O acontecimento completo é não só que alguém tome a palavra e se dirija a um interlocutor, mas também que tenha a ambição de trazer para a linguagem e compartilhar com outrem uma experiência nova. É essa experiência que, por sua vez, tem o mundo por horizonte. Referência e horizonte são correlativos tal como o são a forma e o fundo. Toda experiência possui um contorno que a delimita e a distingue e, ao mesmo tempo, se delineia sobre um horizonte de potencialidades que constituem seu horizonte interno e externo: interno no sentido de que é sempre possível detalhar e precisar a coisa considerada no interior de um contorno estável; externo no sentido de que a coisa visada mantém relações potenciais com qualquer outra coisa no horizonte de um mundo total, que nunca figura como objeto de discurso. É nesse duplo sentido da palavra horizonte que situação e horizonte são noções correlativas. Essa pressuposição muito geral implica que a linguagem não constitui um mundo em si mesma. Nem mesmo é um mundo. Porque estamos no mundo e somos afetados por situações. Tentamos nos orientar nele pela compreensão e temos algo a dizer, uma experiência para trazer para a linguagem e para compartilhar. (RICOEUR, 2010, 133)
Chegando a abordagem da parte final das entrevistas nesta terceira seção,
gostaria de fixá-las como o trecho acima escrito por Ricoeur permite interpretar;
como um acontecimento completo, uma experiência nascida do mundo e trazida
para ele via linguagem; compartilhada com os possíveis leitores deste texto com o
objetivo de narrar uma história para alguém, a história da disciplina Estudos Sociais
no Colégio Pedro II, considerando o recorte temporal 1984-2016. Assim, tomando
como referência os enunciados das professoras e meus espaços de experiência
(KOSELLECK, 1992), tenho como horizonte de expectativas perceber
posicionamentos políticos e apostas teóricas via Estudos Sociais na instituição em
tela.
Para tal, neste terceiro bloco de perguntas, abordei como cada professora
interpreta o papel dos Estudos Sociais na contemporaneidade do Colégio Pedro II,
considerando o que elas perceberiam como importante que um aluno aprendesse
nos Anos Iniciais nessa disciplina. A professora A ressalta a importância dos
Estudos Sociais na formação de um “pensamento crítico”, de um “cidadão crítico”,
sendo a disciplina percebida como meio de compreensão do mundo e ligada à ideia
de um “compromisso” com a cidadania. Apresentando assim uma dimensão
axiológica ao ligar-se a palavras como “transformar”, “mudar” e ao apresentar certa
obrigação com “enriquecer e ampliar” conhecimentos de mundo. Em menor medida,
a professora B também toca neste mesmo ponto, valorizando a criticidade. Acredito
que nas duas falas, concordando com Macedo (2012),
ressoa a ideia de que a escola tem um compromisso primordial com a transmissão/recriação do conhecimento, que se vincula a um projeto social mais amplo, mas apenas como ferramenta. A escola é o lugar em que conhecimentos sociais, uma vez selecionados, são distribuídos, ensinados e aprendidos. Assim, o projeto de educação é um projeto de domínio, para uso mais ou menos crítico, de um conhecimento socialmente produzido(...). (MACEDO, 2012 p.724)
Circe Bittencourt (2011) afirma que em diversas propostas curriculares é
possível encontrar a afirmação de que a História deve encarregar-se da formação de
um chamado “cidadão crítico”, nos documentos curriculares do CPII isto também
ocorre. Nas palavras da autora, tal expressão, interpretada como vaga, representa
também a importância política do conhecimento para o desenvolvimento intelectual
do sujeito aluno, permitindo que ele amplie capacidades de observação, descrição,
identificação de semelhanças e diferenças entre acontecimentos de diferentes
temporalidades, além de estabelecer relações entre presente, passado e futuro. É
justamente na direção apontada pela autora que as professoras entrevistadas
mobilizem os termos aqui referenciados. Vejamos o que a professora A disse a
respeito de um “cidadão crítico”, dentre outras fixações:
A - Eu acho que fazer uma leitura de mundo, uma leitura mais crítica, aprender a conhecer a realidade que ele tem e o que pode fazer para mudar, mas não mudar totalmente. Porque as pessoas têm um discurso de que o aluno tem que mudar o mundo, transformar a sociedade. Não, ele primeiro precisa ter a capacidade de ser crítico, no Primeiro Segmento a gente não consegue fazer ele ter a maturidade suficiente para definir tudo, mas se ele começar a ver o que é o melhor... o que não é... o que é mais produtivo... o que não é... eu acho que a gente vai estar contribuindo para formação de um cidadão crítico. A gente tem que trabalhar a argumentação. Eu acho que se ele não tem conhecimento, ele não tem nada. Ele não vai saber argumentar, ele não vai ser um cidadão crítico, já que para fazer a crítica você tem que ter conhecimento. A gente tem que trazer também conhecimento de mundo para ele, não partir só do que ele traz, tem que enriquecer e ampliar esse mundo que ele vive e que conhece.
