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PRAGMATISMO POLÍTICO NA ELABORAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: ANÁLISE DE DOIS

Toma-se, como exemplo, o paradigmático caso da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, à Constituição de 67/69 que convocou a Assembléia Nacional Constituinte.

Existe um padrão dentro do pensamento metafísico do Direito de se estudar momentos de mudança constitucional, modelo esse que tem cravado suas raízes no período revolucionário francês do final do século XVIII e nas obras dos primeiros elaboradores da “teoria” do poder constituinte originário25. Segundo esse padrão, o poder

25 Dentre outros, são “fontes” quase que exaustivas para o estudo do

poder constituinte no Brasil autores como EMMANUEL-JOSEPH SIEYÈS, CARRÉ DE MALBERG, EGON ZWEIG, KARL LOEWENSTEIN, EDUARD LABOULAYE e GEORGES BURDEAU. Dentre os que adotam, em maior ou menor grau, essa visão estão LIMA (1983:33), FERREIRA FILHO (2007:11), SALDANHA (1986:65), SILVA (2007:66). Essa também é a crítica de GILBERTO BERCOVICI (2006:218) à produção doutrinária brasileira a qual atribui um “tratamento acrítico, formalista e repetitivo”. O autor,

constituinte “originário” se instala dentro de contextos de ruptura, de crise, de ambientes revolucionários que superam o regime anterior e dele nada incorpora26 27 28. Foi dessa

forma que se instalaram assembléias constituintes nas histórias constitucionais mais famosos da experiência ocidental. Mesmo que para alguns juristas, o modelo tradicional esteja já ultrapassado, não se consegue fugir à necessidade de se elaborar uma espécie de “teoria geral” do poder constituinte, mesmo que aplicada às circunstâncias no Brasil29.

entretanto, parece cair no mesmo erro da doutrina que critica ao atribuir pouco valor aos textos “de ocasião”, produzidos durante a Assembléia Constituinte de 1987/88 e querer ainda retirar uma espécie de “teoria geral” do poder constituinte remodelada, no contexto de um “projeto nacional de desenvolvimento”.

26 Para FERREIRA FILHO “a revolução, fenômeno social, é o veículo do

Poder Constituinte”, apesar de ampliar em demasia a idéia do que seria “revolução” (2007:34); XAUSA (1986:17), para manter a coerência do discurso, identifica o momento de “ruptura”, que legitimaria a Constituição de 1988, em 1964; BONAVIDES faz menção ao poder constituinte extrajurídico, advindo das revoluções e golpes de Estado (2007:151); MORAES fala de um poder inicial e ilimitado (2005:23), na linha do que já defendia CANOTILHO (2007:94). Enfim, com diferenças filigramáticas, os autores, apesar de reconhecerem a dimensão política do evento, tentam enquadrar esse fenômeno em padrões jurídicos de análise. Curiosamente, FERREIRA FILHO, em trabalho posterior, acaba por adotar posicionamento cético em relação à própria postura acadêmica que havia escolhido. Assim, recomenda: “Deixe-se de lado a teoria do Poder Constituinte, utópico e metafísico, que aponta apenas um paradigma (raríssimamente seguido)”. (1995:142).

27 Para que a convocação da Emenda Constitucional n 26/85 fizesse

sentido teórico, alguns chegam a classificá-la como verdadeira revolução ou com “força germinativa revolucionária”. LINDOSO, 1986:41;

28 Há vozes, entretanto, destoantes dessa visão oficial no sentido de

que o poder constituinte não necessariamente se instala a partir de uma revolução, de um golpe ou de um ato de força. Para RAYMUNDO FAORO, por exemplo, basta que haja um consenso de insuficiência do texto constitucional anterior e a necessidade de renovação das regras do jogo, mesmo que sem a “desintegração institucional”. FAORO (1985:89,90). Vale menção também à tentativa de NELSON SALDANHA (1986: 86) de compreensão da questão a partir da idéia de “transconstitucionalidade”, apesar da estrutura “teórica” do seu texto.

29 Exemplo dessa tentativa de libertação da visão “padronizada”, mas

que apenas consegue reeditá-la e revigorá-la é a tese de PAULO BONAVIDES acerca da “crise constituinte” ou o descompasso existente entre Constituição formal e material no Brasil. BONAVIDES (1998:346) e BONAVIDES (2004:40). Apesar da originalidade da visão associada à preocupação com a experiência brasileira, o tom transcendental na linha de uma teoria do poder constituinte brasileiro baseada em um contexto do “dever ser” acaba por retirar funcionalidade e utilidade às eventuais conclusões retiradas.

