• Nenhum resultado encontrado

3 AS MARCAS DA PAISAGEM ALÉM DAS FRONTEIRAS:

3.2 Por uma outra concepção de conservação: a biorregião

Além de avançar na maneira como se vê e se espacializa a vida na Terra, e mais especificamente na região do Pampa Brasil-Uruguai, é preciso preocupar-se com as questões de conservação, de redução de impactos ambientais e de sustentabilidade da bio-socio-geodiversidade. A afirmação de Figueiró (2012, p.67), de que “não são apenas as espécies que estão desaparecendo, junto com elas desaparecem também as formas de patrimônio que possuem estreita ligação com as comunidades bióticas ao longo da história: a geodiversidade e a diversidade cultural”, reforça tal posicionamento. Assim, os habitats que sustentam as espécies biológicas, precisam ser considerados nas estratégias de conservação. Dessa forma, fica clara a necessidade de ultrapassar a concepção de conservação de “santuários ecológicos intocados”, e pensar novos processos e métodos de conservação que envolvam a

complexidade das paisagens, as comunidades, seus saberes, suas histórias e sua cultura.

Uma das abordagens que melhor contemplam esta perspectiva é a do biorregionalismo. De acordo com Martino (2005), o conceito oferece um novo olhar sobre o território, pois permite incorporar aspectos sociais e econômicos com o contexto ecológico, incorporando propostas de desenvolvimento econômico preocupadas com a conservação do ambiente e com a melhoria da qualidade de vida das populações locais.

Criada pelo australiano Peter Berg em 1977, esta abordagem surge com a finalidade de restaurar e manter os sistemas naturais, desenvolver estratégias sustentáveis que deem suporte aos processos de desenvolvimento local e, ao mesmo tempo, promover uma transformação da racionalidade do mercado em direção a modelos de vida mais sustentáveis do ponto de vista social, cultural e ecológico (McGINNIS, 2005). Conforme Alexander (1996), a primeira declaração dessa abordagem foi no artigo "Reinhabiting California", publicado no The Ecologist, em 1977, no qual o autor (BERG, 2002) afirma que o termo biorregião refere-se tanto ao terreno geográfico quanto ao terreno de consciência – um lugar e as ideias que se desenvolveram sobre como viver nesse lugar. Dentro de uma biorregião, as condições que influenciam a vida são semelhantes e, por sua vez, estas influenciam a ocupação humana.

Alexander (1996) também contribui na discussão sobre o conceito e afirma que o biorregionalismo tem sido chamado de “política do lugar”. Aponta sua diversidade de características e dentre elas, ressalta as seguintes: a) o respeito e a consideração da natureza e da identidade cultural na definição dos limites administrativos e políticos; b) sua organização em unidades menores considerando as atividades humanas; c) dá ênfase à ética do uso da terra e d) apoia a diversidade de culturas a nível local e regional como garantia da adaptação ambiental, em oposição à tendência para a monocultura global.

Martino (2005) corrobora com Alexander (1996), pois afirma que o biorregionalismo se mantem como um movimento heterogêneo. No entanto, chama a atenção para o fato de que existem alguns elementos comuns às distintas vertentes, como por exemplo: a) o reconhecimento da existência de uma crise social e ambiental, cujas raízes se encontram no capitalismo e em seu progresso; b) a certeza de que a sustentabilidade está ligada a descentralização, e que acontecerá mais facilmente se

o processo de descentralização se basear no conceito de biorregião; c) a ideia de que as culturas baseadas na biorregião são respeitosas com o passado e com as raízes culturais vinculadas à região; d) a forma de governar as biorregiões deve ser democrática e participativa, se articular junto a uma rede de conexões de interesses econômicos e culturais de outras biorregiões; e) reforça a dependência de bens obtidos de forma local e uso de tecnologia apropriada (ABERLEY, 1999 e MARTINO, 2005).

Ao discutir o biorregionalismo, Aberley (1999) expõe que:

...biorregionalismo é um conjunto de pensamentos e práticas relacionadas que evoluíram em resposta ao desafio de voltar a ligar culturas a ecossistemas de forma sustentável. Ao longo de quase 25 anos este projeto ambicioso de "reinhabitation" evoluiu fora dos epicentros políticos ou intelectuais habituais da suposta civilização. Em vários lugares, sejam urbanos ou rurais, as comunidades têm cuidadosamente e alegremente aprendido a identidade cultural e biofísica de seus próprios territórios – da sua biorregião... (p.13)

E complementa:

O foco aqui é sobre uma "tribo da ecologia" em vez do “Estado-nação”; um círculo ao redor de uma fogueira em vez da fornalha nuclear; rituais em vez de Natal consumível; toque, música e experiência compartilhada em vez da narcose da monocultura induzida por televisão... (p. 16 – 17)

Apesar das distintas vertentes apresentadas acima, na América Latina o conceito ainda é pouco debatido, mesmo existindo um interesse marcante para o regional, a exemplo dos acordos de integração, como o Mercado Comum do Sul – MERCOSUL e a Comunidade Andina de Nações – CAN. Debates em torno de um “regionalismo autônomo”, como propõe Gudynas (2002) se aproximam muito da ideia de biorregionalismo, pois estão baseados em questões de conservação e de qualidade ambiental, de relações humanas e culturais em regiões geográficas determinadas por atributos tanto ecológicos quanto culturais, econômicos e políticos (GUDYNAS, 2002).