Acho [os] Estudos Sociais uma disciplina essencial. As pessoas continuam valorizando muito mais o Português e Matemática na escola, a família e a sociedade... Quando eu vejo as pessoas falarem, que você precisa melhorar os resultados de Língua Portuguesa, de Matemática, os resultados das avaliações... ninguém fala de Estudos Sociais. Até de Ciências ainda se fala por causa do movimento científico muito grande no mundo e a preocupação com a tecnologia. Mas Estudos Sociais... na sociedade que a gente vive, ninguém fala. Eu acho que é a disciplina essencial no momento, sempre, na verdade; mas [eu] acho que ela está fazendo muita falta no colégio.
Então meu objetivo como professora é contribuir para a formação desse cidadão crítico, que ele precisa ter esses conhecimentos para analisar, para selecionar, para argumentar, para transformar e para fazer as escolhas dele como cidadão. Então eu vejo o papel da escola com uma importância muito grande, apesar da sociedade tecnológica que nós temos. As pessoas falam
que tem as informações, mas eu vejo as diferentes informações sendo transformada em conhecimento, ali no coletivo, dentro da sala e o aluno buscando fora da escola também complementação, sendo um pesquisador. Então, essa transposição didática desses saberes, junto com as Diretrizes Curriculares e com os conhecimentos que eles trazem é um processo reflexivo constante. Isso implica para mim como professora, um processo de pesquisa de informação constante em vários lugares, em livros, em vídeos, documentários. Eu preciso me apropriar desse conhecimento de diferentes fontes, para eu dosar, para eu saber, para eu conduzir e ir além. Depois eu preciso trabalhar com esse conhecimento de que forma, como, então a elaboração do material, desses recursos, a busca dessa forma dinâmica de trabalhar. Depois vem a execução e a avaliação, o que eu acho que ficou, o que eu preciso melhorar, o que não preciso. Então, eu vejo basicamente nesse trabalho de Estudos Sociais uma riqueza muito grande. Por exemplo, quando eu falo de tempo, espaço, grupos e cultura, eu vejo várias competências para desenvolver, baseada nos descritores, apesar de serem muitos e eu acho que a gente precisa fazer uma seleção, mas eles são muito importantes.
A professora A, em sua fala, articula uma “leitura crítica de mundo” a uma
ideia de “realidade do aluno”. Concordando com Velasco (2013), quando define
currículo como espaço discursivo no qual circulam variados sentidos de “realidade
do aluno”, “cidadania” e “conhecimento escolar”, importa sublinhar que `a cada uma
dessas expressões podem ser atribuídos sentidos diferentes, dependendo dos
sujeitos e das ordens discursivas nas quais são enunciadas. Cabe aqui pois, refletir
sobre o sentido mobilizado pela entrevistada em um contexto institucional específico.
Como já trabalhado no segundo capítulo desta tese, no quadro da Teoria do
Discurso pós-fundacional de Laclau e Mouffe (2004), não existiriam termos com
positividade plena, mas sim um sistema de diferenças no qual estes termos se
inserem, fixando sentidos. Isso equivale dizer que cada termo se afirma,
provisoriamente, pela distinção em relação aos demais; por isso, entendo que
existem “cortes”, fronteiras, neste contexto discursivo que divide o que é, e o que
não é considerado “realidade” e “cidadão crítico”.
