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3 CONTRIBUIÇÕES DA ESCOLA DE KHARKOV

3.1 ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL – SINFONIA INCOMPLETA

3.1.1 Psicologia histórico-cultural e a concepção sobre o comportamento

Qual é o limite entre normal e anormal? Linha tênue e inexistente, assim como o conceito de norma que é “[...] puramente abstrato de certa grandeza média dos casos mais particulares e, na prática, não é encontrada em forma pura, mas sempre em certa mistura de formas anormais (VIGOTSKI, 2004, p. 379)”. Entretanto, ressalta o autor, há comportamentos que se afastam de tal maneira que nos dão o direito de falar sobre o anormal.

O comportamento anormal, cujas origens podem ser diferentes, é reunido em três grandes grupos: aqueles em que o comportamento anormal é breve e casual, como esquecimentos, omissões, delírios; o comportamento constante e vitalício, decorrente da ausência de um membro, deficiência física; e o comportamento duradouro e estável, representado pelas neuroses, psicoses e deficiências mentais. Estes são o foco da discussão quanto ao processo de ensino, aprendizagem e desenvolvimento, embora possa ser estendido para todos os grupos.

O que dizer do processo de ensino e aprendizagem para os sujeitos que foram marginalizados ao longo do tempo? Seja pela sua condição física, genética ou psicológica, o desvio da norma fez com que fossem excluídos, tendo o papel social restrito a um ser parasita que dependia da benevolência do outro. À escola cabia a tarefa de olhá-los de maneira piedosa, “[...] mantê-los com recursos sociais, ajudá- los a levar aos trancos e barrancos uma deplorável sobrevivência humana” (VIGOTSKI, 2004, p. 382). Apesar das mudanças ao longo dos séculos, pouco mudou para os deficientes intelectuais.

Sob o ponto de vista do desenvolvimento natural é necessário esperar que as funções biológicas amadureçam para que possam aprender. O item anterior abordou que, sob a perspectiva da psicologia histórico-cultural, a humanização é um processo no qual as funções elementares tornam-se superiores a partir das relações sociais mediadas pelo outro e pelos signos (VIGOTSKI, 2004). Contudo, se deixarmos o indivíduo à própria sorte, ressalta Martins (2013b), ele nunca passará pelo processo de humanização.

O comportamento da criança sofrerá mudanças quando ela sentir necessidade de tal atitude, exigir que ela diga a palavra para referir-se a um objeto, memorize para falar de um fato acontecido e pense para resolver problemas. Daí a importância da participação da criança no meio cultural, pois só haverá desenvolvimento psíquico pelos meios externos da cultura, fala, escrita, aritmética e pela própria função psíquica, atenção voluntária, lógica e pensamento abstrato. A criança com deficiência intelectual permanece nessa carência justamente nesses aspectos não por questões orgânicas, mas pelas possibilidades que são oferecidas para que eles se desenvolvam (VIGOTSKI, 2004; 2011).

No âmbito escolar é comum utilizar os mesmos métodos de ensino a todos os alunos, independente de suas especificidades. Entretanto, compete ao professor e ao pedagogo selecionar técnicas com signos especiais que atendam às necessidades desse público.

Para a criança intelectualmente atrasada, deve ser criado, em relação ao desenvolvimento de suas funções superiores de atenção e pensamento, algo que lembre o sistema Braille para a criança cega ou a dactilologia para

a muda, isto é, um sistema de caminhos indiretos de desenvolvimento cultural, quando os caminhos diretos estão impedidos devido ao defeito (VIGOTSKI, 2011, p. 869).

Além disso, Vigotski (2004) demonstra a importância de trabalhar com atividades que incitem nos alunos à formação da imagem mental dos objetos, uma vez que os sujeitos com deficiência intelectual “não são muito capazes de ter pensamento abstrato”, e justamente terem dificuldade na representação mental é que a “[...] escola deveria fazer todo esforço para empurrá-las nessa direção, para desenvolver nelas o que está intrinsecamente faltando no seu próprio desenvolvimento” (idem, p. 101). Porém, ao desenvolver as atividades, pedagogos e professores enfatizam o plano concreto e reiteram a cada tarefa a deficiência intelectual do aluno, uma vez que não fomentam situações que promovam o desenvolvimento cognitivo (VIGOTSKI, 2004; 2007; 2011).

