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2. História das Ciências nos Anos Iniciais: um caminho a ser trilhado

2.1 Possibilidades de se abordar a História das Ciências em sala de aula

Tendo apontado a importância da HC na formação crítica do cidadão e na formação do professor, apresentaremos as possibilidade de abordagem desta (HC) em sala de aula. Reforçamos a concepção de ciência partilhada por Sasseron e Carvalho (2010, p.110-111) que pontuam que a ciência é “uma construção histórica, humana, viva e, portanto, caracteriza-se como proposições feitas pelo homem ao interpretar o mundo a partir do seu olhar imerso em seu contexto sócio-histórico- cultural”.

Esse conceito de ciência alinha-se à definição de história das ciências proposta pela vertente historiográfica da História Cultural das Ciências8, de que esta

transformar-se-ia num instrumento de reflexão sobre a prática científica e da produção da ciência enquanto objeto sociocultural, assumindo um papel primordial na educação, incentivando uma postura mais crítica, reflexiva e cidadã, através de um trabalho interdisciplinar. Segundo Santos (2009, p. 534),

Construir ambientes educativos que sejam eles próprios ambientes de cidadania, e permear o ensino substantivo da disciplina de princípios e valores que penetrem em questões relacionadas com alguns conteúdos da ciência, com a sua natureza e estatuto e com o lugar da história da ciência no ensino da ciência, não é subestimar a dimensão conceptual da disciplina, mas complementá-la com a dimensão formativa.

Para Lopes (1993, p.327) “a História da ciência deve estar presente no ensino, fortalecendo o pensamento científico pela colocação das lutas entre ideias e fatos que constituíram o progresso do conhecimento”. E completa,

A história da ciência assume, então, o papel preponderante no trabalho pedagógico de construção racional, combatendo um ensino centrado no que Bachelard (1975) denomina empirismo da memória: retemos os fatos, mas esquecemos (porque não aprendemos) as razões (LOPES, 1993, p.327).

Entretanto, não é assim tão simples o trabalho com a História das Ciências. A fim de produzir narrativas históricas, os historiadores lidam com uma diversidade de formas de concepção do mundo natural, o que em aulas de ciências precisa ser reduzido (BIZZO; CHASSOT; ARANTES, 2013). O que pode levar a uma história falsa, ou ao que Allchin (2004) denomina “pseudo-história”.

Pseudohistory, like pseudoscience, uses facts selectively and so fosters misleading images – in this case, about the nature of science. I refer, in particular, to stories that romanticize scientists, inflate the drama of their discoveries, and oversimplify the process of science. While based on real historical events, they are deeply misleading. They contribute to unwarranted stereotypes and false ideas about how science works. (ALLCHIN, 2004, p.179)9

E isto representa um problema, haja vista que, pressionados por programas escolares apertados e cronogramas fechados, muitos professores acabam recorrendo ao que Sequeira e Leite (1998, p. 34) apontam como a simplificação da HC para sua introdução nas aulas de ciências, “até porque, de facto, não é possível numa disciplina de ciências ensinar os conteúdos científicos ditados pelos programas e a história completa desses mesmos conteúdos”. O que não significa a redução das discussões provenientes da HC às biografias de cientistas.

Esta simplificação da HC para introdução nas aulas de ciências não é um consenso entre os pesquisadores e, em nossa concepção, não é algo com o qual concordamos. Entendemos que, diante da extensão dos programas escolares, a introdução da dimensão histórico-social se tornará inviável se tentarmos inseri-la em todo o conteúdo. O que sugerimos é que o professor selecione o tema ou conteúdo

9 A pseudo-história, como a pseudociência, usa os fatos seletivamente e, assim, promove imagens enganosas - neste caso, sobre a natureza da ciência. Refiro-me, em particular, a histórias que romantizam cientistas, aumentam o drama de suas descobertas e simplificam demais o processo da ciência. Embora baseados em eventos históricos reais, eles são profundamente enganosos. Eles contribuem para estereótipos injustificados e falsas idéias sobre como a ciência funciona. (ALLCHIN, 2004, p.179)

que considerar mais relevante ou pertinente para inserir o componente histórico, sem, contudo, simplificá-lo. Se nosso objetivo é a inserção da HC enquanto um instrumento de reflexão, não podemos pensar em sua simplificação, sob o risco de apresentarmos uma visão distorcida sobre a construção do conhecimento.

