• Nenhum resultado encontrado

Pressupostos teórico-metodológicos para análise do discurso de autoajuda

5 LIÇÕES DA UNESCO PARA EDUCAR O “HOMEM DE

1.8 CONSIDERAÇÕES SOBRE O REFERENCIAL TEÓRICO METODOLÓGICO

1.8.1 Pressupostos teórico-metodológicos para análise do discurso de autoajuda

Para realizar a análise dos livros de autoajuda, recorremos às contribuições de Fairclough (2001), o qual em Discurso e mudança social relaciona discurso com mudança social, com a construção de sistemas de conhecimento e crenças, permitindo discutir as ideologias

embutidas nas práticas discursivas que, de tanto serem repetidas, acabam se tornando parte de uma linguagem do senso comum. O autor usa o termo discurso considerando “o uso da linguagem como uma forma de prática social e não como uma atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 90). Tal consideração implica “ser o discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 90).

Dessa forma, o autor propõe que se pense o discurso como uma prática social que tem implicações não apenas no que concerne ao modo de representação dos indivíduos no mundo, mas como uma prática social que contribui na construção das relações entre os homens – com implicações econômicas, políticas, culturais e ideológicas, e acrescentam-se também implicações no âmbito educacional. A prática discursiva “recorre a convenções que naturalizam relações de poder e ideologias particulares e as próprias convenções, e os modos em que se articulam são um foco de luta.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 94). Nesse caso, pode-se pensar no discurso da autoajuda como uma prática ideológica que, embora fale tão insistentemente em mudança pessoal, visa manter as relações de dominação.

“As ideologias embutidas nas práticas discursivas são muito mais eficazes quando se tornam naturalizadas e atingem os status de ‘senso comum’.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 117). “Embora seja verdade que as formas e o conteúdo dos textos trazem o carimbo (são traços) dos processos e das estruturas ideológicas, não é possível ‘ler’ a ideologia nos textos.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 118). Evidencia-se que os modos e estratégias discursivas produzem diferentes tipos de apelo aos leitores, deixando obscurecido esse “lugar” de quem produz o discurso.

Fairclough deixa mais claro isso ao referenciar o uso de uma linguagem prescritiva associada ao uso do pronome “Nós”.Nesse aspecto, o uso da linguagem carrega consigo posições ideológicas próprias de quem faz uso do discurso. “Todavia, por razões que são em si mesmas ideológicas, a maioria dos usuários da língua não foi educada para identificar uma ideologia no texto, mas para ler textos como representações naturais e inevitáveis da realidade.” (EGGINS, 1994 apud SILVA, 2000, p. 7).

Poder-se-ia dizer que o discurso de autoajuda se caracteriza como um construto ideológico de harmonização e amoldamento às relações sociais e é providencial no que se refere à manipulação das ações dos indivíduos no capitalismo. Tal discurso ajuda a ditar padrões de comportamento e, da forma como é apresentado, camufla relações de poder quando atribui ao indivíduo o poder/liberdade de escolha, circunscrito no poder da vontade envolta numa linguagem sedutora que não é neutra nem transparente.

Ao ter-se presente que as palavras e expressões mudam de sentido segundo posições de quem as emprega, pode-se lembrar Pagès et al. (1987, p. 37) ao afirmar que “o educador do homem da organização não são tanto as pessoas com as quais ele se relaciona, seus chefes, os formadores da empresa, são a própria organização, suas regras, seus princípios, suas oportunidades, suas ameaças.”

Para Fairclough (2001), as representações sociais podem ser pensadas a partir da teoria social do discurso que se detém sobre como os indivíduos constroem e reconstroem as significações do uso da linguagem. Nessa direção, empresários e gurus produzem um discurso propondo estabelecer uma relação entre o que se deseja e as esferas da subjetividade. Mas que interesses estariam norteando essa ‘vontade’ de empresários e gurus de adentrar nessa esfera? Lembra-se o questionamento feito por Foucault (1996, p. 8) quando pergunta o que há de “tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente?” E continua: “Onde, afinal, está o perigo?” Para responder a tal questionamento, pode-se pensar na autoajuda como um discurso carregado de uma ideologia, como uma pedagogia cujo efeito mais visível transparece no interesse voltado ao bem-estar do trabalhador. Foucault lembra que a “produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos [ressaltam-se livros e palestras] que

têm por função conjurar seus poderes e perigos, [...] esquivar sua pesada e temível materialidade.” (FOUCAULT, 1996, p. 8).