O desenvolvimento cognitivo à luz da psicologia histórico-cultural é formado com base na internalização da cultura vivenciada na sociedade. A privação da mesma interfere significativamente no processo de humanização, tanto dos ditos normais como anormais. A escola enquanto espaço de construção de conhecimento deve criar oportunidades para que esse desenvolvimento ocorra, ainda que para alcançar os objetivos precise modificar seus métodos. Vigotski contrapôs o pensamento da época afirmando que é o ensino que estimula o desenvolvimento, porém não explicou como ocorre a abstração do que antes era concreto.

A resposta a isso foi exaustivamente pesquisada por Galperin, que esteve presente na fundação da Escola de Khrakov (HAENEN, 2001). Pouco conhecido no ocidente, as contribuições do psicólogo para a nova psicologia são de extrema relevância; pois assim como os demais pesquisadores que continuaram a obra de Vigotski, aquele preenche lacunas deixadas por este.

A obra inacabada de Vigotski decorreu de sua morte ainda jovem, aos 38 anos. A Sinfonia Incompleta é assim referenciada em decorrência de suas ideias brilhantes, sendo considerado ‘O Mozart da Psicologia’, além de formar junto aos seus colaboradores, Leontiev e Luria, a Troika (HAENEN, 2001). Troika, que significa

trinca de cavalos, deixou um quarto cavaleiro solitário, o qual será apresentado a seguir.

3.2 “À LUZ DA SUA GLÓRIA, QUEM É O CAVALEIRO A CAVALO SOLITÁRIO – PETER YA. GALPERIN?” 11

Nascido em outubro de 1902, filho de um médico e professor universitário, Galperin tinha em casa uma vasta biblioteca com artigos sobre Filosofia, Medicina e Psicologia. Sua formação pode ter sido influenciada pelo seu contexto familiar e assim formou-se em medicina na década de 30, direcionando sua atuação para a área da Psicologia (NÚÑEZ; OLIVEIRA, 2013).

Pouco conhecido no ocidente, foi um dos psicólogos mais influentes nas escolas da antiga União Soviética a partir da década de 50, quando “formulou hipóteses sobre a teoria da formação por etapas da atividade mental e dos conceitos” (NÚÑEZ, OLIVEIRA, 2013, p. 288). Participou do seleto grupo de psicólogos do país e esteve envolvido na fundação da Escola de Jarkov, Ucrânia, sendo o último dessa geração a ter contato com Vigotski (HAENEN, 2001). Além de outros importantes psicólogos da época, trabalhou com A. R. Luria, A. N. Leontiev e foi orientador de V. V. Davidov e N. F. Talízina, contribuindo significantemente em seus estudos. Apresentou-se como uma importante figura para a compreensão do pensamento da Psicologia Histórico-Cultural e da Teoria da Atividade, esta desenvolvida por Leontiev, que, contudo, não explicaram o mecanismo de internalização da atividade externa em atividade interna (NÚÑEZ, 2009; NÚÑEZ; OLIVEIRA, 2013).

Galperin, continuador desses estudos, contribuiu para a compreensão da formação de conceitos na mente humana e como esta está relacionada à atividade material externa, colaborando para a formação do psiquismo humano. No início da década de 50 formulou hipóteses sobre esse processo e, em 1965, defendeu sua tese com os “Principais resultados dos estudos sobre a formação da ação mental e dos conceitos”, assim intitulada (NÚÑEZ; OLIVEIRA 2013, p. 289). As questões

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Artigo de Boris Gindis, o qual avaliou o livro de Haenen (1996), Psychologist in Vygotsky's Footsteps.

relacionadas às mudanças cognitivas do desenvolvimento e à origem da mente são o centro dos seus estudos (STETSENKO; ARIEVITCH, 2008).

Assim, a relação dos diferentes tipos de aprendizagem, as formas de ensino e sua relação com o desenvolvimento também se tornam importantes, uma vez que:

Sua preocupação era compreender como os conceitos complexos e muito discutidos de mediação e interiorização, apresentados por Vygotsky, poderiam ser instrumentalizados para se organizar um ensino que desenvolvesse os estudantes como personalidades integrais (NÚÑEZ; OLIVEIRA, 2013, p.293).

A respeito do processo de interiorização e desenvolvimento, Galperin (2013d) demonstrou que havia um problema do método ao se estudar o intelecto do sujeito. As discordâncias, segundo Galperin, decorriam do método utilizado para pesquisar o desenvolvimento intelectual do sujeito e propôs uma nova metodologia, a qual o conduziu à questão do desenvolvimento mental. A esse método denominou “formação das ações mentais por etapas” (GALPERIN, 2013d, p. 463).