Embora não exista uma função única para o ensino da disciplina Estudos
Sociais, como a própria professora A mostra em sua fala, o uso de expressões como
“aprender a conhecer a realidade” e “contribuir para a formação desse cidadão
crítico”, mostra que um dos objetivos da disciplina seria atribuir sentidos ao presente
por meio do conhecimento escolar. Assim, a importância dos Estudos Sociais
residiria em formar cidadãos críticos e participativos por meio do trabalho com a
“realidade do aluno” para tornar o ensino o mais próximo possível do presente e das
experiências vividas pelos estudantes, (re)construindo memórias e identidades,
mostrando que cada indivíduo possui agência e contribui para a coletividade, mas
indo além da “realidade dele” para “enriquecer e ampliar esse mundo que ele vive e
que conhece”. As expressões mobilizadas pela professora A podem ser refletidas
como elementos flutuantes, os quais se articulam em torno de um ponto nodal
38específico, o alcance de uma “qualidade” de ensino em Estudos Sociais. O sentido
que a entrevistada fixa para o conhecimento na disciplina em questão é que, em um
primeiro momento, o aluno deve refletir sobre uma dada realidade para,
posteriormente, ser capaz de fazer julgamentos e atuar de forma consciente e
participativa na sociedade em que vive, como cidadão crítico, e nesse sentido, a
capacidade argumentativa se torna elemento central. Segundo Velasco:
A cadeia discursiva de equivalência definidora de “ensino de História de qualidade” que mobiliza expressões como “formação do cidadão crítico” e “realidade do aluno” incorpora outras cadeias de equivalência que se organizam em torno de termos como “cidadania” e “realidade”. No que se refere ao significante cidadania, (...), essa cadeia articula elementos como “conhecimento escolar”, “respeito às diferenças”, “atitudes críticas”, “participação crítica”, “direitos”, “democracia”, “identidades”, “ser brasileiro”, “alunos como sujeitos históricos”, “igualdade”, “relatividade”, “inserção no mundo de trabalho”, dentre outros. (VELASCO, 2013, p. 77).
Outra questão que a professora A aborda, seria certo desprestígio atribuído
aos Estudos Sociais, como se os responsáveis, alunos, e talvez até membros da
própria instituição privilegiassem o Português e a Matemática. Segundo a
entrevistada, dentro do chamado Núcleo Comum, a disciplina seria a última a ser
privilegiada. Tal colocação também apareceu na fala da professora C, no segundo
bloco das entrevistas, quando ela afirmou que a disciplina era “a quarta dentro das
prioridades” e é referendada em documentos institucionais, pois, a própria
distribuição dos tempos de aula é bastante desigual, visto que do 1º ao 3º anos, os
alunos teriam 3 tempos de aula reservados para a disciplina e no 4º e no 5º anos, 4
tempos. Enquanto Português e Matemática chegam a ter até 8 tempos de aula, fora
os tempos reservados para recuperação paralela.
A fala da professora A também demonstra certa articulação entre influências
de diferentes áreas disciplinares como a Didática, a História e a Geografia na
tentativa de explicitar o que seria importante ser ensinado-aprendido na disciplina
Estudos Sociais. Acredito que tal articulação se encontra relacionada à associação
entre competências, conteúdos e descritores, que de certo modo perpassa e
complexifica o ensino de Estudos Sociais na instituição, o que se evidencia no final
38
Laclau denomina pontos nodais significantes privilegiados. Os pontos nodais, então, estabelecem a equivalência entre elementos diferentes, tornando-os momentos da prática articulatória. Sem os pontos nodais, não haveria articulação e prevaleceria apenas a lógica da diferença. (LOPES, 2011).
da resposta da professora. Como pode ser observado, a professora diferencia
conteúdos, competências e descritores, defendendo que tempo, espaço, grupos e
cultura seriam eixos que deveriam servir ao desenvolvimento de competências.
Segundo ela, deveria ser realizada uma seleção o que indica um acúmulo de
conteúdos também percebido por mim durante a análise dos documentos
curriculares da instituição. O depoimento, por sua vez, aproxima os descritores,
apontando o desenvolvimento de competências divididas por eixos norteadores
como fio condutor do conhecimento escolar em Estudos Sociais, o que também
aparece no PPP (2002) e no PPP para os Anos Iniciais (2008).
As professoras B e C, por sua vez, reforçaram o argumento que relações
temporais e espaciais são categorias centrais da disciplina Estudos Sociais. A
professora C considerou em sua fala, ainda, o respeito às diferenças como tema
importante a ser trabalhado no contexto político-social do Brasil atual.