No Brasil, entretanto, a “revolução” não aconteceu30. O Regime Autoritário Militar foi superado aos poucos, dentro de um processo lento de transição e de abertura política. Nesse contexto, a passagem da Constituição Semântica de 67/69 para a Constituição Democrática de 1988 se deu de maneira bastante peculiar, pois pautada nas bases do regime constitucional que se queria superar31. O então Presidente da República, JOSÉ

SARNEY, cumprindo promessa de TANCREDO NEVES, enviou ao Congresso Nacional proposta de emenda constitucional à Constituição de 1967 que “convoca Assembléia Nacional

Constituinte, e dá outras providências”32. Não houve, portanto, ruptura propriamente dita, não houve abandono

30 Em realidade, a revolução nunca ocorreu no Brasil. Apesar de haver 7

momentos constitucionais bem definidos, nenhum deles foi imediatamente antecedido por um quadro tradicional de “revolução”, entendido como algum tipo de movimentação política, social ou militar, com caráter de transformação, sustentada pela participação, mesmo que parcial, do “povo”. Em episódios decisivos de nossa história, os eventos de implementação de algum tipo de regime novo se deu pela movimentação de grupos bastante definidos e com interesses peculiares específicos e historicamente situados. Nada, portanto, que possa ser chamado de revolução no sentido tradicional da palavra. Foi o que ocorreu com o “movimento revolucionário” militar de 1964, com a instituição do Estado novo em 1937 e com proclamação da República em 1891. As Constituição de 1934, 1946 e 1988 que simbolicamente representam momentos de retomada da liberdade, foram antecedidas por processos lentos de democratização, por dinâmicas sustentadas pela preocupação com a estabilidade política e institucional. Na mesma linha, JOBIM (2004:9): “No Brasil nunca houve rompimentos; houve, isso sim, determinados regimes que se esgotavam e por dentro do próprio regime que se esgotava, sobrevinha um novo regime”.

31 AFONSO ARINOS também sugeria, já em 1981, uma mudança do paradigma

constitucional, não por meio de rupturas, mas por meio da coexistência, em um primeiro momento, de duas linhas constitucionais (a antiga e a nova iniciativa) na qual se preservaria a “continuidade jurídica”. FRANCO (1981:141).

32 Três artigos foram suficientes para substituir a “revolução” tão

prestigiada pelos constitucionalistas:

Art. 1. Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1 de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional.

Art. 2. O Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembléia Nacional Constituinte e dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente.

Art. 3. A Constituição será promulgada depois de aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assembléia Nacional Constituinte.

revolucionário do contexto constitucional do Regime Militar. Houve sim superação gradativa do antigo regime, dentro de um quadro de relativa estabilidade, no qual o processo de mudança foi controlado, tanto na sua amplitude como na sua velocidade e modo de operar33.

Para muitos juristas, essa forma como se construiu o “poder constituinte originário” é teratológica e um acinte ao posicionamento da teoria constitucional34.

Para outros, o processo constituinte deixa uma pecha de ilegitimidade no Texto Constitucional aprovado em 5 de outubro de 1988 e coloca em risco o tom democrático que se

33 Naquele período, não há dúvida de que um dos temores pela convocação

da Assembléia Nacional Constituinte era com a estabilidade institucional do País (e não, propriamente, com a lógica ou com a técnica do poder constituinte). JOBIM (2004:9) afirma que “essa peculiaridade nos causa problemas quando tentamos distinguir os conceitos da constituinte originária e da constituinte derivada na história política real brasileira.” Quanto aos temores da instabilidade, importantes vozes do cenário político e jurídico nacionais demonstravam grande preocupação com a “ânsia de mudança” da Constituição. Tomo como exemplo a opinião de OSCAR DIAS CORRÊA que, em 1986, demonstrava suas preocupações com a exploração demagógica e ideológica do momento constituinte e apontava para a necessidade de “desmistificar a idéia de Constituinte, despindo-a do caráter de panacéia milagreira de todos os males da República.” Pouco antes, já havia demonstrado sua cautela: “Não se rompe, sem motivo ponderável, a linha da continuidade da ordem jurídica, impunemente.” CORRÊA: (1986: 12,102,100)

