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5 APLICAÇÃO DA TEORIA DAS AÇÕES MENTAIS POR ETAPAS

5.1 UM POUCO DO QUE VIMOS

Adentramos a sala de aula e, embora quisesse parecer imperceptível, os alunos cujos olhares eram curiosos sondavam a nova presença. À turma foi explicado que estávamos estudando o processo de ensino das professoras e que poderiam ficar tranquilos, pois não seriam avaliados; Filipe estava ciente da pesquisa. Ao perceberem que a presença da pesquisadora não implicava em tomada de atitude perante o comportamento dos mesmos, essa presença foi gradualmente ignorada e invisibilizada por eles.

Durante duas semanas atentamos para os fatos que ocorriam. Essa observação não era ingênua e despretensiosa, pelo contrário, procurava-se nela elementos que mais tarde serviram como auxilio para o entendimento do processo de ensino e aprendizagem de Filipe. Logo, esse período foi importante para conhecer o ambiente no qual o aluno estava, a inter-relação dos alunos, destes para com as professoras e vice-versa, como também os métodos de ensino utilizados por Antônia e Juliana para o ensino de Matemática e Ciências, respectivamente.

Na turma, havia alunos com idade para estar no ensino médio, se tornando um dos grupos rapidamente identificado, pois se sentam próximos uns aos outros no fundo da sala. Do lado oposto, meninos cuja idade corresponde ao 8° ano sendo liderado por um de seus colegas aparentemente um ano mais velho, porém mais novo que o primeiro grupo. Na frente havia mais dois grupos, um formado por algumas meninas,

e outro por duas alunas, sendo uma surda e outra ouvinte, a qual se destaca nas disciplinas de Ciências e Matemática. Havia alguns alunos que não estavam em nenhum desses grupos, como Filipe; e todos conversavam entre si, embora alguns de forma mais discreta. A exceção era a aluna surda, Denise, que conversava basicamente com Nicole, a única na sala a buscar comunicação em libras. Raramente outro aluno tentava gesticular algo para Denise.

Denise e Filipe são os dois alunos que apresentam necessidades educacionais especiais18 - n.e.e – causadas pelas deficiências sensorial e intelectual. A primeira é acompanhada em sala por uma intérprete, enquanto o segundo é atendido no contraturno por uma professora especializada em educação inclusiva, Bel. O parcial isolamento perante seus pares, a ausência de tarefas adaptadas, a ociosidade em sala de aula são alguns dos elementos que compartilham.

Ambos sentam-se nas primeiras carteiras da sala, bem na frente da mesa do professor, mas isso não significa que são atendidos. Denise é ensinada basicamente pela intérprete que se desdobra para pensar em instrumentos de ensino para facilitar a aprendizagem da aluna; pois não há tarefas adaptadas para a mesma. Filipe não tem a mesma sorte (se é que assim podemos nos referir) uma vez que a metodologia adotada pelas professoras não facilita o envolvimento do mesmo nas aulas.

Juliana relatou que sua postura é tradicional. Extremamente consciente do próprio ponto de vista diz que não se identifica com a educação especial e deixa a cargo das professoras do contraturno e da intérprete a função de ensinar Ciências. Ressalta que até poderia fazer algo, mas a escola, carente de recursos materiais e humanos, dificulta a promoção de aulas que contemplem a diversidade; isso a desestimula a buscar novos caminhos e confirma sua atitude tradicional.

Antônia, que já trabalhou com alunos deficientes intelectuais e com altas habilidades, diz que se preocupa com os alunos com deficiência e, ao planejar suas

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O termo é utilizado no documento de Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Está disponível no site https://inclusaoja.com.br/legislacao/ Acesso em: 20 abr. 2016.

aulas, pensa em como atender as especificidades desses alunos. Entretanto, durante as duas semanas em que as observações ocorreram não foram visualizadas tarefas planejadas, e sim pensadas no momento, além do conteúdo não corresponder ao ministrado para o restante da turma. Inicialmente partem de uma visão divergente sobre a presença do aluno em sala de aula e o planejamento de tarefas específicas, todavia, a metodologia é semelhante, conforme registrado no Diário de Bordo19.

