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2.2 A ESTRUTURA ARGUMENTAL DOS DITRANSITIVOS

2.2.6 O português afro-brasileiro (PB-afro)

Tendo em vista que, conforme ratificado pelos testes de assimetria e escopo, e pelos exemplos de passivização, defendo neste estudo que o PB-afro, e também o PB, por ter sofrido um processo intenso do contato com as línguas africanas (LUCCHESI; BAXTER, 1993; LUCCHESI, 2003, 2009; BAXTER, 2009), sobretudo em relação às línguas bantas, a variedade brasileira apresenta vestígios sintáticos de uma competição entre estruturas gramaticais: a) proveniente do PE, com a previsão da preposição dummy a, como marca morfológica de núcleo aplicativo e realização do redobro do clítico de terceira pessoa lhe/lhes; b) proveniente de um padrão geral das línguas bantas em que há construções aplicativas, o apagamento da preposição do dativo alvo/meta de terceira pessoa teria sido consequência da falta de evidência ou marcação morfológica mais visíveis nos DLP durante a aquisição do português como segunda língua; c) proveniente do substrato banto quimbundo, umbundo e quicongo, a construção preposicionada, resultando na relexificação da preposição para, a partir de outros contextos sintáticos da língua-alvo, o PE, e da multifuncionalidade dos prefixos ku, mu, vu das variedades linguísticas bantas, conforme defendo no último capítulo desta tese.

A explicação de Gomes (2003) para a existência da alternância dativa no PB, com a observação da presença da preposição para, do dativo sem preposição, e da ordem dos constituintes internos ao VP, é a de que, por meio de um processo de mudança em relação à ordem dos constituintes internos do verbo ditransitivo, houve um declínio da ordem V DAT OD e aumento da ordem V OD DAT na língua, sendo esta fixada em construções ditransitivas – a autora apresenta uma frequência das ocorrências na ordem V OD DAT de 47% no século XVI e 74% no século XIX. Acrescido a esse fato, a autora ainda comenta que a observação do dativo adjacente ao verbo se deve ao fato do crescimento de OD anafóricos nulos no PB, conforme estudos de Duarte (1986 apud GOMES, 2003). Ressalta-se que Lucchesi (2009b; 2012) critica o tipo de análise feito por Gomes (2003) ao tentar explicar o fenômeno da alternância dativa através de processos já prefigurados na língua, como a ordem dos constituintes, dado que, conforme o Lucchesi (2009b; 2012), faltam dados empíricos suficientes e consistência teórica para a explicação das mudanças por uma deriva secular (NARO; SCHERRE, 1993; 2003; 2007). Ainda que a crítica de Lucchesi contra os processos de deriva secular seja assumida para esta tese, o resultado da análise estatística de Gomes (2003) serve, de qualquer modo, para corroborar a hipótese de que durante o processo de contato entre línguas no Brasil, duas (ou mais) gramáticas entraram em competição: uma que prevê a alternância dativa, com a presença de núcleo aplicativo na COD e preposição em CDP, e outra que, qualquer que seja a configuração sintática do verbo, a inserção do dativo é feito apenas por meio de um núcleo aplicativo (BAKER, 1988; PYLKKÄNEN, 2002; 2012), sendo este não argumental. Além disso, o fato de a autora constatar o uso crescente da ordem V OD DAT demonstra que, quanto ao uso do dativo alvo/meta de terceira pessoa, há preferência pela contraparte preposicionada da alternância dativa e, também, pelo aumento da influência da língua-alvo sobre o vernáculo do brasileiro, é natural observar a ausência da variante trazida pelo contato entre línguas: dativo alvo/meta de terceira pessoa sem preposição, estando essa evidente apenas em contextos bastante restritos, como o PB-afro, por exemplo.

A fim de defender uma análise que considere o contexto sócio-histórico do contato entre línguas durante o período colonial e pós-colonial no Brasil como fator crucial para a compreensão da realidade linguística do PB e, além disso, em busca de compreender os processos que permitiram a implantação da COD na fala dos membros das comunidades afro- brasileiras, Lucchesi e Mello (2009, p. 439) dizem que a noção de valor default na hipótese universalista de Bickerton (1984; 1988) seria uma alternativa para explicar a presença da COD nas comunidades brasileiras, de modo que, no processo de aquisição do português como segunda língua pelos afrodescendentes, devido à situação de contato entre línguas intensa, a