B - Aquilo que eu já falei... ele se apropriar das relações temporais, ele entender que as coisas podem acontecer ao mesmo tempo, coisas acontecem, o que aconteceu antes e o que aconteceu depois, que às vezes dependendo se aquela coisa que você está fazendo é prazerosa, você tem a sensação que aquele tempo parece estar passando mais rápido do que aquele que é um tempo mais arrastado, porque é algo que você não está gostando de fazer. Então acho que ele perceber essas relações temporais são muito importantes, assim como as espaciais para ele perceber que aquele espaço em relação a um outro espaço, o quanto tempo ele vai permanecer, o quanto mudou aquele espaço ao longo dos anos, porque que essas mudanças aconteceram... Então acho que esses dois aspectos, esses dois conceitos para mim são fundamentais, que um aluno saia daqui sabendo isso... no caso esses conceitos de tempo e espaço. Ou seja, uma pessoa que está inserida numa sociedade, numa comunidade, que ele precisa conhecer o entorno dessa sociedade, para que ele possa trazer mudanças e fazer críticas àquele ambiente em que ele vive. E para ele poder fazer isso, colocar isso realmente para funcionar, possa realmente caminhar, percebendo-se inserido numa comunidade, numa sociedade e com uma história com todo um caminhar, tanto para o futuro quanto para o passado, precisa principalmente entender a questão do tempo e a questão espacial.
C - Eu continuo achando que as noções de tempo e espaço são fundamentais. Eu acho que o desafio maior é trabalhar a noção de tempo, porque eu acho para a noção de espaço, os alunos podem ter um acesso muito maior. Eles pegam o Google Maps e podem visitar tudo que ele quer. O outro desafio é essa questão da diversidade, da diferença, porque hoje a gente sabe que existe com mais clareza. Você não tinha tanto isso, talvez por conta mesmo dessa comunicação que ampliou, você começa a descobrir cada vez mais o diferente e esse respeito às diferenças. Hoje em dia um grande desafio é a cabeça das pessoas, a gente está enfrentando essa dificuldade de um grupo que qualquer coisa que você ensine está levando para um lado muito negativo... A gente está com uma colega agora que por causa da aula de Ciências em que falou sobre doenças sexualmente transmissíveis, ela foi dar uma explicação sobre o uso da camisinha, acabou sendo processada! Querem que a gente ensine a teoria da criacionismo! Hoje o desafio é fazer com que os alunos se interessem
por essa questão de tempo e espaço priorizando o tempo e o respeito as diversas sociedades.
A colocação da professora C articula as noções de diversidade e diferença na
mesma cadeia de equivalência ao afirmar ser um desafio para a disciplina Estudos
Sociais “o respeito as diversas sociedades”. Considerando que “um novo olhar sobre
o passado e o futuro se elabora sob as pressões do presente vivido. A partir do
presente, a visão do passado se altera e age sobre a visão e a produção do futuro”
(REIS, 1994). Para trabalhar na pauta da diferença, a temática necessita ser
trabalhada no presente, considerando a complexidade que este presente apresenta,
como a própria professora coloca, além dos espaços de experiência e os horizontes
de expectativas (KOSELLECK, 1992) dos sujeitos envolvidos no processo
ensino-aprendizagem. Uma possibilidade para o trabalho com as diferenças seria a
subversão de uma narrativa histórica hegemônica tradicional muito presente na
disciplina Estudos Sociais em que uma ideia de sociedade brasileira aparece de
forma generalista, sem ressaltar as singularidades dos indivíduos que a compõem.
Como nos alerta Gabriel:
Diferentes presentes históricos constroem diferentes narrativas de História nacional e do povo brasileiro. Em cada uma delas, diferentes passados são lembrados e ou esquecidos e diferentes futuros são sonhados. Caberá a cada professor de História selecionar os conteúdos a serem ensinados, ingredientes de uma intriga possível – acontecimentos, sujeitos, concepção
de tempo, conceitos, etc. – de forma a permitir a emergência de uma
diversidade de narrativas da brasilidade, contribuindo para a construção de um Brasil mais plural e inclusivo. O desafio é pois, saber como usar essas armas da narratividade histórica a favor da inclusão das diferenças (de posições, de perspectivas, de identidades) na interpretação histórica. O desafio está posto, o enfrentamento apenas começando. (GABRIEL, 2006, p. 29-30)