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PREPARAÇÃO DAS PROPOSTAS DE TRABALHO

CAPÍTULO 3 REESCRITA DE OBRAS POR MEIO DE MÍDIAS DIGITAIS:

3.2 PREPARAÇÃO DAS PROPOSTAS DE TRABALHO

Na escola, as metodologias ineficazes das aulas de leitura, a própria obrigação do ato de ler, a carência de trabalhos interdisciplinares nascidos a partir de propostas de leitura, a escassez de diálogo entre o texto literário e outras formas textuais e as cobranças inadequadas das devolutivas dos livros lidos levam os alunos ao caminho do desprazer frente à leitura, tão importante na construção do cidadão engajado com seu cronotopo.

Ciente dessa problemática, pretendeu-se, com base na realização de propostas de trabalho com livros paradidáticos que realmente fossem motivadoras para os alunos, criar projetos de reescrita de obras literárias a serem executados no laboratório de informática.

O objetivo maior era fazer com que os alunos adquirissem o gosto pelo hábito da leitura não por causa da reescrita digital ou por causa da utilização do computador, mas sim pela leitura em si.

É por esse motivo que se faz necessário explicar que em nenhum momento o projeto buscou valorizar apenas o ambiente virtual que hoje oferece, facilmente, a leitura de obras literárias. Na realidade, a meta era tentar mostrar ao aluno que a leitura, realizada por meio de um livro, poderia ser divertida e poderia suscitar a imaginação de uma forma muito prazerosa. E mais: mostrar que ler na tela do computador é diferente de ler um livro:

Os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas, outras se extinguem. Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. Elas colocam em jogo a relação entre o corpo e o livro, os possíveis usos da escrita e as categorias intelectuais que asseguram sua compreensão. (CHARTIER, 1998, p. 77)

Muitos alunos, atualmente, leem obras diretamente na tela do computador e pouco conhecem a profunda relação que pode existir entre o leitor e o livro. Esses mesmos alunos, frequentemente, também não analisam a nova postura que se tem ao fazer a leitura diretamente na tela do computador:

Aquele que escreve na era da pena, de pato ou não, produz uma grafia diretamente ligada a seus gestos corporais. Com o computador, a mediação do teclado, que já existia com a máquina de escrever, mas que se amplia, instaura um afastamento entre o autor e seu texto. A nova posição de leitura, entendida num sentido puramente físico e corporal ou num sentido intelectual, é radicalmente original: ela junta, e de um modo que ainda se deveria estudar, técnicas, posturas, possibilidades que, na longa história da transmissão do escrito, permaneciam separadas. (idem, ibidem, p. 16)

Ao tratar desse fenômeno, Chartier (1998, p. 70) explica, com muita clareza, que “a obra não é jamais a mesma quando inscrita em formas distintas. Ela carrega, a cada vez, um outro significado” e completa esse raciocínio explanando que

todo leitor diante de uma obra a recebe em um momento, uma circunstância, uma forma específica e, mesmo quando não tem consciência disso, o investimento afetivo ou intelectual que ele nela deposita está ligado a este objeto e a esta circunstância. Vemos portanto que, de um lado, há um processo de desmaterialização que cria uma categoria abstrata de valor e validade transcendentes, e que, de outro, há múltiplas experiências que são diretamente ligadas à situação do leitor e ao objeto no qual o texto é lido.

Encontra-se nesse ponto, então, a importância do professor exercer a função múltipla de guia, de facilitador, de instrutor ao longo dos trabalhos realizados nessa tentativa de fazer nascer nos alunos o gosto pela leitura. Quando a leitura é dirigida, o docente torna o trabalho mais significativo para o aluno. Esse é o papel do verdadeiro educador:

Educar [...] é um ato consciente e intencional e abrange a etapa do instruir, ultrapassando-a. Transmitir conhecimentos técnicos e científicos sem contextualizá-los na vida prática da sociedade real, onde cada aluno irá atuar, é, no mínimo, atitude irresponsável e, portanto, inadmissível ao verdadeiro educador. (VASCONCELOS, 1996, p. 48)

Foi a partir de todos esses referenciais que a proposta aqui relatada ocorreu. As experiências deram-se na cidade de São Paulo, maior centro educacional e econômico do país. A escola, onde nasceu e concretizou-se o projeto, localiza-se na região central da cidade e os bairros que a circundam, paradoxalmente, são compostos por população das classes A, B, C e D.

Os alunos recebidos nessa instituição de ensino, que abrange da Educação Infantil à Pós-Graduação Strictu Sensu, também pertencem a classes sociais díspares, em função de bolsas de ensino governamentais e institucionais. Dentre os alunos da Educação Básica, protagonistas do processo, muitos não possuem em suas casas computadores pessoais e, consequentemente, acesso à internet.

Inicialmente, e muito antes da proposta ser exposta aos alunos, o projeto, desenvolvido no Ensino Fundamental II, iniciou-se com a escolha dos livros que melhor atenderiam às necessidades educacionais do 9º ano.

