uso dos recursos naturais. A beleza exuberante de Yellowstone e muitas características naturais tais como o maior lago de montanha nos Estados Unidos, seus geysers, cachoeiras maravilhosas, picos cobertos de neve e fauna abundante motivaram a criação de milhares de parques em todo o mundo. Durante anos os administradores lutaram por criar parques baseados no modelo Yellowstone, e transferiram moradores, frequentemente de maneira forçada, de áreas em que tinham vivido por séculos. Segundo Harmon, as consequências de tal modelo podem ser terríveis (DIEGUES, 2001, p. 28).

A transferência destes modelos de parques sem moradores e vindo de países industrializados para os países tropicais, cujas florestas remanescentes foram e continuam sendo, em grande parte, habitadas por populações tradicionais, está na base não só de conflitos insuperáveis, mas de uma visão inadequada de áreas protegidas. Essa inadequação, segundo o autor (op. cit.), aliada a outros fatores como graves conflitos fundiários em muitos países, noção inadequada de fiscalização, corporativismo dos administradores, expansão urbana, profunda crise econômica e a dívida externa de muitos países subdesenvolvidos, estão na base do que se define como a "crise da conservação" (DIEGUES, 2001).

Inúmeras críticas surgem a essa inadequação do modelo de áreas protegidas, e com elas novas estratégias de conservação da natureza são propostas. Novas formas de compreender o meio natural e outras escalas de abordagem passam a ser pensadas. Uma das iniciativas que surge para subsidiar uma nova discussão sobre estratégias de conservação do patrimônio natural, por exemplo, é a proposta de ecorregião. Na intenção de aprimorar o mapeamento da biodiversidade – principalmente daquela a ser preservada – Olson et. al. (2001) propõem a ecorregião,

definida por ser uma grande unidade de terra ou água que contém uma mescla geograficamente distinta de espécies, comunidades naturais e condições ambientais. De acordo com os autores (op. cit.), os mapas existentes de biodiversidade global têm sido ferramentas ineficazes para pensar a conservação, pois dividem a Terra em unidades que desconsideram as associações de espécies e a história geológica (como a forte influência das glaciações ou das pontes de terra do Pleistoceno) sobre a distribuição de plantas e animais. Neste sentido, a proposição de ecorregiões constitui uma nova maneira de espacializar a diversidade da vida na Terra, colocando-se como alternativa ao conceito de Bioma que, segundo FIGUEIRÓ (2012), caracteriza-se pela absoluta ausência de qualquer referência às formas de ocupação humana existentes dentro de cada um dos conjuntos naturais delimitados, quando na verdade muitos têm o componente humano como definidor da diversidade. De acordo com o autor (op. cit.),

Não podemos simplesmente aceitar que alguns milhares de anos de desenvolvimento da sociedade humana em interação direta com as comunidades vegetais e animais do planeta não tenham resultado em estruturas e processos co-evolutivos entre umas e outras. São as nossas geo-grafias humanas (marcas humanas sobre a terra) entremeadas às estruturas naturais, tanto quanto as geo-grafias da natureza têm condicionado nossas formas de produzir, de viver e de sonhar (FIGUEIRÓ, 2012, p.66).

A despeito das limitações individuais de cada abordagem – domínios biogeográficos e biomas – Olson et. al. (2001) utilizaram uma integração de ambas como base para sua proposição de ecorregiões. Da sobreposição de 8 domínios biogeográficos e 14 biomas – o primeiro se relaciona às proximidades filogenéticas produzidas por um passado comum, e o segundo às semelhanças estruturais e fisionômicas decorrentes de condições ecológicas atuais semelhantes – resultaram 867 ecorregiões, conforme pode ser observado na figura 7.