34 Representativo desse tipo de pensamento é a opinião externada por

CRETELLA JR. em seu “Comentários à Constituição de 1988” que, demonstrando consternação, apontava a falta de legitimidade e de técnica jurídica no episódio da Convocação: “Sabe-se que sempre que ocorre Convocação de Assembléia Nacional Constituinte, surge a seguinte pergunta: por que não deixar o próprio Congresso Nacional autoconvocar-se e, reunido unicameralmente, Câmara e Senado, elaborar novo texto constitucional ou rever a Constituição Federal, em vigor, e adaptá-la ao momento histórico? O direito constitucional brasileiro, na parte histórica, mostra que o prius ou ‘pressuposto’ necessário para a convocação da Assembléia Nacional Constituinte é a denominada ‘ruptura’ ou ‘rompimento’ com a ordem político-constitucional vigente (...) A última ‘ruptura’ ocorreu em 17 de outubro de 1969, quando os Ministros das Três Armas editaram a Carta de 1969. O atual Congresso Nacional não podia ser transformado em Assembléia Nacional Constituinte porque lhe faltou legitimidade. Inúmeros de seus membros não foram eleitos por sufrágio popular direto. A Constituinte, a ser eleita, deveria ser constituída apenas por mandatários do povo, sufragados por voto direto.” (1992:54-55). Nota-se a tendência de controlar a dinâmica política, não por meio de sua eficácia ou utilidade, mas por meio da compatibilidade com algum pressuposto teórico que não teria sido observado.

queria dar ao novo momento3536. Para um terceiro grupo, agindo dessa forma, há uma quebra de técnica jurídica ou da compreensão lógica do “instituto” do poder constituinte3738.

Ainda hoje juristas criticam, por exemplo, a manutenção da composição anterior do Supremo Tribunal Federal com ministros indicados pelos Presidentes Militares39 e a

35 Para JOSÉ LINDOSO, o “poder constituído”, ou seja, deputados e

senadores do regime anterior, não poderia fazer parte da Constituinte por ilegitimidade (1986:41). Também na mesma linha, XAUSA, (1986:19, 32) em crítica à chamada “Constituinte Congressual” por meio de obra que, no seu prefácio, foi assumida como o “pensamento coletivo da Ordem dos Advogados do Brasil” por seu então Presidente, Hermann Assis Baeta. Adere também SILVA (2007:78) e BONAVIDES (1998:350): “As Constituintes de 1967 e 1987-1988, tendo sido Constituintes congressuais, acumularam perante a teoria constitucional vícios formais insanáveis que tornam ambígua ou questionável toda a base de sua legitimação.”

36 Para importantes representantes no País do debate acerca do poder

constituinte, o Brasil sofre de um mal, de um vício estrutural que se reafirma em todos os momentos constituintes: uma “soberania popular bloqueada” que não consegue se manifestar plenamente. BERCOVICI (2006:220), BONAVIDES (1998:346) e mesmo SALDANHA (1986:17). A conclusão é também de WACHOWICZ (2004:222), embora o autor a retire de uma “redescrição” dos fatos históricos e não a partir de uma teorização. Mais uma vez, o tom “ontológico” da crítica e a sua sustentação em um “mundo ideal” ou em uma padrão de leitura (mesmo que não seja o padrão tradicional) retira qualquer possibilidade de sua utilidade ou eficiência prática, especialmente se considerarmos que a Constituição é uma obra inacabada, como alguns desses autores acreditam.

37 AFONSO DA SILVA, por exemplo, fala de um “modo correto” de

convocação da Assembléia Constituinte em crítica ao que aconteceu em 1985 (2007:78). É exemplificativa a posição de RAMOS TAVARES de uma crítica semi-branda ao momento vivido pelo país entre 1987 e 1988: “A aceitação da manifestação do poder constituinte ao longo da existência de um Estado, sem rupturas bruscas da ordem jurídica, mas tão-somente como reformulação de normas e princípios gerais, com a colocação de uma nova Constituição, efetuada por políticos, eleitos conforme as regras postas pela ordem que se quer invalidar, já é, por si só, uma mitigação de sua compreensão lógica.” A opinião do autor é um bom exemplo das posições doutrinárias que, reconhecendo o poder da prática política e seus resultados (no caso, a elaboração de uma Constituição que hoje é referência de estabilidade e modernidade no país), ainda se constrangem em se assumir posturas contrárias aos nossos pressupostos teóricos ou “lógicos”.

38 Com os anos e a estabilidade política alcançada por meio da

Constituição de 1988, vários doutrinadores – é certo – abandonaram o tom agressivo e radical ao contestar o processo constituinte de 1987/1988, preferindo destacar o tom conciliatório daquele momento e reforçar a sua legitimidade, mesmo que sem retirar as críticas ao processo tecnicamente incorreto. BONAVIDES, ANDRADE (2004:455); SILVA (2008:23).