A lógica de dominação das organizações justifica-se em um discurso que busca fortalecer e dar credibilidade às palavras que são proferidas, carregadas de significações e que visam mobilizar ou desestimular ações dos indivíduos em caso de conflito. A adesão ideológica e psicológica do trabalhador assegura o controle da organização sobre os indivíduos, que se valem do discurso para moldar e direcionar o comportamento de seus trabalhadores. É isso que Huxley (1965 apud Meurer, 1998, p. 10, tradução nossa) destaca quando afirma que

a antiga idéia de que as palavras possuem força mágica é falsa; mas isso falseia a distorção de uma verdade importante. Palavras possuem um efeito mágico - mas não da forma que os magos [gurus] imaginam e nem no propósito que eles estão tentando influenciar. Palavras são mágicas na maneira que elas afetam a mente daqueles que as usam. [...] esquecemos que as palavras têm o poder de moldar homens e mulheres, que canalizam seus sentimentos, direcionam suas vontades e atuações. Conduta e caráter são altamente determinados pela natureza das palavras que usamos freqüentemente para discutir sobre nós mesmos e o mundo que nos cerca.

Determinantes na conduta social de um indivíduo, as palavras também adquirem um status hegemônico, ou como salienta Fairclough (2001, p. 105), as palavras “são formas de hegemonia”, uma vez que carregam consigo traços ideológicos. Não é à toa que as palavras exercem um poder de coerção, funcionando de maneira atrativa quando utilizadas com o intuito de convencer o trabalhador por meio de um discurso estruturado em tons de verdade. Nesse sentido Foucault (1992, p. 231) assinala que “vivemos numa sociedade que em grande parte marcha ‘ao compasso da verdade’ - ou seja, que produz e faz circular discursos que funcionem como verdade, que passam por tal e que detêm por este motivo poderes específicos”. Em decorrência dessa proposição é que se estabelecem relações em que o indivíduo se vê diante de uma situação na qual os laços de cooperação são esgarçados e o trabalhador individual submete-se às determinações da organização.

Em A ideologia da sociedade industrial, Marcuse (1973, p. 54) comenta que “os controles técnicos são a própria expressão da razão, colocada a serviço de todos os grupos, de todos os interesses sociais, de modo que toda contradição parece irracional e toda oposição impossível”. O que o autor não previa é que o discurso se tornaria tão ou mais eficaz como mecanismo de controle do trabalhador do que “os controles técnicos.”

A autoajuda para o trabalhador acaba se constituindo em uma tentativa de mobilização para uma ação, para a resolução de situações- problema nas relações profissionais. Atribuí-se ao indivíduo o compromisso com o sucesso da organização e, também, seu sucesso pessoal. Assim, a qualificação profissional fica sob a responsabilidade do trabalhador, que em muitos casos não tem condições financeiras e nem tempo disponível para obtê-la. Em geral, as empresas oferecem cursos operacionais, mas nos seminários, congressos e palestras é enfatizada a necessidade de um constante aperfeiçoamento que envolve cursos superiores, treinamentos em management, línguas, informática, entre outras exigências. Para se desenvolver profissionalmente, o trabalhador precisa investir em sua carreira, o que significa dizer que a incumbência em termos financeiros e de tempo disponível fica a cargo de cada trabalhador.