COD entraria como a forma não marcada por não haver DLP (inputs) de morfologia dativa suficientes na língua falada como segunda língua pelos africanos que deram origem às comunidades afro-brasileiras. Entretanto, os autores negam essa hipótese, haja vista a existência também da CDP no PB-afro, demonstrando que os falantes dessas comunidades adquiriram não apenas a COD, mas a CDP considerada a forma marcada, além de estar presente em línguas crioulas, como o caso do sranan e do fa d’ambu (LUCHESI; MELLO, 2009, p. 440). A outra explicação possível para alternância dativa nessas comunidades, segundo os autores, seria o processo de transferência gramatical das línguas de substrato africano, conforme explicam os autores:

A presença generalizada da COD nas línguas crioulas de diferentes regiões do planeta parece militar em favor de hipóteses universalistas. Por outro lado, a presença da CSD em vários crioulos do Caribe, como o saramacan, o sranan e o haitiano, bem como nos crioulos portugueses do Golfo da Guiné (santomense, principense e fa d’ambu), parece estar relacionada com uma forte influência do substrato (BRUYN; MUYSKEN; VERRIPS, 1999, p. 362). (LUCHESI; MELLO, 2009, p. 438).

Embora lancem as duas opções, os autores não chegam a uma conclusão, justificando não haver evidências empíricas suficientes para que se defenda ou a hipótese universalista ou a influência de substrato na inserção da COD no PB-afro.

Por outro lado, Baxter, Mello e Santana (2014), retomando o tema da alternância dativa nas comunidades rurais afro-brasileiras em comparação ao português falado em uma comunidade tonga na ilha de São Tomé, na África, buscam explicar a inserção da COD, sobretudo com o DP dativo em posição adjacente ao predicador verbal, através da hipótese de contribuição do elemento africano como um ponto inicial para a aquisição dessas estruturas.

Propomos, como hipótese, que a dupla configuração da COD nos corpora estudados é um reflexo das variedades de l2 faladas no passado dessas comunidades: transferências do parâmetro preferencial oi+od de l1s niger-congo. (BAXTER, MELLO, SANTANA, 2014, p. 295).

Assim, na proposta dos autores, a verificação da COD nas comunidades afro-brasileiras, sobretudo na ordem V DAT OD, se deve ao fato de que, na história de contato entre línguas, o falante aprendiz de português como segunda língua transferiu a sua preferência pelo parâmetro da ordem V DAT OD das línguas da família niger-congo. Considerando essa proposição dos autores, Ramos e Salles (2017) sugerem que a influência de substrato tenha partido do Fongbe, falado pelo povo Fon em Daomé, já que tais construções apresentam propriedades de duplo acusativo, diferentemente do inglês. No entanto, também da mesma família linguística, além do fato de as línguas bantas apresentarem um padrão sem preposição (BAKER, 1988;

BRESNAN; MOSHI, 1990), os fatos sócio-históricos apontam para maior influência no PB, pelos fatos que discuto no próximo capítulo 3.

Embora seja uma hipótese que se deva perseguir, é importante angariar ainda mais evidências empíricas, sobretudo sócio-históricas, para ratificá-la, uma vez que Lucchesi et al. (2009) afirmam não dispor de informações absolutas a respeito da formação étnica das comunidades de Sapé, Rio de Contas e Cinzento. Apenas a comunidade de Helvécia, segundo os autores, possui informações significativas para tais inferências. Outrossim, Baxter, Mello e Santana (2014) admitem que a existência nas comunidades aqui estudadas da contraparte CDP, ordem V OD DAT, se deve ao fato de, na situação de contato linguístico, a língua portuguesa (superstrato) apresentar estruturas CDP, havendo uma convergência entre a gramática adquirida como primeira língua (L1) e a aprendida como segunda língua (L2), inclusive com DLP de dativos preposicionados adjacentes ao verbo, seja por topicalização seja porque ocorre junto a um OD sentencial pesado. Ressalto que, assumindo que a variante preposicionada do português como língua-alvo à qual se referem os autores serviu de modelo para a convergência das gramáticas, a preposição disponível nas construções dativas era a, e não para, já que esta se encontrava em diferentes contextos na língua e passou, apenas depois do contato entre línguas, a expandir para os contextos de construções dativas de verbos dinâmicos de movimento e transferência. O resultado dessa convergência seria a variação que se verifica na pesquisa dos autores, em Lucchesi e Mello (2009), em Barros (2008) e na presente pesquisa.