A seleção foi feita pela professora que ministrava aulas para as turmas que executariam a proposta e deu-se a partir da ideia de se estabelecer relação com conteúdos desenvolvidos nas outras disciplinas da série. Portanto, desde o início do projeto, um enfoque interdisciplinar fez parte do trabalho. Segundo Ivani Fazenda (1979, p. 08), a interdisciplinaridade

é a substituição de uma concepção fragmentária para unitária do ser humano. É uma atitude de abertura, não preconceituosa, onde todo o conhecimento é igualmente importante. Pressupõe o anonimato, pois, o conhecimento pessoal anula-se frente ao saber universal. É uma atitude coerente, que supõe uma postura única frente aos fatos, é uma opinião crítica do outro que fundamenta-se na opinião particular. Somente na intersubjetividade, num regime de copropriedade, de interação, é possível o diálogo, única condição de possibilidade da interdisciplinaridade. [...] neste sentido tornando-se particularmente necessária uma formação adequada que pressuponha um treino na arte de entender e esperar, um desenvolvimento no sentido da criação e da imaginação.

Então, a partir desse ideal interdisciplinar, no primeiro ano em que o projeto ocorreu, 2007, foi escolhido o livro Um certo capitão Rodrigo, de Erico Verissimo, autor expoente da segunda geração do Modernismo brasileiro. A proposta, além da disciplina Língua Portuguesa, envolveu a disciplina História, na medida em que a obra trata da Revolução Farroupilha, uma sangrenta guerra civil que dividiu o sul do Brasil, mais especificamente o Estado do Rio Grande do Sul, dividindo as famílias e contrapondo irmão contra irmão.

É importante salientar também que seria muito enriquecedor se a disciplina Artes, assim como outras, pudesse fazer parte do projeto. Entretanto, na ocasião, tal integração não pôde acontecer porque a disciplina Artes, embora tivesse o nome que, supostamente, levaria ao desenvolvimento da palavra arte em seu sentido pleno, limitava-se apenas, dentro do projeto pedagógico do colégio em questão, ao desenvolvimento de conceitos da área da geometria.

Talvez, se a disciplina Artes estivesse presente ao longo do projeto, além do trabalho com a literatura e com a parte histórica da narrativa da obra escolhida, os professores pudessem tratar da cultura visual na medida em que a escolha de imagens poderia ter feito parte do projeto de reescrita do livro selecionado pela docente.

Assim, o projeto contemplaria a chamada alfabetização visual - termo cunhado por Donis A. Dondis e largamente trabalhado em Sintaxe da Linguagem Visual (2007) - ao analisar com maior riqueza, por meio das linhas, das formas, das cores, das luzes, das texturas por exemplo, as imagens usadas pelos alunos ao longo do trabalho.

Guimarães (2010, p. 42) explica a importância desse estudo no universo escolar:

Constata-se a necessidade do alfabetismo visual, já que as consequências da leitura [...] dependerão de vários fatores, como cultural, o psicológico, o social, o filosófico, além de experiências anteriores que o observador possua e busque para o momento da experiência. Não há, por conseguinte, como não entrar na questão educacional, tendo em vista que o sujeito-receptor vive em uma sociedade em que a linguagem midiática destrói, constrói e reconstrói identidades, muitas vezes, não permitindo uma reflexão sobre o que consome.

Nesse mesmo contexto que envolve o trabalho com a cultura visual, Fernando Hernández (2000) considera necessário que os educadores levem em consideração os objetos da cultura visual dos discentes, observando, ainda, os fatores histórico- antropológico, estético-artístico, biográfico e crítico-social.

Mais uma vez, torna-se indispensável o papel do docente como facilitador nesse processo de construção de conhecimentos. Segundo Guimarães (2001, p. 75),

Modernamente, o mundo é pavimentado de imagens. São tantos os dizeres, compreensíveis ou não, legíveis ou não, ainda assim legitimados, os quais rezam o cotidiano.

Em virtude desse fato, é que se clama o aprendizado, a análise consciente do texto imagético, não obstante o deleite da arte e, pela arte [...].

Para tanto, necessita-se de um leitor sensível, hábil e instrumentalizado. Um leitor que prospere diante do texto imagético, que adentre às camadas deste, dialogue com as mesmas e com o que as sustenta para retornar em expansão à superfície.

No ano seguinte, a obra escolhida foi O Médico e o Monstro, do romancista escocês Robert Louis Stevenson. Além de ser um clássico de mistério e suspense, o livro possibilitou um trabalho interdisciplinar entre as disciplinas Língua Portuguesa, Ciências e Ética. O objetivo era criar um projeto que realmente envolvesse os alunos, transformando-os em protagonistas ao longo do trabalho:

Uma educação que abraça a interdisciplinaridade navega entre dois pólos: a imobilidade total e o caos. A percepção da importância do passado como gestor de novas épocas nos faz exercer paradoxalmente o imperativo de novas ordens, impelindo-nos à metamorfose de um saber mais livre, mais nosso, mais próprio e mais feliz, potencialmente propulsor de novos rumos e fatos. O processo interdisciplinar desempenha um papel decisivo no sentido de dar corpo ao sonho de fundar uma obra de educação à luz da sabedoria, da coragem e da humanidade. (FAZENDA, 1998, p. 08)

Nesse contexto interdisciplinar, além da leitura e da reescrita literária digital, o livro promoveu reflexões sobre a ética na Medicina, tão presente, hoje, nos meios de comunicação, devido às descobertas que envolvem a bioética.