A demarcação das ecorregiões utilizou mapas biogeográficos reconhecidos de cada domínio, além de bases de dados já existentes em cada país ou região. Para a definição das ecorregiões da região Neotropical, por exemplo, a classificação de habitats utilizada foi a do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Os autores (op. cit.) explicam ainda que, quando o conjunto de fontes disponíveis era insuficiente, o relevo e a vegetação foram utilizados como indicadores para a compartimentação da ecorregião.

Dentro do bioma “campos, savanas e formações arbustivas tropicais e subtropicais” destaca-se a ecorregião denominada pelos autores (op. cit.) como Savana Uruguaia. Esta ecorregião abrange desde a metade sul do Rio Grande do Sul, todo o Uruguai até uma pequena parte da província Argentina de Entre Ríos, sobrepondo-se e coincidindo, em linhas gerais, com a área denominada neste trabalho como “Pampa uruguaio sul-rio-grandense”.

Aqui cabe uma ressalva e uma crítica a denominação dada pelos autores à ecorregião, quando a definem como savana. Segundo Marchiori (2002), apesar das características semelhantes com as savanas – vegetação campestre, pontilhada de arbustos ou árvores esparsas – pelo critério fitoecológico, savanas são vegetações típicas de áreas tropicais, cujo clima é marcado pela vigência de uma estação seca. No entanto, no Rio Grande do Sul, por exemplo, inexiste clima estacional com período seco pronunciado. Segundo o autor (op. cit.), as diferenças florístico-estruturais do Pampa refletem, em verdade, muito mais as variantes edáficas do que efeitos climáticos, alternando-se frequentemente em mosaico. E a opção de classificação em “savana” resulta forçada no espaço regional, justificando-se basicamente pela conveniência à nomenclatura internacional, em detrimento a uma interpretação bem fundamentada da natureza local.

A proposta de regionalização da diversidade através de ecorregiões chega às entidades de proteção ambiental como alternativa mais eficaz de planejamento para conservação da biodiversidade, como no World Wildlife Fund – WWF, por exemplo. No entanto, Olson et. al. (2001) fazem algumas ressalvas e trazem algumas observações sobre a proposta de espacialização. Dentre elas, o fato de que as ecorregiões raramente formam arestas bruscas, ou seja, apresentam grandes áreas de transição que não possuem limites físicos definidos, e de que a maioria delas contêm habitats que diferem de seu bioma atribuído. Citam como exemplo as ecorregiões da floresta tropical (a Amazônia, por exemplo), que muitas vezes contêm pequenas savanas edáficas no seu interior. Sugerem ainda que análises mais detalhadas devem mapear estes habitats menos dominantes que ocorrem dentro das ecorregiões maiores – e que as estratégias de conservação devem respeitar e considerar estas exceções.

Figura 7 – Domínios biogeográficos, biomas e ecorregiões terrestres.

Legenda: No primeiro mapa, a distribuição mundial dos 8 domínios biogeográficos (em vermelho) e

dos 14 biomas (em cores) utilizados como base para a proposição das ecorregiões. Em seguida, o mapa das ecorregiões terrestres do mundo reconhece 867 unidades distintas, articulando os critérios florísticos/faunísticos com os critérios ecológicos e fisionômicos.

Fonte: OLSON et. al., 2001.

Este é o caso, de uma forma geral, do Pampa uruguaio-sul-rio-grandense, o qual é representado, no mapa dos biomas brasileiros e das ecorregiões globais, como uma unidade homogênea. Em abordagens globais, continentais ou mesmo nacionais,

como as de Olson et al. (2001) ou de IBGE (2004), essa homogeneidade do Pampa uruguaio-sul-rio-grandense é compreensível, uma vez que, na escala de maior abrangência, a área é dominantemente caracterizada por vegetação rasteira e arbustiva em relevo suave ondulado com clima subtropical, diferente das ecorregiões adjacentes, florestais (a floresta atlântica, a norte), úmidas (a mesopotâmia argentina, a oeste) ou de relevo muito plano e clima temperado (o Pampa argentino propriamente dito). No entanto, em escala de maior detalhe, a suposta homogeneidade dessa extensa área não se sustenta frente à realidade observada no campo, onde o que existe na prática é uma substancial diversidade de geologia, relevo, fisionomia e paisagem, e que resultam, por óbvio, em uma biota característica.