É interessante observar, contudo, que o exercício do poder na relação entre capital e trabalho é assegurado pelas ‘mudanças’ na forma de nominar as situações e elaborar discursos. Recursos de linguagem, nesse aspecto, são bem-vindos, de modo que por meio deles é possível suavizar, minimizar ou até mesmo transpor uma situação para outra menos hostil, até que a mensagem ganhe a significação e seja apropriada pelo público de acordo com o desejo de seus anunciadores. Nessa linha de pensamento, lembra-se Foucault (1996, p. 39), ao recordar narrativas da cultura europeia, destacando que a comunicação, um dos elementos da narrativa, funciona como uma figura positiva, constituindo um ritual, em que os indivíduos “devem ocupar determinada posição”, posição esta que pressupõe gestos, comportamentos, ações que conduzem a determinadas práticas sociais. Foucault (1996, p. 43) ressalta que se pode falar em “sociedades de discurso” cuja função é “conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição.”

Uma das características marcantes da produção e distribuição dos discursos de autoajuda, se assim se pode dizer, é a luta pela assimilação de seus “conteúdos”, uma verdadeira conquista ideológica dos gurus desse segmento que tende a ser mais eficaz quanto mais os leitores forem capazes de elaborar e transpor as ideias disseminadas. Na visão de Gramsci (2004, p. 205), um princípio metodológico fundamental para “a elaboração nacional unitária de uma consciência coletiva homogênea requer múltiplas condições e iniciativas.” A difusão de um modo de pensar homogêneo, padrão visado pelo discurso de autoajuda, consiste em grande parte pela repetição das palavras. Esse discurso busca o engajamento dos trabalhadores numa perspectiva tridimensional: como texto, como uma prática social e como prática discursiva. (FAIRCLOUGH, 2001). Nesse sentido, todo discurso engaja o indivíduo em algum tipo de ação, daí Fairclough recorrer ao conceito de ideologia gramsciano.

O uso que se faz da linguagem determina como um conceito ou uma expressão pode ser transformado ou assimilado, produzindo um sentido compatível com aquilo que se deseja exprimir, ainda que o seu significado não seja necessariamente o transmitido. Tanto significado quanto sentido se efetivam, se transformam e se conservam pela linguagem. Sob este aspecto, lembra-se Gramsci (1984, p. 13), quando destaca que: “Se é verdade que toda linguagem contém elementos de uma concepção de mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem de cada um, é possível julgar da maior ou menor complexidade da sua concepção de mundo.” Concordando com a perspectiva gramsciana, vê-se que a autoajuda constitui-se em uma linguagem que contém e dissemina elementos de uma concepção de mundo. Seu interesse está em construir um novo senso comum, instituindo um novo modo de pensar, sentir e agir que se dá pela introdução de outras e novas palavras que entram no vocabulário da autoajuda de forma ressignificada.

Um exemplo ilustrativo dessa situação refere-se ao termo empregabilidade. Max Gehringer (2002) aponta como o conceito de empregabilidade pode transitar de uma significação – negativa – a outra – positiva – com a mesma facilidade. O conceito de empregabilidade

é basicamente otimista (‘O que eu preciso continuar a fazer para continuar empregado’), enquanto a descartabilidade sai pela tangente do pessimismo responsável (‘Como me preparo para

ficar desempregado’). E as duas evitam passar perto do pessimismo crônico (‘A vida é assim mesmo. A gente ganha pouco, mas se diverte’). (GEHRINGER, 2002, p. 116).

Na acepção de Fairclough (2001, p. 128):

À medida que uma tendência particular de mudança discursiva se estabelece e se torna solidificada em uma nova convenção emergente, o que é percebido pelos intérpretes, num primeiro momento, como textos estilisticamente contraditórios perde seu efeito de ‘colcha de retalhos’, passando a ser considerado como ‘inteiros’. Tal processo de naturalização é essencial para estabelecer novas hegemonias na esfera do discurso.

Sendo assim, analisa-se o discurso de autoajuda não apenas como aquele que difunde uma concepção de mundo e de homem, mas modos de ação no mundo, pautada em um conjunto de valores “pretensamente” universais e indispensáveis à nova gestão do trabalho em tempos de neoliberalismo, de forma a construir um ideal de trabalhador. Trata-se de um trabalhador de novo tipo contemplado no novo projeto de sociabilidade do capital para o século XXI em que é preciso “mudar para manter” (TURMINA, 2005).