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Posicionamento adotado neste trabalho

CAPÍTULO III ESTUDO DE CASOS QUE FOGEM DO STATUS QUO

6.2 Posicionamento adotado neste trabalho

Ratifica-se aqui o posicionamento que escolhe a possibilidade de se impetrar habeas corpus coletivo, sem dúvidas alguma. Senão vejamos.

Quando se fala em Constituição, e consequentemente suas normas constitucionais, tem-se logo em mente que esta é um sistema aberto de regras e princípios, visto que se traduz em um amplexo dinâmico de normas e com uma estrutura dialógica, ou seja, encontra-se apta através de sua normatividade em captar as constantes mudanças da realidade, estando abertas às concepções variáveis da justiça e verdade.251

Esse entendimento nos faz refletir a Constituição como uma incessante procura, pois o texto Constitucional não esta nunca finalizado, de maneira que o trato normativo positivado e a realidade devem perseguir uma completude de modo a que se assevere uma supremacia e força do que a Carta Política emane.

O habeas corpus coletivo vem a participar dessa abertura, como uma espécie de transmissora entre a realidade, de se abarcar uma nova tangibilidade de aplicação do instituto milenar que protege o direito de locomoção, e a norma, de forma que se obtenha um equilíbrio destes, não apenas de uma lógica tradicional de uso do writ, mas sim pelo trato entre esse mesmo sistema e o case transindividual a ser regulado na prática judicial.

Desta forma, essa nova utilização, tem como seu caractere fundamental um posto que reclame sempre an eternal dialectical research an open system, em um papel precípuo de ampliar o acervo conceitual do sistema jurídico em uma constante reformulação de conteúdos normativos deste, que tem no lidar dos novos casos um importante fator que acresce a sua normatividade.

As normas constitucionais não podem ser entendidas se não por em voga a clara ideia de inclusão em uma ordem que está sempre por ser determinada, dai se segue que este modo de pensar só vem a contar com “panoramas fragmentários”,252 onde se pode confiar a ela um patamar de importância louvável na ordem constitucional, exatamente quando essas mesmas normas que a compõe são de conteúdo aberto e com um leque grande de interpretações, como o é a que regula o habeas corpus no bojo da Constituição originária.

É fácil notar que o habeas corpus coletivo vem a “fagocitar” uma concepção de sistema jurídico que seja imutável, já que pressupõe uma concepção mais ágil do direito, doravante um sistema elástico que possa oferecer soluções satisfatórias que se adaptem a nova sistemática jurídica, tornando-o maleável e adaptável as vicissitudes da vida. Essa sistemática transforma o pensamento jurídico, necessariamente aberto, impossível de inserir em uma axiomática reclusa, revertendo este em um pensamento altamente inventivo.253

Assim, o sistema aberto e a Constituição são campos ideais de intervenção e aplicação dessa forma de pensar que podem inclusive virem a ser preenchidos por esta em uma compatibilidade normalizadora, de modo a possibilitar que seja extraída desta conjugação uma nova teoria hermenêutica, dinâmica e totalmente pluralista, possível de ser utilizada pelos mais diversos operadores do direito. Raramente uma Constituição preenche aquela mera função de ordem e unidade, que faz permissível o sistema se revelar compossível com o dedutivismo metodológico: sendo a Constituição aberta, a interpretação também o é.254

252 Cf. VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Brasília: Ministério da

Educação co-edição com a EdUnb, 1979., pp. 35, 36, 50 e 85.

253 Cf. DINIZ, Maria Helena. As Lacunas do Direito. São Paulo: Editora Saraiva,

2000, p. 124-125.

O que se vislumbra, neste caso, é a própria aplicação do poder constituinte difuso.255 Ou seja, um poder de fato, pelo qual serve de fundamento para os mecanismos de atuação da mutação constitucional,256 sem alterações nos signos linguísticos da própria norma maior.

Essa mutação não seriam alterações físicas e palpáveis no seio de uma Constituição, materialmente perceptíveis, mas sim novas interpretações de significados e sentidos de um texto constitucional e suas normas. A transformação não se encontra nas palavras per si, mas na interpretação daquela regra ditada: o texto permanece inalterado, mas seu entendimento não.257

Barroso,258 por exemplo, leciona que “a mutação constitucional consiste em uma alteração do significado de determinada norma da Constituição, sem observância do mecanismo constitucionalmente previsto para as emendas e, além disso, sem que tenha havido qualquer modificação no seu texto. Esse novo sentido ou alcance do mandamento constitucional pode decorrer de uma mudança na realidade fática ou de uma nova percepção do Direito, uma releitura do que deve ser considerado ético ou justo. Para que seja legítima, a mutação precisa ter lastro democrático, isto é, deve corresponder a uma demanda social efetiva por parte da coletividade, estando, respaldada, portanto, pela soberania popular.”.