As aulas repetem-se: professora entra, passa exercício do livro ou no quadro, senta e espera que os alunos façam. Há cobranças verbais para o cumprimento da tarefa, pouca, mas há. Normalmente o exercício é corrigido na aula seguinte, ainda que seja no mesmo dia. Terminada a correção há nova bateria de exercícios (DIÁRIO DE BORDO, p. 13-14).

A didática por elas adotada é resultado da prática e da reprodução do próprio processo escolar; realidade esta que nos remete às lacunas deixadas pelos cursos de licenciatura20. A ausência de uma metodologia se reflete no processo de ensino e aprendizagem. Na sala de aula, quando os alunos terminavam as tarefas propostas, ficavam desocupados e consequentemente conversavam entre si; tal comportamento atrapalhava os demais colegas que não haviam terminado o dever. Há de se destacar que os exercícios propostos não vislumbravam situações nas quais os conhecimentos aprendidos poderiam ser aplicados em situações reais, dessa maneira, os alunos faziam por fazer, mecanicamente.

O planejamento ainda se torna um desafio maior se considerarmos as condições nas quais as professoras se encontravam. São muitos alunos e pouco suporte da instituição; sozinhas devem diagnosticar, planejar atividades, conseguir os instrumentos necessários, executar, avaliar os resultados e planejar novas ações sobre esses resultados. Em outras profissões, tal profissional teria uma equipe e material para suporte, diferente do que ocorre na educação. Dessa maneira, o

19 Todas as citações diretas feitas do Diário de Bordo serão registradas em itálico e fonte ‘Times New

Roman’ para diferenciar do restante do texto.

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Embora o assunto seja relevante e pertinente nesse momento não caberá discussão da contribuição dos mesmos para a formação de professores.

desânimo atinge o profissional e o que se percebe é a predominância do “cuspe e giz”. Portanto, tarefas direcionadas às especificidades de Filipe não foram realizadas.

Ainda que o cenário entre as duas disciplinas seja próximo, a postura dele perante ambas as professoras é distinta. Enquanto em Ciências ele parece pensar em outras coisas enquanto rói unha, em Matemática tenta participar - ainda que timidamente - quando a professora faz perguntas à turma. Filipe inclusive muda a postura ao se sentar, ficando mais ereto e olhando diretamente para a professora Antônia.

Não é possível afirmar os motivos para adotar tal conduta, mas acreditamos que a exaltação da figura do professor, nesse caso específico da professora Antônia, é um dos fatores que influenciam Filipe, e todos os outros alunos, a se comportar de maneira diferenciada na disciplina de Matemática. Antônia é carismática e acessível aos alunos, conquista, na maioria das vezes, todas as turmas nas quais trabalha. Porém, não é o método utilizado que é um diferencial e sim seu próprio jeito de ser. A respeito dessa preferência, Vigotski (2004, p. 453) afirma:

O problema é antes fazer os alunos ficarem inspirados pelo mesmo motivo. [...] até mesmo quando a inspiração atingia a consciência dos alunos nem sempre tinha o endereço certo e se transformava em adoração ao professor, que assumia formas profundamente antipedagógicas.

A motivação a ser suscitada é do próprio aluno e não conferir à mesma ao professor, pois quando o primeiro caso acontece observa-se mais efetividade na assimilação da atividade (NÚÑEZ, 2009). E, se esse professor por algum motivo é afastado de suas atividades? Juliana assumiu a turma em agosto daquele ano, e por isso está no início da relação com a turma; consequentemente, a afinidade com Filipe ainda é algo que está sendo trabalhada, um desafio como ela mesma disse (DIÁRIO DE BORDO).