Da mesma forma, essa noção de uma homogeneidade regional não favorece a distribuição dos esforços e o planejamento adequado por parte das instituições locais (sul-rio-grandenses, brasileiras e uruguaias) de meio ambiente para iniciativas ou estratégias de conservação da natureza. A observação se faz extremamente pertinente e serve inclusive de alerta para esta e demais definições gerais/globais de áreas com necessidade ou não de conservação. No entender de Gudynas (2002),

“(...) se tem usado a desculpa da baixa biodiversidade em certos ecossistemas para justificar empreendimentos de alto impacto ambiental” (p.198). Diante disso,

FIGUEIRÓ (2012) compreende que:

Certamente a adoção de prioridades de conservação aprofunda o distanciamento da sociedade em relação às melhores estratégias de conservação da natureza, já que: a) não estabelece nenhuma prioridade de valorização para as áreas do planeta onde a interação sociedade- natureza tem obtido os melhores resultados em termos de preservação ao longo da história; b) assume que a preservação da diversidade genética prevalece sobre as demais formas de diversidade, hierarquizando as regiões segundo seu “estoque de recursos” e não segundo suas potencialidades de desenvolvimento sustentável. (p. 68)

Diante da necessidade de considerar as demais formas de diversidade e também as diferentes formas de interação entre sociedade e natureza, é de extrema importância realizar um maior detalhamento da ecorregião que contempla o Pampa. Neste sentido, uma nova proposta de ecoprovíncias será apresentada nesta pesquisa (pág. 149), considerando as particularidades reais existentes, mas que se tornam invisíveis na escala global.

As ecoprovíncias são compreendidas neste trabalho como os compartimentos de uma ecorregião, com base em suas características de relevo, geologia,

geomorfologia, vegetação, solo, fauna e/ou hidrologia. Não há consenso na literatura científica nem na gestão territorial quanto à utilização do termo ecoprovíncia, nem mesmo uma rigidez na definição de sua escala.

Subdivisões da ecorregião em províncias ou ecoprovíncias são utilizadas na Itália, na Espanha, na Austrália e no Canadá, por exemplo. Ainda que seja impossível comparar o tamanho/escala desses países entre si, as características das ecoprovíncias na Itália (BLASI et. al., 2010) se assemelham às características das ecoprovíncias propostas aqui para o Pampa uruguaio-sul-rio-grandense, tanto nos critérios utilizados para definição quanto na escala.

No sistema de subdivisões do Canadá, a província (divisão administrativa) de

British Columbia utiliza a ecorregião como uma subdivisão da ecoprovíncia

(DEMARCHI, 2011), de forma inversa à que está sendo utilizada nesta pesquisa. É necessário salientar que as ecorregiões propostas por Olson et. al. (2001) são consideradas na gestão territorial de British Columbia, porém sob a denominação de ecoprovíncia. Nesse mesmo sentido, ainda que numa abordagem específica para ecossistemas, a divisão utilizada pelos espanhóis (BORJA-BARRERA et. al., 2004) para a Andaluzia, por exemplo, também contraria a proposta de Olson et. al. (2001) quando propõe uma subdivisão da ecoprovíncia em diversas ecorregiões não condizentes e de tamanho muito menor do que o proposto pelos autores (op. cit.).

Assim, diante da ausência de uniformidade dentre as diversas utilizações do termo ecoprovíncia, assume-se também neste trabalho o risco do equívoco e da proposição de uma denominação sem referências anteriores definidas.

4. PERCORRENDO CAMINHOS JÁ CONHECIDOS

4.1 ESTRADA PAISAGÍSTICA: ESTRATÉGIA DE CONSERVAÇÃO DA PAISAGEM