39 SARMENTO (2009:129). O mesmo tipo de crítica já se fez também em

relação ao “aproveitamento” do velho Tribunal de Justiça imperial como base para a “criação” do Supremo Tribunal Federal. BALEEIRO

participação, na Assembléia Nacional Constituinte dos senadores eleitos em 198240.

Entretanto, o pragmatismo político, não confrontado com algum discurso funcional mais eficiente, construiu essa solução possível que não criasse no país um clima de revanchismo e de polarização política41. Especular se foi o modo mais adequado ou a “saída” mais inteligente não traz qualquer auxílio para se pensar os problemas importantes42. Esse juízo, típico do pensamento kantiano-

(1968:132). É interessante notar que não só se manteve a composição do STF, mas se atribuiu a presidência da sessão de instalação da Assembléia, e até a eleição de seu presidente, ao Ministro Moreira Alves, então presidente do STF (art. 2ª da EC n. 26). A manutenção de parcela da estrutura vinculada ao regime antigo era uma maneira estratégica de promover mudanças graduais sem que se perdesse o controle do processo.

40 FERREIRA (1989:17); BASTOS (1988:335); e, em nome da OAB, BAETA

(1987:5) e SILVA (2007:78). Nas eleições de 1986, o Senado Federal foi renovado em dois terços de sua composição. Logo se colocou a questão constitucional de saber se o “poder constituinte” poderia ser constituído por senadores que não haviam vencido uma eleição especificamente para fazerem parte da Assembléia Constituinte. A Emenda Constitucional nº 26 não fazia diferenciação e fixava que: “Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão unicameralmente em Assembléia Nacional Constituinte no dia 1º de fevereiro.” Na segunda sessão da Assembléia Nacional (Diário da Assembléia Nacional Constituinte, de 03.02.1987), manifestaram-se pela exclusão dos senadores eleitos em 1982 o Constituinte Plínio Arruda Sampaio (PT/SP), o Constituinte Roberto Freire (PCB/PE) e o líder do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva (PT/SP), falaram pela inclusão dos citados senadores o Senador Fábio Lucena (PMDB/AM), o Deputado Jarbas Passarinho (PDS/PA) e o Deputado Fernando Henrique Cardoso (PMDB/SP). O Presidente do Supremo Tribunal Federal e então Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ministro Moreira Alves, decidiu pela inclusão dos Senadores de 1982, decisão essa confirmada pela votação em plenário (394 votos contra 124) em que restou vencidos o PT, o PCB e o PC do B.

41 É digno de nota, por exemplo, o fato de que a própria EC nª 26 que

convocou a Assembléia Constituinte, ser também a responsável pela concessão de anistia aos servidores públicos vítimas de atos de exceção e aos autores de crimes políticos ou conexos (arts nº 4 e parágrafos). Do ponto de vista da mentalidade daquele momento, a anistia ao lado da convocação da Assembléia Nacional é um sinal importante da ideologia pacificadora que acabou por tomar conta do último momento constituinte brasileiro.

42 Os debates havidos quando da constituinte foram importantes fontes

bibliográficas para se discutir a viabilidade e a utilidade do desenho de regimento proposto. O que aqui se discute é que hoje, mais de 20 anos depois, temas como a técnica empregada na constituinte e a legitimidade da assembléia são questões absolutamente irrelevantes para se compreender e vivenciar a experiência constitucional que se acumulou nesse período. Essa superação, entretanto, é melhor aceita pelo “político”, pelo seu perfil pragmático, do que pelo jurista, com

iluminista, busca uma “correção”, uma “coerência”, uma “verdade”, para fenômenos absolutamente incontroláveis, como se a teoria fosse capaz de regular o mundo da vida ou com se houvesse uma forma “certa” ou “correta” de se fazer história institucional. Em realidade, “o processo constitucional é um processo que se produz por intermédio da luta política real e não pela via da discussão acadêmica.”43

O que, de fato, importa é que o momento constitucional se construiu e no seu rastro foi elaborada uma Constituição que se apresentou como viável do ponto de vista do conflito de posições ideológicas e que essa Constituição vem solidificando a estabilidade política e a garantia de direitos, mesmo que de forma lenta e gradativa, mostrando-se capaz, acima de tudo, de gerir crises44.