Diante disso, busco, pelo presente estudo, não apenas compreender a inserção do para nesses contextos específicos, como também a realização de dativos sem preposição no PB-afro, se está mesmo vinculada ao fenômeno da alternância dativa, nos termos do inglês, ou seria uma consequência de outros fenômenos da língua, tendo em vista que a maior parte das línguas bantas possuem aplicativos. Para responder a essa questão, tendo por foco uma explicação intralinguística, Cavalcante e Barros (2012), revisitando os dados de Scher (1996) e de Barros (2008), explicam que, no dialeto da Zona da Mata Mineira, comunidade investigada por Scher, o apagamento da preposição se deve a um fenômeno de fusão da preposição homônima a ao elemento D, e no dialeto de Helvécia, comunidade cujos dados são observados por Barros (2008), os dativos sem preposição são explicados a partir da posição adjacente ao verbo, em que receberia caso gramatical do próprio núcleo verbal, não da preposição, conforme demonstro no capítulo 5.

A seguir, no capítulo 3, elaboro uma revisão acerca da sócio-história no tocante aos aspectos demográficos, sociais e linguísticos verificados do Brasil. No capítulo 4, apresento a teoria e método da sociolinguística laboviana, a fim de apresentar os pressupostos que estão na

base do entendimento da variação e mudança. No capítulo 5, analiso os dados, tendo em vista as propriedades discutidas neste capítulo. No capítulo 6, desenvolvo uma proposta de análise para o resultado dos dados, no que concerne à inserção da preposição para no contexto de dativos alvo/meta de verbos ditransitivos dinâmicos, como consequência da influência da gramática das línguas bantas, em decorrência do contato entre línguas ocorrido no Brasil.

3 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DA FORMAÇÃO DO PB E O CONTATO ENTRE LÍNGUAS

Se na América do Norte houve segregação racial evidente e institucionalizada, no Brasil, Nina Rodrigues (2010 [1933]) afirma que a nossa história percorre por uma trajetória indissociável com a presença e cultura do povo africano, e sobre esse fato se construiu a nacionalidade brasileira – realidade histórica que não deve ser ignorada pelos estudiosos da língua portuguesa do Brasil. Esse fato é reforçado por Vianna Filho (2008 [1946]) ao afirmar que a exportação de africanos para o Brasil teria provocado mudanças culturais e linguísticas na sociedade da época.

Para se chegar a valores reais da quantidade de pessoas traficadas para mão-de-obra escrava no Brasil, de acordo com Mattoso (1982), é necessária a consulta de acervos de registro, tais como atas notariais, registros, taxas, matrículas, papéis oficiais, testamentos, inventários de herança, cartas de liberdade, processos judiciários, arquivos policiais de associações leigas ou religiosas e tradição oral de comunidades afro-brasileiras, etc. Diversos estudos com enfoque na história da presença africana na América portuguesa vêm tentando desvendar e revelar esses números; porém, além de haver poucos registros (que majoritariamente se referem a períodos mais recentes se comparados ao século XVI, quando se iniciou o processo de tráfico africano), nem todos chegam a um consenso. Apesar disso, segundo Petter e Cunha (2015, p. 222), a conclusão mais recente é a de que teriam desembarcado em portos do Brasil, em média, 3.500.000 africanos, ao longo do período legal e ilegal do tráfico negreiro brasileiro, e mais de 9.500.000 de africanos transportados para a América como um todo, sendo o Brasil o maior responsável pelo crescimento numérico de importação humana.

Sobre a quantidade total de africanos transportados, Mattoso (1982) diz que

Entre a segunda metade do século XVI e 1850, data que assinala a abolição definitiva do tráfico brasileiro, o número de cativos importados é avaliado entre 3.500,000 e 3.600,000. Estas cifras baseiam-se em dados incompletos, mas têm unanimidade entre os que atualmente se voltam para o problema. O Brasil teria, pois, importado 38% dos escravos trazidos da África para o novo mundo (MATTOSO, 1982, p. 53).

Esse período durou entre os anos 1502 e 1860; no entanto foi o século XVIII que atingiu a maior cotação de africanos traficados para as Américas coloniais, com a importação de 6.200.000 escravos (PETTER; CUNHA, 2015; VIANNA FILHO, 2008 [1946]; MATTOSO, 1982). De acordo com Lobo (2003), foram cerca de 47% em relação ao total dos africanos chegados ao Brasil apenas nesse período.

Embora os africanos e afrodescendentes estejam sempre em superioridade numérica, a taxa de brancos era de 30%, entre os séculos XVI e a primeira metade do século XIX, e de 41% na segunda metade do século XIX (MUSSA, 1991, p. 281), em todo período histórico da colonização portuguesa. Tendo isso em vista, Lucchesi e Baxter (2006) destacam que esse percentual de brancos europeus teria sido suficiente para tornar a língua portuguesa como modelo para comunicação intergrupal pelos africanos recém-chegados. Esse contexto teria feito com que o PB não apresentasse traços crioulizantes, mas como variedade resultante do processo de transmissão linguística irregular, como se observa na seção 3.5.