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1 OCUPAÇÕES E APROPRIAÇÕES PRETÉRITAS DO SUL CATARINENSE: UM

1.2 O POVOAMENTO DE SANTA CATARINA NOS SÉCULOS XVII E XVIII:

1.3.1 Os povos originários

No século XVI, no contexto da ocupação do território por europeus, Santa Catarina e, mais especificamente, a região Sul formavam uma grande área coberta pela Mata Atlântica, por florestas de araucárias e por campos, que, por sua vez, era habitada por povos nativos, entre os quais estão os Tupi-Guarani, que cultivavam a terra e ocupavam a faixa litorânea próxima das lagoas; os Xokleng, grupos estacionários de caçadores e coletores que circulavam entre o planalto serrano e o litoral; e os Kaingang, que ocupavam os campos do planalto acima da Serra Geral.

Os Tupi-guarani, também chamados pelos europeus de “Carijó”, ocupavam a faixa mais próxima ao litoral e, por consequência disso, foram os primeiros com quem os recém-chegados fizeram contato e estabeleceram relações. Tratava-se de uma sociedade que já conhecia e praticava a agricultura e, por isso, fixava-se por um maior espaço de tempo no mesmo lugar, além de praticar atividades pesqueiras e ceramistas.

Ao criticar a superficialidade das informações que geralmente se apresentam a respeito das populações indígenas, Sílvio Coelho dos Santos procura realçar que:

Os indígenas do Brasil domesticaram e utilizavam várias espécies de vegetais, como o milho, a mandioca, o fumo, a erva-mate, que logo foram absorvidas pelos europeus. Além disso, tinham os indígenas grande conhecimento da fauna e flora, como também de acidentes geográficos como rios, ilhas, campos, etc. (SANTOS, 2004, p. 23).

Foram inúmeros os registros acerca da presença das populações indígenas e das relações estabelecidas com elas que, de um modo geral, ficam nítidos o acolhimento e a hospitalidade dispensados aos europeus, como nos casos de naufrágio, no abastecimento dos viajantes e dos recém-chegados com toda espécie de víveres e mesmo no fornecimento de informações que proporcionaram aos exploradores europeus um mapeamento cada vez mais detalhado da região em processo de formação, assim como dos caminhos em direção ao interior, no intuito de atingir as áreas produtoras de metais preciosos na Bolívia e no Peru.

Registros como os de Hans Staden, além de descrever os contatos com os tupis- guaranis e aspectos da organização e da vida cotidiana desse povo, deixaram a primeira representação cartográfica do litoral catarinense, com destaque para a Ilha de Santa Catarina.

Figura 1 - Registro da Ilha de Santa Catarina no mapa do viajante alemão Hans Staden, produzido em 1549 e publicado em 1557.

Fonte: Hans Staden, (1557).

Cabe ressaltar que a política de Capitanias Hereditárias e de Sesmarias, implantada no Brasil, possibilitou o lançamento das bases necessárias para a gradativa (porém ininterrupta) ocupação e para o alargamento do território, baseado principalmente na Capitania de São Vicente, de onde partiam as expedições bandeirantes em busca da captura de índios destinados ao comércio de escravos, sobretudo para as fazendas produtoras de açúcar, em São Vicente e em demais Capitanias do Nordeste. Foi nesse contexto que se deu a fundação dos primeiros povoados no litoral catarinense, em meados do século XVII, iniciando-se com o deslocamento vicentista em direção ao extremo sul, motivado pelo apresamento de indígenas.

De acordo com João Henrique Zanelatto, “(...) o sul despertaria o interesse somente dos vicentistas no apresamento de índios para escraviza-los. Serão esses vicentistas que estabelecerão os primeiros núcleos de povoamento na região” (Zanelatto, 2012, p. 109), o que nos fornece indicativos substanciais de que o projeto colonizador previa e contava com a “colaboração” das populações nativas que deveriam, por sua vez, fornecer a mão de obra necessária ao empreendimento da mesma forma trágica e brutal que “contribuíram” para o

reconhecimento e a ocupação, pelos povoadores europeus, da região que é o objeto de nossos estudos.