seu perfil teórico. TEMER (1994:115), que tem a vivência nas duas esferas, tenta conciliar os dois posicionamentos ao dizer que “A Emenda Constitucional 26/85 não é Emenda. É ato político. (...) Foi um ato revolucionário. No sentido de transformador. De um ato autorizador de uma ruptura constitucional, sujeita a uma condição: a manifestação de uma Assembléia popular.” Na frase de TEMER é possível identificar a intenção de superar o debate acerca da legitimidade da convocação da assembléia sem deixar de ser coerente com a visão padrão e teórico de como se “deve” convocar uma Assembléia Constituinte. Outro bom exemplo da mudança de visão de mundo que a vivência política traz ao jurista pode ser colhida da surpreendente proposta de AFONSO ARINOS de 1981 para uma constituinte, em exposição no Senado Federal. “A proposta que trazemos ao Congresso, em obediência à honrosa convocação do seu ilustre Presidente, meu eminente amigo Senador Jarbas Passarinho, é uma fórmula a ser considerada, entre outras possíveis, e, talvez, melhores. Proponho a outorga de poderes constituintes ao futuro Congresso Nacional, a ser eleito em 15 de novembro de 1982. A concessão desses poderes constituintes, é, a meu ver, a melhor solução, e mesmo a única, em termos jurídicos, para o restabelecimento indispensável da ordem constitucional.” Segundo a proposta, essa outorga seria feita por meio de projeto de resolução legislativa, aprovada pelas duas Casas do Congresso Nacional. Certamente, a sugestão de AFONSO ARINOS desagradaria enormemente os nossos juristas transcendentais, que estão mais preocupados com a lógica do sistema do que com o processo de se encontrar uma solução viável para um problema grave. O jurista ainda arremata: “Em termos especiais, seria uma solução original, uma solução brasileira, para o caso brasileiro. Mas isso não é um defeito, antes pelo contrário.” FRANCO (1981:141).

43 JOBIM (2004:9).

44 Para JOBIM (2004:17), o teste real para se investigar a

“funcionalidade” de uma Constituição é a sua “capacidade de gerir crises” e, em sua opinião, não há dúvida de que a Constituição de 1988 pode ser aprovada sob esse aspecto em virtude das diversas crises por

Outro exemplo marcante da forma fundacionista como o Direito vem enxergando fenômenos políticos diz respeito à análise da maneira como a Constituição de 1988 foi elaborada. Seu processo constituinte - narrado por políticos que vivenciaram os trabalhos45 - não se deu da maneira como os constitucionalistas gostariam para consolidar suas posições teóricas46 47 48. A metodologia de elaboração da Constituição de 1988 apresenta um importante

que viveu (por exemplo, o impeachment do Presidente Collor, a CPI do Orçamento, etc) sem ficar com sua autoridade arranhada;

45 O melhor texto acerca do tema é do ex-Deputado Constituinte NELSON

JOBIM (2004:9).

46 CELSO RIBEIRO BASTOS utiliza-se da expressão “Frankenstein” para

desferir uma incisiva crítica ao modelo das 24 subcomissões adotado pelo Constituinte de 1987/88. “... a puverização dos seus trabalhos em múltiplas subcomissões que eram obrigadas a trabalhar sem que tivesse havido qualquer aprovação prévia de diretrizes fundamentais. Isto conduzia necessariamente as subcomissões a enveredarem por um trabalho detalhista, minucioso e, o que é mais grave, repectivo a reclamos e pleitos vindos de todos os rincões da sociedade.” Pouco mais adiante, o autor se utiliza de um conceito abstrato para enfatizar o tom crítico: “Ressente-se, portanto, o trabalho produzido desta falta de contato com o que poderíamos chamar: a grandeza constitucional”. Também CRETELLA JÚNIOR teceu considerações críticas a respeito da “técnica jurídica” da assembléia: “De tal modo excepcional e insólita, na história da vida constitucional brasileira, a convocação de Assembléia Nacional Constituinte pelo Chefe do Executivo, estando o Congresso em pleno e normal funcionamento, que a mensagem convocatória, na falta de modelo tradicional para inspirar-se, ofereceu inúmeras dificuldades de técnica jurídica...” (1992:56/57). O termo Frankenstein, entretanto, foi amplamente utilizado para caracterizar a versão de BERNARDO CABRAL, apresentada em 26.06.1987, de anteprojeto da Comissão de Sistematização que, pela primeira vez, fundira os diversos textos aprovados nas comissões temáticas. PILATTI (2008:149).

47 Interessante notar como os juristas estão propensos a aceitar livros

e trabalhos que se disponham a elaborar uma teoria do processo constituinte, mas pouca abertura há para reconhecer o valor acadêmico de trabalhos que se prestam a apenas “contar” uma história, a história do poder constituinte, a narração desimpedida de uma visão de mundo