Viabilizar o conteúdo histórico selecionado no tempo didático disponível em cada contexto caracteriza-se como um obstáculo específico, tanto do ponto de vista pedagógico quanto historiográfico. Além disso, desenvolver atividades didáticas adequadas para tratar os conteúdos envolve lidar tanto com o conhecimento conceitual da ciência, sua história e sua epistemologia, bem como requer opções metodológicas educacionais apropriadas a esses conteúdos. (FORATO; PIETROCOLA; MARTINS, 2011, p. 45)

Porém, se pensarmos nos alunos dos anos iniciais, cujo nível de reflexão não pode ser comparado ao de um aluno do ensino médio ou superior, certamente o que o professor precisará fazer será uma adequação da linguagem e deste componente histórico para a faixa etária com a qual atua. Não se trata aqui de uma simplificação, mas de fazer os ajustes necessários para que a aprendizagem efetivamente ocorra e o conteúdo não se torne enfadonho.

Assim, partindo da premissa já exposta de que a HC contribui para a formação do cidadão numa proposta de Educação Científica, ao favorecer a compreensão da natureza da ciência, de seu caráter processual e histórico, convém questionar: Como essa abordagem pode acontecer no ensino? Diferentes pesquisadores apontam inúmeras possibilidades para a inserção do componente histórico no ensino, dependendo dos objetivos do professor. Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental destacam que a História das Ciências “é fonte importante de conhecimentos na área”, sugerindo-se sua introdução nos anos iniciais “na forma de história dos ambientes e das invenções”, como apresentaremos mais adiante (BRASIL, 2001: 32). Para além desta possibilidade sugerida no documento, indico algumas outras a seguir, sem citar exaustivamente as referências que as propõem ou utilizam:

• Uso de episódios de HCT em sala de aula (Forato, 2009; Martins, 2006; entre muitos outros);

• Leitura de textos originais de cientistas (Zanotello, 2011; Trindade, 2011; Forato, 2009; Forato et al 2011; Jankvist, 2013; Gandolfi e Figueirôa, 2014; Schirmer, 2012; Briccia e Carvalho, 2011);

• A partir do cinema (Santos e Scheid, 2011; Braga, Guerra e Reis, 2007); de histórias de ficção científica (Reis e Galvão, 2007; Lemos, 2012); ou da exibição de documentários (Derossi e Freitas-Reis, 2015); • Discussão de temas controversos: controvérsias sociocientíficas ou

históricas (Oulton, Dillon e Grace, 2004; Sadler, Chambers e Zeidler, 2004; Bagdonas, Zanetic e Gurgel, 2014; Santos e Mortimer, 2009; Allchin, 2013);

• Por meio de caricaturas (Clary e Wandersee, 2010);

• Pela história dos instrumentos de científicos, como os de navegação por exemplo (Vissicaro, 2014);

• Como fonte de reflexão sobre a historicidade das ciências, valorizando sua conexão com as discussões CTS (Santos, 2005; Alvim, 2014). • Através da experimentação (Silva e Guerra, 2015);

• Por meio da interdisciplinaridade e as relações coma sociedade (Silva et ali, 2008; Silva e Guerra, 2015).

• No trabalho com fontes primárias (Silva e Guerra, 2015); • Por meio de peças de teatro (Archila, 2015)

• Com a História da Ciência na América Latina (Lopes e Figueirôa, 1996; • Com a História da Ciência no Brasil (Silva et ali, 2008; Gandolfi e

Figueirôa, 2014).

Infelizmente, não encontramos relatos que apontem para a utilização de textos originais de cientistas nos anos iniciais do ensino fundamental, provavelmente pelas características dos alunos deste nível de ensino e pelos conteúdos comumente trabalhados nos anos iniciais que talvez não oportunizem o trabalho com estes textos, ou ainda, simplesmente porque nenhum pesquisador se voltou para as potencialidades dos alunos e as possibilidades que podem se abrir a partir da curiosidade iminente desta faixa etária.

