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Posicionamento crítico Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio 111 

CAPÍTULO II A Escola Básica do 1 º Ciclo 42 

2.  A Escola Básica do 1.º Ciclo 46 

2.1 A sedimentação histórica da Escola Básica do 1.º Ciclo em Portugal 46 

2.2.2 Posicionamento crítico Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio 111 

A proposta de autonomia ao nível da administração e gestão das escolas portuguesas surge como reflexo da inadaptação das políticas centralizadoras face às solicitações do contexto de vivência organizacional actual. A necessidade da sua introdução não se reveste de qualquer contestação. É, sobretudo, o processo de implantação proposto que gera mais controvérsia, configurando-se pertinente a constatação do grau de distanciamento entre o contexto actual de autonomia consagrada em relação, por um lado, à autonomia usufruída e, por outro, à autonomia praticada.

Após vasto período histórico de modelação centralizadora de práticas administrativas e gestionárias, a introdução do regime de administração e gestão escolar pelo Decreto-Lei n.º 115A/98, de 4 de Maio, como seria previsível proporcionou um vasto campo de reflexão crítica, ao qual se dá voz.

Ferreira (2005a, p.282) traduz o primeiro ponto crítico da estratégia política adoptada salientando que “a questão da autonomia da escola, surge, (…), claramente como um projecto de iniciativa do Estado, através do Ministério da Educação, (…) e não de iniciativas, pressões ou exigências significativas da opinião pública, dos professores, (…) dos pais ou dos estudantes (…) ou das autoridades locais”.

Como afirma Nóvoa (2005, p.69), nasce de “um voluntarismo político, que insiste em impor reformas imaginadas a partir do centro em vez de dotar as

escolas de capacidades autónomas de inovação e desenvolvimento” esquecendo que “a reforma não se faz por decreto (…). O Estado não tem de decretar a autonomia. Tem é de criar condições para que as escolas a construam” (Barroso, 1997, p.42). “Não é por avançarmos os relógios que o futuro chega mais cedo (Koselleck, s/d, cit. por Nóvoa, 2005, p.15).

Pese embora a retórica de territorialização, participação, livre iniciativa de escolas e autonomia, Flores (2005, p.240) salienta que “o modelo proposto pelo Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio, introduziu apenas alterações morfológicas na administração das escolas e não produziu mudanças significativas no que diz respeito aos processos e práticas […] que continuam marcados pelo dilema entre o forte peso normativista da Administração Central e as práticas instituídas e interiorizadas do modelo anterior”. Como Hutmacher (1995, p.51) salienta “é difícil atingir uma consciência reflexiva sobre as crenças e as representações adquiridas através do modo prático do “sempre foi assim”, tanto mais que essas certezas são partilhadas por um grande número de pessoas (…) e regulam as suas relações. E o “sempre foi assim” assume um incrível peso na adopção de uma perspectiva “acentuadamente reducionista” da escola (Canário, 1995, p.173).

Afonso (1999, p.58) reafirma a perspectiva de Flores (2005), referindo que “no essencial permanecem intactos os pontos que caracterizavam o Estado centralizador, isto é, a “gestão orçamental, a gestão dos recursos humanos e a gestão do currículo”, sendo a “autonomia” nas escolas, eminentemente, associada ao que Lima (1998a) designa de “infidelidades normativas” impostas pelos actores locais em pontos-chave do funcionamento escolar.

Para Barroso (1997), o regime de autonomia imposto assemelhar-se-á a uma “deriva recentralizadora”, tal a intensidade das ingerências processuais manifestadas pela administração central, por via das suas instâncias regionais. Estas “continuam, com frequência, a assumir autoritariamente o papel de (…) exclusivos intérpretes legítimos do espírito e da letra das leis (…) denegando logo a partir da fase inicial e construtiva do novo “regime” o indispensável respeito pelos novos órgãos escolares devidamente eleitos e por suas decisões (…) de imediato vigiadas e tuteladas (Lima, 2000, p.73).