Parece-nos, portanto, que a eficiência dos colonizadores se deu na mesma proporção que se deu a ruína dos povos originários, que foram sendo dizimados pela captura, pelo aprisionamento e pela escravização em massa, ou mesmo pelas inúmeras doenças virais que contraíram no processo de contato, por não possuírem os anticorpos necessários. Os índios Carijó, que habitavam a faixa litorânea e que primeiro estabeleceram contato com os conquistadores europeus, sucumbiram e desapareceram da área litorânea catarinense já no final do século XVII (Santos, 2004, p. 25), sendo que alguns poucos que resistiram e sobreviveram acabaram buscando refúgio no interior.

O mesmo aconteceu com os Xokleng, também conhecidos como Botocudos, e os Kaingang, ambos do tronco linguístico Jê, que foram assim caracterizados por Silvio Coelho dos Santos:

Os Kaingang viviam no Planalto, habituados à economia do pinhão, a uma agricultura muito rudimentar, complementada pela caça. Eram seminômades, ou seja, faziam um acampamento e nele viviam uma parte do ano; na outra parte, viviam como nômades, caçando e coletando frutos, raízes e mel. Os Xokleng, por sua vez, eram nômades. Sua área de ocupação eram as florestas que ficavam entre o litoral e o planalto. Sua economia baseava-se na caça e na coleta (SANTOS, 2004, p. 24).

Os Xokleng, por exemplo, tinham o nomadismo16 como prática cultural e, por consequência, necessitavam de ocupar uma área territorial maior por onde pudessem circular mais frequentemente entre o interior e o litoral da região, habitualmente orientados pelas estações climáticas do ano que lhes proporcionavam relativa segurança alimentar por meio da caça e da coleta. Essa constante circulação dos Xokleng foi caracterizada pelo historiador e arqueólogo Rodrigo Lavina como um “movimento pendular entre o litoral e o planalto, com nítidas características estacionais” (LAVINA, 1994, p. 49). Talvez, por isso, puderam resistir por um espaço maior de tempo aos conquistadores, mas também acabaram dizimados quase que por completo ao longo do século XIX e no início do XX, período que coincide com o recorte temporal deste estudo.

Silvio Coelho dos Santos lembra que, “nessa sequência de eventos desastrosos que os Carijós viveram, houve o socorro de missionários Jesuítas espanhóis e portugueses” (Santos, 2004, p. 25), que chegaram ao Brasil logo após a instalação do primeiro Governo

16 Ressaltamos que a expressão “nomadismo” requer certo cuidado, pois, os colonizadores europeus fizeram uso

Geral do Brasil, em 1549, liderados pelo padre Manoel da Nóbrega e com a incumbência de aldear e catequizar as populações indígenas, nos moldes da doutrinação cristã e convertendo- os ao catolicismo, tarefa nem sempre fácil, como registrou o historiador e antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, no texto “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).

Viveiros de Castro, baseado no Sermão do Espírito Santo, escrito pelo padre Antônio Vieira, em 1657, desenvolve uma narrativa que busca problematizar a questão trazida pelo religioso acerca da inconstância da alma selvagem, tomando por metáfora a dureza do mármore em relação à flexibilidade da murta, no que diz respeito aos indígenas, que resistiam ou mesmo não se permitiam converter ao cristianismo e que, por isso, precisavam ser constantemente acompanhados e tutelados (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Colocando-se na contramão da pergunta formulada pelos religiosos jesuítas e repetida por diversos historiadores, Viveiros de Castro se interessa em saber por que os indígenas se mostram tão constantes em suas inconstâncias. O autor escapa às análises e às interpretações que reforçam o estereótipo consolidado no imaginário nacional: “O índio mal-converso que, à primeira oportunidade, manda Deus, enxada e roupas ao diabo, retornando feliz à selva, presa de um atavismo incurável. A inconstância é uma constante da equação selvagem” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 186).

Viveiros de Castro aponta para a importância da alteridade como forma de explicar que, talvez, os indígenas prezassem elementos que, para eles, não fossem assim tão negociáveis. Nesse aspecto, a inconstância pode ser entendida como “um modo de aparecer da sociedade Tupinambá aos olhos dos missionários. É preciso situá-la no quadro mais amplo da bulimia ideológica dos índios (...)” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 190). Castro demonstra que a compreensão da pluralidade dos mundos indígenas depende da elaboração e da reflexão de conceitos alinhados com esses mesmos mundos, para não cairmos nas armadilhas das mesmas perguntas acerca do universo “não-índio” e, assim, reforçar estereótipos.