Nesta perspectiva, um dos elementos centrais dentro da abordagem biorregionalista, é justamente a definição dos recortes territoriais das biorregiões, entendidas estas como sendo “espaços geográficos onde existem caracteres homogêneos desde o ponto de vista ecológico, com fortes vinculações entre as populações humanas e complementaridades e similitudes nos usos humanos que se fazem desses ecossistemas” (GUDYNAS, 2002). Assim, considerando que a pequena

variação fisiográfica do Pampa tende a transformá-lo em um espaço geográfico relativamente homogêneo do ponto de vista ecológico (frente às enormes diversidades paisagísticas dos territórios que o cercam), somado à identidade cultural presente nas sociedades que ali se desenvolveram, seja na Argentina, no Uruguai ou no Rio Grande do Sul e a forma como essa população ocupa e transforma seu espaço, induz à compreensão de uma “Biorregião do Pampa”.

Assim como no Pampa, a biorregião é identificada em função de um padrão único de características que se encontram em um local específico. As principais características são um clima particular, formas de relevo, bacias hidrográficas, solos, plantas, animais e as pessoas (como parte integrante da vida de um local). De acordo com Berg (1996) a biorregião é uma ideia cultural, e por isso utiliza informações não apenas das ciências naturais, mas de diversas outras fontes. Em suas palavras: “It is

a geographic terrain and a terrain of consciousness” (1996, p.02), ou seja, estudos

antropológicos, relatos históricos, evolução social, costumes, tradições e artes desempenham papel fundamental na identificação de uma biorregião.

Todas estas esferas são utilizadas para atingir os objetivos do biorregionalismo, que conforme o autor (op. cit.) são de: a) restaurar e manter os sistemas naturais locais; b) praticar formas sustentáveis para satisfazer as necessidades humanas básicas como comida, água, energia, habitação, etc. e c) dar suporte ao “re-habitar” (reinhabitation) – viver conscientemente e com sensibilidade em sua localidade, incluindo poder de decisão econômica e política para os moradores (os sujeitos principais, que sabem das necessidades do local).

A biorregião seria o produto da relação entre natureza e cultura, e, portanto, em constante mudança. Teoricamente os seres humanos transformam a natureza, e esta condiciona, até certo ponto, o tipo e a forma de ocupação. O que acontece na modernidade é que a balança está pesando muito mais para a sociedade, ou seja, projetam-se modelos de desenvolvimento que subestimam a necessidade de retroalimentação da natureza. Isto, segundo Martino (2005) se deve à falta de arraigo – apego ou identidade – com o entorno natural. Segundo ele (op. cit.) este divórcio entre natureza e cultura está vinculado aos processos industriais e de comércio internacional, onde o consumidor está física e subjetivamente distante das matérias primas e dos processos de produção. O biorregionalismo seria uma oportunidade para um retorno à natureza.

É possível afirmar que o biorregionalismo está preocupado com o local. Porém, além de abordar as oportunidades de mudança de vida diária (como reflorestamentos e hortas urbanas) sua influência deve ser também na esfera política. Nos EUA, por exemplo, organizações baseadas em bacias hidrográficas com prioridades biorregionais, não limitam suas ações a restauração, conservação da água ou outras questões mais imediatas, mas também propõem redefinições de fronteiras políticas, para que estas sigam as linhas das bacias hidrográficas e possam receber e executar planos ecológicos com maior eficácia (MARTINO, 2005).

Diante do exposto, pode-se afirmar que o Pampa todo é uma biorregião, pois compartilha grandes características fisionômicas e estas condicionam uma forma de uso e consequente cultura semelhante em todo seu território, e é essa cultura projetada que demarca as fronteiras da biorregião. Dentro desta biorregião, e buscando uma taxonomia adequada à compreensão das variações (inclusive de substrato geológico, conforme discutido) existentes no conjunto do território, o Pampa uruguaio-sul-rio-grandense representa uma ecorregião, a qual será exposta a seguir. Esta ecorregião, por sua vez, apresenta heterogeneidades internas, também ligadas à geodiversidade, que nos levam a definir unidades de paisagem denominadas aqui de ecoprovíncias, cujas delimitações são importantes porque auxiliam na compreensão dos limites de resiliência de cada paisagem e, no caso específico do turismo, o potencial atrativo de cada uma delas.

Cabe ainda reforçar que, apesar das diferenças internas da ecorregião, a história, os costumes e a cultura são muito próximos aos de toda a biorregião, tornando o recorte ecorregional ou mesmo o ecoprovincial possuidor de um apelo muito mais ecológico do que cultural, não no sentido de exclusão, mas sim de complementaridade.