Entendo, pois, que o que ocorreu com a norma constitucional originária do habeas corpus foi uma verdadeira mutação,259 que só ainda não foi

255 O poder constituinte difuso é assim chamado porque se “faz ou transforma as

Constituições [...] destina-se a função constituinte difusa a completar a Constituição, a preencher vazios constitucionais, a continuar a obra do Constituinte. Decorre diretamente da Constituição, isto é, o seu fundamento flui da Lei Fundamental, ainda que implicitamente, e de modo difuso e inorganizado” apud Anna Cândida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais, p. 10. In LENZA, Pedro. Op. cit., p. 234.

256 Ibidem, p. 233. 257 Ibidem, p. 162.

258 Apud BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional, 2. ed., pp. 126

e 127 in LENZA, Pedro. Op. cit., pp. 162-163.

259 Mutação esta sendo vista em diversos outros casos na seara jurídica brasileira,

como por exemplo no próprio Código Penal: “antes do advento da Lei n. 11.106/2005, os arts. 215, 216 e 219 traziam a expressão ‘mulher honesta’. Quando falamos que esta expressão sofreu uma mutação interpretativa, não queremos dizer que o artigo em si foi alterado, mas, sim, que o conceito de ‘mulher honesta’, ao longo do tempo, levando em consideração os padrões aceitos pela sociedade da época, adquiriu significados diversos. ‘Mulher honesta’ no começo do século XX tinha determinado

declarada assim pela Suprema Corte, mas não o precisaria ser feita, já que a interpretação constitucional hoje não precisa ficar restrita ao meio judicial. Deve-se dar a esta um azo democrático, pois passa a se cercar de diversos operadores o processo hermenêutico, em seu sentido lato, como um processo aberto e público como realidade constituída e altamente publicitada, não sendo possível estabelecer-se um elemento fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição, no sentido concretista de interpretação da Constituição aberta de Peter Häberle.260

Mas não é só isso. Além da discussão propedêutica, especificamente neste campo de atuação, temos que perpassa-la e trazer a um campo de discussão prática.

Quando se fala em habeas corpus coletivo, vem à tona todo um contexto social e política da situação de certa parcela da sociedade brasileira, como se viu anteriormente. São pessoas que se situam na fronteira da marginalização econômica e social, que não tem sequer acesso aos itens mais básicos de sobrevivência, quem dirá o acesso a justiça para proteger o bem mais caro a sua inerência enquanto ser humano: sua vida e liberdade.

Este instituto vem quebrar paradigmas e estigmas diante do clássico positivismo jurídico Kelseano, que apenas vislumbra a justiça e o direito como a aplicação pura da norma positivada e o direito Constitucional como a norma hipotética fundamental, posta, pura dentro do puro dever-ser, ou seja, livre de influencias sociais, políticas, humanas, naturais e essenciais a aplicação do Direito como ciência meramente humana.

significado, diverso do que adquire a ‘mulher honesta’ dos dias atuais. ‘Mulher honesta’ em uma cidade talvez tenha um significado diverso do que adquire em cidade de outra localidade. Como visto, essa evolução da sociedade que vinha sendo percebida pelo Judiciário, sensibilizou o legislador, que revogou por meio da Lei n. 11.106/2005 diversos dispositivos do CP, como os citados, que faziam menção à figura da ‘mulher honesta’” in Ibidem. Ou ainda, pode-se vislumbrar mutação constitucional no caso do casamento homoafetivo, onde o Supremo Tribunal Federal em decisão histórica no Brasil, se coloca a frente ao Poder Legislativo e fazendo uma interpretação abrangente, extensiva ao texto da Constituição, traz uma decisão onde a família não é apenas aquela conhecida tradicionalmente naquela que comporta apenas “homem e mulher” no seu bojo, mas também inclui pessoas do mesmo sexo, conferindo-lhes os mesmos direitos e deveres, restritos anteriormente aos heterossexuais.

260 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional..., pp. 41-42; BONAVIDES,

A utilização do writ de forma coletiva, além do mais, vem apenas a densificar diversas normas constitucionais, normas, aliás, vista em seu sentido mais amplo de regras e princípios, tais como a dignidade da pessoa humana, ampla defesa e contraditório, efetividade da justiça e celeridade processual, celeridade esta que é bastante plausível nesta analise, pois milhares de processos judiciais individuais, nas quais abarrotam as salas dos juízes no cotidiano261, podem se travestir de uma única ação que engloba um número de pessoas e faz resultar em algo real e aplicável a estas de forma eficaz e progressiva.

Assim, resta claro que é totalmente possível a utilização do habeas corpus coletivo na seara jurídica brasileira, já que um instrumento que só tende a crescer e que pode agregar diversas situações de risco do direito de locomoção strictu senso de um grupo de pessoas.

A sensibilidade do legislador, aliás, deveria aflorar e como fez com outros remédios constitucionais, e legiferar um novo writ através de uma atualizada legislação para suprir a lacuna legal, diante desse novo cenário de mudança social.

7. Estudo de Caso II: “Habeas corpus e o direito animal: ‘um ser não