O autor indica que devemos nos atentar para questões importantes como a ideia da construção do outro nessa relação de trocas. Para os indígenas, “o outro não era ali apenas pensável – ele era indispensável” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 195). Portanto pensar essas sociedades indígenas só seria possível se pensássemos o outro e a abertura a esse outro, o que implica na transformação do pensamento que nos é comum, na medida em que entramos em contato com o modo de pensar do outro. O modelo proposto remete à ideia de

“culturas”, num sentido mais amplo e ligado ao processo de trocas, fora da lógica que separa cultura de natureza.

Nessa perspectiva, há inúmeros registros que dão conta da atuação desses religiosos vinculados à Companhia de Jesus, no litoral sul catarinense, desde a metade do século XVI; como no caso da tentativa fracassada dos padres Fernão Cardin, João Lobato e Jerônimo Rodrigues. Os dois últimos saíram do Rio de Janeiro, em março de 1605, com a pretensão de construir “uma residência da companhia na região dos Patos [Laguna]” (Cabral, 1970, p. 34) e ali iniciar os trabalhos de catequização dos Carijó. Consta que chegaram a Laguna, em 24 de agosto, e ali permaneceram por um período de dois anos, percorrendo a região próxima em direção ao sul.

Conforme Oswaldo Rodrigues Cabral,

Foi numa dessas incursões que ficaram conhecendo Tubarão, indígena soberbo e arrogante, que os recebeu com desdém e até com ironia chegou a responder aos padres, pois, tendo este perguntado se um bugrinho que andava por ali era seu filho, retrucou: – “sim, para vós outros o açoitardes” (1970, p. 34).

Cabral ainda registra aquela que teria sido “a impressão dos dois padres com respeito aos indígenas”, arrematando que “não foi das melhores, retratando-os como indiferentes, preguiçosos, sujos, incestuosos e antropófagos” (CABRAL, 1970, p. 34). Portanto aquela que teria sido a fala do cacique Tubarão e mesmo a impressão dos padres jesuítas, retratada por Oswaldo Cabral, permite-nos perceber nítidos sinais de resistência por parte dos grupos indígenas que, depois de um século de conquista, já haviam experimentado as ações violentas exercidas pelos conquistadores, o que também pode ser interpretado como sinais das “inconstâncias”, trazidas por Viveiros de Castro.

Em 1618, houve uma nova tentativa de catequização dos tupi-guarani, agora sob a liderança dos padres João Fernandes Gato e João de Almeida, que permaneceram durante aproximadamente um ano entre os Carijó da Ilha de Santa Catarina, de Laguna dos Patos (Laguna) e percorreram a região em direção ao sul, passando pelos rios Tubarão (Tubá- Nharô), Araranguá e chegando até os limites do rio Mampituba (Boipetiba), no extremo sul, com o intuito de arregimentar novas almas para o cristianismo (CABRAL, 1970, p. 35).

Houve mais uma nova tentativa de fixar residência da Companhia de Jesus, ao sul de Santa Catarina, no ano de 1622. Dessa vez por iniciativa e com a liderança dos padres João de Almeida – o qual dois anos mais tarde foi substituído pelo padre Pedro da Mota – e Antônio Araújo. Permaneceram os dois primeiros anos em Imbituba (Embetiba,) e, em 1624,

deslocaram-se para Laguna, onde deram início à construção de uma igreja e desenvolveram os trabalhos religiosos até 1628. A exemplo das missões anteriores, os padres jesuítas realizaram incursões pelo litoral em direção ao sul, passando pelas terras do Tubarão e chegando ao Rio Grande (CABRAL, 1970).

Mais uma tentativa foi realizada em 1635, com os padres Inácio de Siqueira e Francisco de Moraes (Cabral,1970), que puderam permanecer pouco tempo em Laguna, devido às tensões enfrentadas por causa das ações dos traficantes de escravos. Aliás, esse tipo de contenda, travada entre os religiosos e os bandeirantes, era uma constante. Aqueles buscavam aldear, catequizar e proteger os nativos da ação predadora dos traficantes, e os bandeirantes faziam o possível para arruinar a ação dos padres. Um exemplo desses embates foi o ocorrido em 1640, quando o padre Pedro Moura tentou organizar uma “nova missão entre os Carijós, mas o Capitão-mor de Santos escreveu-lhe que estava preparando gente e embarcações para impedir o intento dos padres, avisando-o, para evitar qualquer desgraça” (CABRAL, 1970, p. 37-38).