Motivado interna ou externamente, Filipe se depara com um dilema, pois ainda que se sinta motivado, raramente há atividades a serem desenvolvidas. Quando têm, duas situações são observadas: a primeira refere-se às atividades desenvolvidas que requerem habilidades já adquiridas pelo aluno e por isso estão na ZDR.

Comumente é dado ao aluno tarefas que se restringem ao plano material, limitando- o a esse plano e, desse modo dificultam a formação de uma imagem abstrata. Para os alunos com deficiência intelectual, como Filipe, é reforçar sua condição, visto que possui pouca capacidade para o pensamento abstrato (VIGOTSKI, 2004).

A segunda situação conta com atividades que não são resolvidas pelo aluno, ainda que tenha controle da professora. No caso de Filipe, são trabalhadas atividades que requerem pensamento abstrato, sendo ignoradas as tarefas que ele desenvolve com a ajuda de seus pares, com a orientação do professor ou com apoio de algum instrumento, como a ficha de orientação; ou seja, as tarefas não são propostas utilizando a zona de desenvolvimento iminente.

Entre essas situações, o resultado foi um aluno sem tarefas a realizar, ocioso na maior parte do tempo e por isso ansioso, ato demonstrado pelo hábito de roer unhas. Quando disposto a executar as tarefas, a leitura e a escrita tornam-se as primeiras barreiras que afastam Filipe do processo de aprendizagem, e raramente tem atenção dos pares e das professoras. De certa forma, ele parece apreciar tal situação, pois sabe que ao fechar o livro e o caderno dificilmente será importunado e poderá jogar no celular.

Há de ser pensar sob a perspectiva histórico-cultural de que a formação da personalidade é parte do processo da assimilação do próprio aluno acerca do comportamento humano (VIGOTSKI, 2004; 2007). Abster-se das atividades não é uma característica por ele inventada e sim aprendida no decorrer dos acontecimentos da sua vida, principalmente a escolar. Outras características típicas da conduta de um adolescente também foram observadas: desconcentra-se com facilidade do que está sendo ensinado, prefere jogos às tarefas escolares, afronta a autoridade do professor, faz pirraça quando não atendido em suas solicitações para sair ao banheiro e beber água. Há de se destacar que ele pede para sair com muita frequência, embora não tenha problemas em relação aos sistemas urinário e digestório. Bem como seus colegas, também quer impor sua vontade imediatista e seu comportamento é comum aos seus pares, não representando características específicas da sua condição genética. Todavia, seu desenvolvimento não é visto da

mesma forma, como uma internalização do ambiente em que está e no qual esteve nos anos anteriores, mas sim atrelado à trissomia.

Findado o período de observação, iniciou-se a intervenção, que teve como primeiro passo a tarefa diagnóstica. No primeiro dia, ao conversar com Filipe, foi explicado novamente como seria a pesquisa e perguntado se ainda aceitava participar, respondendo positivamente.

As tentativas de aproximação com ele foram marcadas por assuntos informais, por exemplo, “Como foi seu final de semana?” ou “ O que fez no final de semana?” e as respostas curtas, sem continuidade “Foi bom” ou “Não fiz nada!”. Parecia estar tímido com a presença de um adulto ao lado, diferenciando-o dos demais colegas. A distância era mantida pelo seu costume de se portar na sala de aula, isto é, pediu para que não ocupasse a carteira ao lado dele, pois gostava de colocar a mochila nela.

Ao perceber que essa presença causava certo incômodo, a atitude foi sentar entre ele e a aluna que mais se destacava nas disciplinas. Quando as professoras passavam exercícios, a ajuda era direcionada à aluna, que aceitou e solicitou que tal postura continuasse. Em poucas horas, Filipe aceitou a aproximação de maneira discreta, pois ainda sentia-se tímido, pedindo para que fizéssemos as atividades na biblioteca. Logo, acatando seu pedido fomos para um local em que se sentiria mais confortável, como a biblioteca e o laboratório de Ciências e Matemática.