No entanto, Pataca (2001, p.2) chama nossa atenção para o trabalho com outras fontes documentais originais, não apenas as fontes escritas que, na maioria das vezes, são “esquecidas ou reduzidas a um papel puramente ilustrativo e decorativo”, nos estudos de história das ciências. Em sua dissertação de mestrado, Pataca analisa “a iconografia como principal fonte de informação, (...) de forma complementar às fontes escritas e ao estudo do contexto histórico”. Tais

constatações nos inspiram a possibilidade do trabalho com imagens (ilustrações, desenhos ou mapas) como fontes documentais originais nos anos iniciais do Ensino Fundamental, contribuindo para “as análises históricas e entendimento do conhecimento científico”. Esta seria uma proposta inédita e não há relatos de trabalhos, sobretudo nos anos iniciais, utilizando a iconografia.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental sugerem, para os anos iniciais a introdução da História das Ciências “na forma de história dos ambientes e das invenções” (BRASIL, 2001, p. 320). As invenções fascinam e nos envolvem num percurso pela história da humanidade como destaca Williams na sinopse do livro “A História das Invenções – do machado de pedra à tecnologia da informação”. O ser humano sempre foi inventor, desde os tempos pré-históricos usamos o que está a nossa volta para criar ferramentas, objetos e engenhocas para nos auxiliar nas tarefas. E trabalhar com a história das Invenções é explorar a curiosidade das crianças que perguntam o tempo todo, querem saber como funcionam as coisas, como foram feitas... é abrir uma oportunidade de explorar objetos tão próximos e tão desconhecidos.

Há hoje, no mercado editorial, inúmeros livros que tratam da História das Invenções, muitos dos quais podem ser encontrados nas bibliotecas das escolas de Ensino Fundamental I. Talvez um dos mais antigos e conhecido, porém pouco explorado, seja “A História das Invenções” de Monteiro Lobato10, publicado em 1935.

Nesta obra, o autor

introduz os princípios elementares que sustentam a teoria científica sobre o surgimento e a evolução da vida na Terra; descreve o surgimento da espécie humana e o modo de vida dos hominídeos; fala da importância da invenção da agricultura e do valor da criatividade e adaptabilidade humanas. Detalha, especialmente, como surgiram e evoluíram os artefatos

10 Há muita polêmica em torno da obra do autor. Leitores atuais apontam que sua obra é racista e preconceituosa. No entanto, Márcia Camargo chama a atenção, no artigo “O lugar do Negro na obra de Lobato”, publicada no Jornal O Estado de S. Paulo em 15/03/2019, para um Lobato provocativo, que “rema na contramão do politicamente correto”, e “surpreende ao dar voz ao oprimido”. Na visão dessa autora, ela própria organizadora de uma exposição comemorativa em Paris em 2019, seus personagens apresentam características marcantes e de empoderamento: “Emília, com sua irreverencia e caráter provocativo, desafia filósofos e cientistas; tia Nastácia e tio Barnabé, personagens negros, são valorizados como parte integrante da cultura brasileira, trazendo o viés popular, as tradições e o saber empírico; Dona Benta, mulher culta, com conhecimento de mundo e de livros, entre outros. Não podemos deixar de ressaltar o período em que suas obras foram escritas, o contexto em que estava inserido, sua própria biografia e seus valores nacionalistas. Tais elementos influenciaram suas obras, ainda que seja um dos primeiros autores a escrever para crianças”.

humanos, apresentando-os como extensões dos órgãos e das capacidades humanas (Ciência Hoje para Crianças)11.

Além de abordar a ciência de forma inovadora para a época e apresentar as invenções como extensões do cérebro humano, Lobato fundamenta seu texto com informações que vão se entrelaçando e relacionando com outras áreas (Astronomia, Biologia, Antropologia) de maneira atrativa e lúdica, como pode ser observado na sinopse a seguir.

Tabela 1: Sinopse “A História das Invenções”

Durante um chuvoso mês de fevereiro, Dona Benta resolve ler para os netos e para a boneca Emília um livro chamado História das invenções do homem, o fazedor de milagres. Antes de começar, ela avisa: “Este livro não é para crianças, mas se eu o ler do meu modo vocês entenderão tudo”. No decorrer da narrativa, Dona Benta cumpre o prometido e o autor – como já havia feito nos livros Emília no país da gramática, Aritmética da Emília, O poço do Visconde, Geografia de Dona Benta e Serões de Dona Benta – mostra uma nova metodologia de ensino, provando que é possível informar e divertir ao mesmo tempo.

Enquanto degustam a pipoca preparada por Tia Nastácia, Pedrinho, Narizinho e Emília ouvem a avó contar sobre o nascimento do nosso planeta, o surgimento da vida na Terra e a evolução do homem. Depois, ela fala sobre descobertas e invenções que mudaram a história da humanidade, como o fogo, a cerâmica, a roda, os óculos, o avião e muitas outras.