Oswaldo Cabral faz alusão ainda um documento, produzido em 1644 pelo padre Tomás de Urenã e encaminhado a D. Luiz Aresti, Tenente General das Províncias do Rio da Prata, no qual o padre relata, entre outras coisas, que:

em 1641, cerca de 400 portugueses, com 300 guerreiros indígenas, todos armados, haviam surgido, tendo havido luta com os aborígenes do sul, verificando-se uma verdadeira hecatombe. Depois de fazer referências a outros pontos da costa, descreve a situação do litoral sulino (...). Em São Francisco, onde encontrou apenas 7 ou 8 moradores, soube que a 100 léguas para o interior havia um posto de paulistas, guarnecido de brancos e indígenas. (...) (CABRAL, 1970, p. 38).

As investidas dos padres jesuítas, na tentativa de estabelecer uma residência em Laguna, no extremo sul, foram uma constante durante quase toda a metade do século XVII, mas acabaram frustradas por conta das investidas dos bandeirantes e dos traficantes de escravos, que avançavam sobre o litoral – e dali para o interior – em busca do apresamento dos povos nativos que seriam vendidos como escravos. Os bandeirantes foram eficientemente vorazes com os indígenas, assim como o foram diante das intenções dos religiosos da companhia de Jesus, especialmente no extremo sul catarinense.

Esse quadro nos leva a perceber que, ao mesmo tempo em que os vicentistas tiveram relevante importância no processo de ocupação e de povoamento das terras de Sant’Ana – em especial da Região Sul –, interferindo nos contornos regionais, essa investida se deu com o sacrifício das populações nativas que, ao longo de praticamente quatro séculos, foram caçadas, apresadas, escravizadas, mortas e dizimadas.

Voltaremos a tratar dos povos originários no próximo capítulo, em especial os Xokleng, que habitavam o interior da região sul catarinense e que foram dizimados no processo de colonização desencadeado na segunda metade do século XIX.

1.3.2Apopulação negra: escravos e libertos.

Por muito tempo a historiografia catarinense negligenciou as populações africanas (ou afrodescendentes) em Santa Catarina. Em alguns casos, omitindo sumariamente sua presença e, em outros, minimizando e até mesmo suavizando sua atuação. Comumente, no que diz respeito aos traços da historiografia tradicional, estabelecem associações entre a formação e o povoamento do estado catarinense e a chegada dos açorianos e dos madeirenses no litoral, em meados do século XVIII, e, posteriormente, traçam vínculos com as sucessivas levas de imigrantes de diversas nacionalidades, sobretudo alemães e italianos, para as colônias que foram se formando no interior ao longo do século XIX. Nesses casos, a historiografia acaba por privilegiar e dar ênfase a esses últimos, atribuindo-lhes um caráter epopeico, como o fez Walter F. Piazza, na obra “A Epopeia Açórico-Madeirense (1747-1756)”, publicada em 1992, a exemplo de tantos outros autores, deixando de lado ou em segundo plano os próprios portugueses e os vicentistas, mas sobretudo os nativos, os africanos e afrodescendentes.

São poucos os registros que dão conta da presença de escravos africanos pelo litoral catarinense a partir de suas primeiras ocupações – e mesmo no século XVII, quando foram trazidos pelos bandeirantes em suas ações exploradoras que acabaram, também, por colonizar determinadas áreas com a formação dos povoamentos já mencionados. Nesse período que vai até praticamente meados do século seguinte, observamos uma ocupação esparsa do litoral catarinense, entre São Francisco (ao norte) e Laguna (no extremo sul), o que nos leva a crer que a presença de escravos africanos fosse, também, bastante diminuta naquele período, embora ela tivesse, certamente, ocorrido de fato.

Em relação aos primeiros povoamentos do litoral catarinense, Walter Piazza menciona a presença de escravos tanto em São Francisco do Sul – “(...) em 1658, Manoel Lourenço de Andrade inicia, efetivamente, o povoamento da Ilha de São Francisco, quando para cá se transfere com sua família, criadagem e escravos, e grande número de associados (...)” – como em Laguna – “atendendo ao convite que lhe fora feito por Carta Régia, Domingos de Brito Peixoto, (...) aprestou-se com escravos, indígenas, homens brancos, oficiais de todos os ofícios e capelão, para explorar o extremo sul do Brasil” (PIAZZA, 1994, p.29-33).