No mesmo sentido, Durães (2003, p.144) refere que “o comportamento há muito enraizado de tudo normalizar e regulamentar” por parte do Ministério da Educação prevalece inalterável, existindo uma “hesitação (se não mesmo recusa) em abrir mão dos poderes de decisão” traduzida numa descontinuidade entre o plano de intenções (de autonomia) e o plano da concretização (de dependência). “A obsessão burocrática e centralizadora da administração central” estende-se por todo o processo sendo “visível na constituição dos agrupamentos de escolas, na produção casuística de orientações e directivas, (…) na homologação das revisões posteriores aos preceitos duma regulamentação posterior” que tudo abrange da vida escolar” (Flores, 2005, p.56). O controlo exercido, na opinião de Barroso (2001, p.15), “fez muito jeito aos preocupados em cumprir as normas à risca, tornando-os mais dependentes, não deixando de refrear os ânimos dos que julgavam que autonomia era também sinónimo de criatividade”.

Formosinho e Machado (2000b, p.187) põem em evidência as tensões e dilemas provocados pela introdução do princípio da autonomia no quotidiano escolar. Por um lado, configura-se um “professor como profissional obediente, executor e técnico”, por outro, um “professor como profissional reflexivo, capaz de justificar e argumentar o que faz, por que o faz e para que o faz, e de explorar, na prática, as margens de autonomia que se lhe deparam”.

A primeira imagem traduz a influência da herança formativa e profissional adquirida pelo corpo docente, em particular do 1.º Ciclo, ao longo de um período secular. São docentes que anseiam “saber como é para fazer”, sendo certo que procuram “fazer o melhor que sabem e podem” (ibidem). Constituem-se alvos fáceis da burocracia e do controlo externo, actores facilmente resignados com uma mera autonomia decretada, cujo receio de perda suplanta a vontade – que neles igualmente existe – de mudança. Permitem reafirmar o imperativo de reorganização da formação e requalificação profissional docente, nomeadamente ao nível das questões de liderança e comportamento organizacional. A segunda concepção de professor transparece o ideal de profissionalismo subjacente ao princípio de autonomia. A análise do microcosmo das escolas evidencia a prevalência da imagem inicialmente concebida, mas, simultaneamente, um pendor para a emergência de profissionais equacionados na segunda perspectiva. Contudo, sendo certo que a constituição de agrupamentos trouxe

consigo outra visibilidade às escolas, é igualmente um facto que a regulação de 4 de Maio de 1998 não produziu mudanças que se pudessem classificar de significativas em termos de qualidade educativa produzida.

Verifica-se a manutenção da departamentalização, de corporativismo entre os diferentes níveis de ensino. No que respeita ao 1.º Ciclo, a aprovação das decisões tomadas localmente continua a incidir numa hierarquia fortemente estabelecida (respondendo não às delegações escolares, mas aos agrupamentos de escolas – numa tríplice entre serviços administrativos, pedagógicos e executivos – a partir dos quais se retoma a cadeia hierárquica anteriormente em vigor - Centros de Área Educativa, Direcções Regionais e serviços centrais do Ministério).

Da mesma forma, numa análise comparativa relativamente ao modelo de administração e gestão proposto pelo Decreto-Lei n.º 172/91, as competências do coordenador de núcleo escolar do 1.º Ciclo surgem numa formulação abstracta porventura passível de se instituírem, considerando o primado da gestão sobre a liderança que subsiste em diversas escolas, organizacionalmente mais carentes de capacidade estratégica, de liderança e de personalidade.

Simultaneamente, a colegialidade permanece exercida precariamente, especialmente em casos vulgarmente designados por mega-agrupamentos, não existindo um retorno às práticas docentes da acção aí exercida. Barroso (s/d, p.23), relativamente aos processos colegiais de participação, refere que “a sua organização e processos de trabalho são deixados ao acaso, verificando-se um grande défice de práticas reais de trabalho colectivo […] o sentimento generalizado que existe (…) é de que são normalmente um desperdício de tempo, improdutivos e ineficazes […], sem que ninguém perceba muito bem para quê se fazem e sem que se vejam resultados palpáveis do tempo e do esforço consumidos”.

A parca existência de recursos materiais invalida, igualmente, a gestão partilhada de recursos entre os diferentes núcleos escolares.

A unidade agrupamento de escolas permanece, assim, claramente mais ao nível administrativo do que em qualquer outra dimensão.