Em um instigante diálogo, Dona Benta desenvolve a ideia de que as invenções são ferramentas que servem para aumentar o poder do nosso corpo e nos permitem dominar as forças da natureza. Esse conceito fica explícito nos títulos dos capítulos que dividem o livro: Da pele ao arranha-céu, A mão, O pé que roda: a roda, A boca, O ouvido, O olho etc.

Com uma combinação fascinante de realidade e fantasia, por meio da voz de seus personagens, Lobato traduz para os leitores a obra do historiador holandês Hendrik Van Loon e apresenta um painel do progresso social e científico do homem, contextualizando os desdobramentos das inovações tecnológicas para a humanidade.

Fonte: www.travessa.com.br/historia-das-invencoes

Outra possibilidade de se abordar a HC é pela história dos instrumentos científicos. Vissicaro (2014) descreve o desenvolvimento e aplicação de uma proposta didática realizada nos anos iniciais acerca da história dos instrumentos de navegação do período dos Grandes Descobrimentos. Segundo a autora, ao trabalhar com a história dos instrumentos de navegação, especificamente o

11 Informações disponíveis no site da Revista.

quadrante, não estamos apresentando “uma história de uma coleção de instrumentos mortos e descartados” (GALISON, 1988 apud LACERDA, s.d., p.2), mas estimulando

uma análise do que seria a ciência para aqueles que construíram os instrumentos naquele determinado período histórico, por quais motivos e de quais conhecimentos fizeram uso. Pesquisar, construir e utilizar o quadrante na prática, tal como propomos na proposta didática construída e aplicada, implica também no desenvolvimento de conhecimentos e habilidades, advindos de diferentes áreas, demonstrando seu potencial interdisciplinar (VISSICARO, 2014, p. 05).

Este estudo dos instrumentos e a sua utilização como fonte histórica surgiu a partir das críticas de alguns historiadores da ciência, que propuseram novos temas de estudos, especificamente, a cultura material das ciências (GRANATO et al., 2007; PESTRE, 1996; GOURDAROULIS,1994). GRANATO (2007, p.3) explica que a cultura material das ciências “seria o estudo não do objeto em si, mas das diferentes técnicas e tecnologias contidas naquele objeto, por quem e para quem este objeto foi construído, com que finalidade e se seu uso correspondeu ao objetivo para que foi originalmente construído”. Sem esquecer-se da interação deste com a ciência, o lugar e a época no qual foi produzido.

Olhar para a História dos instrumentos e das invenções significa ter perguntas a responder: Como surgiram? Quem os criou/inventou? Como e por quem eram utilizados? De que eram feitos? Que contribuições resultaram de sua utilização? E talvez a questão mais importante a ser respondida: Qual seu papel no desenvolvimento de determinado grupo/sociedade, em determinado tempo e local?

No entanto, há um longo caminho a ser percorrido quando pensamos na HC nos anos iniciais, considerando-se as lacunas tanto de pesquisas neste nível de ensino quanto no que diz respeito a propostas didáticas segundo essa abordagem. Muitos dos livros didáticos adotados nesse nível de ensino apresentam aspectos da HC e constituem, na maioria das vezes, uma das únicas fontes de acesso a esses conhecimentos, embora de forma simplista e restrito a boxes de curiosidades que enaltecem a genialidade de alguns cientistas e inventores famosos.

Como pesquisadora e professora dos anos iniciais venho investigando possibilidades de se abordar a HC pela História das Invenções, dentre outros, e no próximo capítulo apresentarei os resultados de um curso de formação cujo produto

final foi a elaboração de propostas didáticas utilizando a História das Ciências na Educação Infantil e nos anos iniciais.

3. Delineamento da Pesquisa

Nos capítulos anteriores apresentamos o referencial teórico que embasa a pesquisa. Agora, faz-se necessário delimitar o caminho percorrido, partindo dos elementos básicos de uma pesquisa para, em seguida, situar a perspectiva teórico- metodológica adotada. Elegemos: 1) a pesquisa qualitativa para nortear a investigação, ainda que alguns elementos possam ser analisados quantitativamente; 2) os questionários, a observação participante e a constituição de um grupo formativo como técnicas para a coleta de dados; 3) a análise interpretativa para tratamento dos dados coletados ao longo da realização da proposta formativa; 4) e o relato como apresentação escrita do texto. Dividimos este capítulo em duas partes, sendo a primeira dedicada ao delineamento da pesquisa e a segunda, ao caminho percorrido até a análise dos dados.