Por outro lado, não há registros conhecidos que indiquem a relação direta da Região Sul do Brasil – e, em especial, da província de Santa Catarina – com o continente africano para a obtenção de escravos, a exemplo do que pode ser facilmente observado em outras regiões como a Nordeste e a Sudeste, e mesmo na região de mineração do ouro e de diamantes, o que não quer dizer que o emprego de escravos africanos ou afrodescendentes não tenha ocorrido de forma sistemática nas mais diversas atividades produtoras da capitania e, mais intensamente, nas da província.

No entanto foi com a chegada dos imigrantes oriundos das ilhas atlânticas de Açores e da Madeira que observamos uma maior presença de africanos na Província de Santa Catarina. Isso porque o comércio escravagista, com base na África, já era praticado pelos portugueses desde os tempos em que iniciaram suas navegações pelo Oceano Atlântico, contornando o continente africano em busca dos mercados do Extremo Oriente.

Ao fazer referência ao historiador português João de Barros e à sua obra “Décadas da Ásia”, Walter Piazza lembra que, “em 1442, [Portugal] recebe os dez primeiros negros escravos, oriundos da África Ocidental, trazidos pelo navegador Antônio Gonçalves”, ao passo que “pouco a pouco, desenvolve-se o tráfico, o que faz com que o Papa Pio II, pela Bula de 7 de outubro de 1462, se exprima contra a escravidão” (PIAZZA, 1975, p.9).

Além disso, os escravos africanos já eram amplamente empregados nas possessões portuguesas do Atlântico, de onde vieram aproximadamente seis mil imigrantes, entre os anos de 1747 e 1756, como forma de efetivar o processo de colonização do litoral catarinense a começar da Ilha de Santa Catarina em direção ao Extremo Sul do Brasil, como previa o projeto político da Coroa Portuguesa, diante das disputas em curso com o Império Espanhol.

Embora em pequena quantidade, existem alguns registros que dão conta da presença de escravos africanos no litoral catarinense desde os primeiros anos da colonização, o que nos permite aferir que, de fato, essa presença deveria mesmo ser diminuta, porém constante ao longo dos séculos até o seu aumento significativo, que ocorreu da metade do século XVIII para frente e, sobretudo, ao longo do século XIX, quando os registros são mais frequentes, volumosos e robustos.

Walter Piazza menciona três exemplos desses registros:

A primeira notícia numérica dos habitantes da capitania e província de Santa Catarina é de 1536, quando Gonzalo de Mendonza, em busca de socorros para Buenos Aires, assinala, em Ibiaça, a existência de escravos! (...) E deve-se dizer que os fundadores das primeiras povoações litorâneas: Manoel Rodrigues de Andrade, Francisco Dias Velho e Domingos de Brito Peixoto, para cá vieram, com seus

parentes e escravos. (...) Depois, temos Frézier, [1712] que apresenta a orla marítima catarinense como pouco povoada e dá a Ilha de Santa Catarina com “147 brancos, alguns negros e índios (administrados)” (PIAZZA, 1975, p. 17-18).

À medida que se amplia o comércio entre os núcleos povoadores e vilas, com a circulação dos tropeiros que cortavam a província entre o litoral e o planalto pelos conhecidos “caminhos das tropas”, é possível perceber a presença dos escravos de origem africana (ou mesmo afrodescendentes) também no interior; mas foi no final do século XVIII e, sobretudo, no século XIX que Santa Catarina recebeu um contingente significativo de cativos decorrentes do comércio da África, que geralmente se disseminava com base no porto do Rio de Janeiro.

De acordo com o historiador Henrique Espada lima,

Já em fins do século XVIII, de todo modo, os africanos chegaram às centenas, para trabalhar nos empreendimentos que se desenvolviam nessa parte meridional do Império Português. A pesca da baleia era um exemplo, conduzida a partir das chamadas armações. Elas eram verdadeiras “fábricas”, com um grande número de atividades diversificadas – desde a pesca e o corte da baleia, beneficiamento de carne e óleo, armazenamento etc. – que usavam um número bastante expressivo de trabalhadores escravos, chegando facilmente a mais de uma centena. Documentos sobre seu funcionamento demonstram que o uso dos escravos era intenso e que a