Surge, usualmente, também como alvo de crítica a “diferença substancial entre a definição abstracta sobre o estatuto e funções” do órgão da Assembleia de Escola “e a definição concreta que cada participante dá da Assembleia a que pertence” e das respectivas práticas (Barroso, 2001, p.173). Embora se revista de competências de direcção, no domínio das práticas, tal parece não acontecer, “não dispondo a Assembleia de Escola de mecanismos capazes para competir com a Administração Central que define as regras do jogo (…) limitando-se muitas vezes a um ritual de aprovação de decisões tomadas noutros locais (idem, p.170).

De acordo com Lima (2000, p.72), “o novo regime parece insistir numa mudança insular e limitada das escolas (…) sem proceder, (…), à mudança do sistema de administração de educação e da sua concentração de poderes de decisão relativamente às escolas, assim, adiando, uma vez mais, efectivas políticas de descentralização”.

Segundo Flores (2005, p.240), para além do reforço da actividade regulamentadora da Administração Central, surgem como pontos críticos deste modelo:

a) A falta de preparação dos actores para participarem activamente nos órgãos do agrupamento de escolas;

b) O carácter eminentemente hierárquico que caracterizou todo o processo;

c) O papel corporativista dos professores no processo de decisão; d) A ambivalência do “conselho executivo” que desenvolvendo a sua actividade através de uma “gestão micro política” se mantém refém da administração Central e se assume como “último elo da desconcentração radical.

Os processos que deviam alicerçar-se numa autonomia de projecto e numa lógica de desenvolvimento local geram, perversamente, meros efeitos de superfície (Sarmento, 1999).

Quer a constituição e homologação de agrupamentos, que se impuseram enquanto “soluções meramente administrativas, desenhadas pelas estruturas desconcentradas da Administração Central” (Durães, 2003, p.133), quer a posterior manutenção da tendência de regulamentação centralizadora burocrática,

induziram a um clima de progressiva suspeição perante a sinceridade dos objectivos fundamentais do “regime de autonomia”.

De modo geral, a lógica de agrupamentos de escolas parece transparecer uma mera lógica de reordenamento da rede escolar (nomeadamente da educação pré-escolar e 1.º ciclo), assente em “inconfessadas preocupações de índole economicista, apesar da retórica em sentido contrário” (Barroso, 2002, p.22).

Essa perspectiva é retomada por Afonso que, no prefácio a Flores (2005, p.13), salienta que o processo de agrupamentos de escolas “não parece iniciar em consequência de decisões políticas enformadas e induzidas por um impulso de democratização social e educacional da escola pública. Ao contrário, (.) parece ser sobretudo resultado de medidas administrativas neoliberais que esfacelam a centralidade e identidade da escola pública, assim contribuindo para acentuar a sua crise actual”.

Como refere Estêvão (1999, p.140),

a descentralização e a autonomia tornam-se dispositivos retóricos para a legitimação de outras agendas mais ou menos ocultas. Este processo de descentralização tem vindo a ser comprometido, muitas vezes com a excessiva preocupação com a eficácia e eficiência, que enfatizam algumas abordagens gerencialistas em detrimento da criação de uma cidadania organizacional.

Globalmente, como afirma Afonso (2005, p.13), assiste-se ao incentivo de “formas gestionárias especialmente especializadas nos princípios da eficiência, da racionalidade instrumental, da quantificação e do controlo”, lógicas centralistas e critérios economicistas em detrimento de processos democráticos e participativos. A contradição entre os sucessivos normativos e a realidade em que vivem as escolas, a contradição entre o que se exige às escolas, professores e famílias e as condições que se lhes efectivamente proporcionam, induzem a que as expectativas de obtenção de produto, por parte da Administração Educativa, se mantenham goradas. Os resultados serão diferentes dos esperados tão-somente para aqueles que permanecem alheios ao dia-a-dia das escolas.

Reforçar a autonomia das escolas não pode limitar-se à produção de um quadro legal que defina normas e regras formais para a partilha de poderes e a

distribuição de competências entre os diferentes níveis de administração e estabelecimentos de ensino. Importa sobretudo apoiar, em cada indivíduo, a construção de um novo sentido para a escola. Incentivá-lo a comprometer-se e a conceber-se enquanto parte activa do ciclo de desenvolvimento das escolas.