Após a escolha das obras, o passo seguinte dava-se com a apresentação das obras aos alunos.

No primeiro dia em que o projeto iniciava-se, era solicitado que os educandos obtivessem, por meio de uma pesquisa e utilizando o recurso que mais os agradasse, informações sobre o autor do livro escolhido.

Uma semana depois, eram ouvidas, por todos os alunos da turma, as informações coletadas previamente pelos discentes. A seguir, a professora de Língua Portuguesa fazia comentários complementares, quando achava pertinente, e expunha o contexto em que o livro fora escrito. Na sequência, o primeiro capítulo do

livro escolhido era lido e interpretado, pela docente, em sala de aula. Ocorria, assim, uma leitura coletiva e reflexiva, prática libertadora na visão de Zilberman (2009, p. 27): “[...] seja no âmbito coletivo, seja no plano individual, a conquista da habilidade de ler é simultaneamente o primeiro passo na direção da liberdade, de uma parte e de outra, para a assimilação dos valores da sociedade”.

Depois dessa leitura, os alunos expunham suas sensações e, quando tinham dúvidas sobre a obra ou sobre o conteúdo da mesma, colocavam suas questões. Essa etapa de sensibilização é, sempre, imprescindível, pois abre espaço para o diálogo entre professor e alunos e entre os próprios alunos. Percorrendo o objetivo do projeto, lembra-se que:

Ao ler, estou abrindo uma porta entre meu mundo e o mundo do outro. O sentido do texto só se completa quando esse trânsito se efetiva, quando se faz a passagem de sentidos entre um e outro. Se acredito que o mundo está absolutamente completo e nada mais pode ser dito, a leitura não faz sentido para mim. É preciso estar aberto à multiplicidade do mundo e à capacidade da palavra de dizê- lo para que a atividade de leitura seja significativa. (COSSON, 2009, p. 27)

Por fim, finalizada essa primeira etapa, os discentes eram convidados a dar continuidade à leitura em casa, observando que durante todo o processo do ato de ler, tinham o suporte da professora.

A verificação da leitura dos livros ocorreu no Laboratório de Informática da Instituição de Ensino, sendo que todos os educandos eram informados a respeito dessa questão que os levaria à reescrita da obra selecionada. Nessa ocasião, os alunos recebiam uma cópia do projeto, juntamente com um cronograma.

O cronograma foi de grande serventia na medida em que os alunos não tinham de ler o livro todo de uma só vez, mas percebiam a necessidade da leitura prévia para a execução da proposta.

Duas semanas depois, os educandos eram encaminhados ao Laboratório de Informática e iniciava-se a proposta de reescrita. Na primeira aula, a professora de Língua Portuguesa explicava todos os recursos das ferramentas tecnológicas e comunicacionais que seriam utilizados.

Para a concretização da proposta do livro Um certo capitão Rodrigo, foi usado o software gratuito HagáQuê da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), referência no contexto educacional universitário, que é disponibilizado no site daquela Instituição de Ensino Superior.

O HagáQuê é um editor de histórias em quadrinhos que oferta prévias estruturas de design, mas que, também, permite que o aluno busque na web imagens e planos de fundo e importe-os para o software.

Como nem todos os alunos tinham muita familiaridade com o computador e a maioria não estava habituada a realizar propostas de produção de texto no laboratório, optou-se, inicialmente, por um recurso de fácil manuseio. Até mesmo o layout do software ajuda em sua utilização, assemelhando-se muito ao Paint:

Figura 3 – Tela inicial do software Hagáquê

Semanalmente, os discentes dirigiam-se ao laboratório de informática e, baseando-se na leitura prévia feita em casa, reescreviam as histórias, utilizando-se de trechos narrativos e de textos em discurso direto. As imagens de fundo dos quadrinhos eram retiradas de sites e os personagens eram confeccionados pelos próprios alunos.

Por motivos que serão expostos mais adiante, no ano seguinte de execução do projeto, foi escolhido o programa PowerPoint do pacote Office da empresa Microsoft Corporation em vez do software Hagáquê e a temática do trabalho também mudou já que o livro escolhido foi O Médico e o Monstro.

Porém, a preparação era a mesma: pesquisa sobre o autor, discussão em sala sobre os dados coletados, contextualização histórica da obra, leitura do primeiro capítulo em sala e em voz alta e sensibilização. Só depois de todas essas etapas, ocorria a entrada no laboratório.