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REFORMA INDIVIDUAL PARA O PROGRESSO SOCIAL: A DIFUSÃO DAS IDEIAS DE SMILES

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2.3 REFORMA INDIVIDUAL PARA O PROGRESSO SOCIAL: A DIFUSÃO DAS IDEIAS DE SMILES

No decorrer do século XIX em que viveu Smiles, cabia ao Estado liberal garantir os contratos privados da economia e a liberdade das relações de troca, mas jamais imiscuir-se nos assuntos do mercado, sob pena de arruinar sua estabilidade natural. A formação da empresa capitalista, do mercado e do Estado estaria, assim, harmoniosamente equilibrada. Como sabemos, a história e os críticos da economia política capitalista, como Marx, demonstraram ser esta uma imagem que não coincidia nem com a dura realidade social e, tampouco, com o próprio funcionamento da economia capitalista. Nessa perspectiva, Smiles (1893, p. 2) argumenta em Ajuda-te que,

tornar-se evidente que a ação do governo é mais negativa do que positiva e ativa, resumindo-se principalmente num sistema de proteção – proteção da vida, da liberdade e da propriedade. As leis, sendo bem formuladas, podem assegurar ao homem o gozo do fruto de seu trabalho do corpo ou do espírito à custa de um sacrifício pessoal comparativamente pequeno; mas nenhuma lei, por mais compulsiva que seja, pode dar ao preguiçoso a atividade, ao pródigo o espírito de economia ou ao beberão, a sobriedade. [...] tais reformas só podem ser efetuadas pela ação individual, a economia e a abnegação. [...] o

governo de uma nação é quase sempre o reflexo dos indivíduos que a compõem.

Smiles poderia ser visto como um idealista utópico ao considerar um ideal de homem que converteria vícios e más ações em boas virtudes pelo simples contato com exemplos de homens de bom caráter, reforçando a ideia de que o indivíduo possui aptidões e talentos próprios. Tal pensamento era favorável à acumulação capitalista, determinando um agir moral que difundia uma concepção de que a busca do interesse individual serviria ao interesse geral. Smiles reforça, nessa perspectiva, o individualismo, um dos pilares da doutrina liberal.

Nesse sentido, “o princípio básico do liberalismo é [...] resumido na expressão francesa de que o governo, em relação à iniciativa privada, deve laisser-faire, isto é, deixar fazer, ou melhor, ‘sair da frente e deixar a iniciativa privada agir.” (CHAVES, 2007, p. 9). Naquele contexto, um dos expoentes dessa doutrina, Adam Smith, acreditava que a busca de realização dos interesses individuais resultava em benefício para todos na sociedade. Da mesma forma, pensava Smiles (1893) ao propagar em suas publicações o pressuposto de que os homens possuem em potencial as virtudes intelectuais e que o progresso nacional é resultante da atividade, da energia e das virtudes de cada indivíduo, assim como a decadência nacional é a da preguiça, do egoísmo e dos vícios individuais.

Concordando com John Locke (1632-1704), um dos expoentes do liberalismo, Smiles afirmava que o progresso de uma nação será alcançado mediante o progresso de cada indivíduo. A liberdade, assim, pressupõe que o indivíduo possa atingir uma posição social elevada, o que se daria pelo desenvolvimento de suas potencialidades. Este seria o lócus no qual o Estado cumpriria seu papel: o de proporcionar um espaço para o indivíduo “melhorar a sua condição individual”. (SMILES, 1893, p. 3).

Sob tal ponto de vista, Smith (1983 apud Santana, 2007, p. 100) partia do pressuposto de que o homem, ao exercitar “as potencialidades de sua mente, é capaz de fazer comparações e combinações em quantidade sem fim que o possibilitem eliminar as dificuldades com que se depara no transcurso de sua existência.” Tanto em Smith quanto em Smiles fica presente a ideia de que é no exercício de desenvolvimento de suas potencialidades que o homem pode atingir os aspectos mais nobres

do caráter humano. É o exercício de suas atividades, no trabalho, que confere ao homem essa capacidade de aperfeiçoamento de seu caráter.

Muitos dos valores que Smiles procura construir estão relacionados ao pensamento que se firmava no século XIX, mas que já vinha sendo delineado no século XVIII. Dentre essas influências, pode- se destacar o papel da Escola Liberal Clássica35 no pensamento de Smiles. A menção a Adam Smith revela a existência de uma concordância de Smiles com o pensamento smithiano, que pode ser associado à seguinte passagem: “Ao buscar a satisfação de seu interesse particular, o indivíduo atende frequentemente ao interesse da sociedade de modo muito mais eficaz do que se pretendesse realmente defendê- lo.” (SMITH, s.d apud HUGON, 1967, p. 121).

Além da defesa de um ideal liberal em que o Estado não poderia fazer mais pelos seus membros do que eles mesmos fariam por si, Smiles aproxima-se do pensamento liberal clássico pelas características pacifistas e individuais com que este pensamento estaria organizado. Como diz Hugon (1967, p. 121), “Smith, tal como os fisiocratas, confiava no interesse privado como meio de assegurar ao homem o progresso geral da riqueza e é também otimista quanto aos resultados desta ação individual.” Desta forma, as bases do liberalismo econômico estariam assentadas na busca do interesse individual, o que coincidiria com o interesse geral de uma nação.

Contemporâneo de Smiles, John Stuart Mill (1806-1873) deu continuidade à tradição clássica liberal36. De acordo com Hugon (1967, p. 154), Mill “propõe, igualmente, o desenvolvimento de cooperativas de produção, inspirando-se em Owen. A medida satisfaz ao seu penhor individualista: a propriedade privada é respeitada e mesmo fomentada, pois a cooperação transforma a classe obreira em capitalista.” Ainda, “as

35 Smiles faz referência, em suas publicações, a escritores como Adam Smith, David Ricardo,

John Stuart Mill, que formaram a Escola Clássica Inglesa.

36 Hunt e Sherman (1977, p. 56) enfatizam que “a visão de mundo subjacente ao liberalismo

clássico tornou-se a ideologia dominante do capitalismo.” O intelecto humano é valorizado, e “é a razão que dita a necessidade de avaliar todas as alternativas que determinada situação coloca para que a escolha recaia sobre a que oferece o máximo de prazer e o mínimo de dor.” O homem racional é movido pela ambição, o que propicia as bases políticas e intelectuais para o desenvolvimento fabril, afirmam os autores. Segundo eles, as ideias do liberalismo econômico desenvolveram-se buscando os postulados dos grandes economistas do final do século XVIII, principalmente Adam Smith, David Ricardo, Jean Batista Say e John Stuart Mill. De outro lado, surgiram as reações de cunho socialista, que atingem o ponto máximo com a publicação do Manifesto Comunista de Marx e Engels em 1848.

distinções de classe serão suprimidas, restando apenas as distinções devidas aos méritos pessoais.” (HUGON, 1967, p. 154). A referência a Stuart Mill nos escritos de Smiles é frequente, visto que este partilha das idéias liberais reafirmadas por aquele. Tanto que várias são as passagens de Mill reproduzidas por Smiles (1893, p. 1) em Ajuda-te: “O valor de um Estado é, em suma, o valor dos indivíduos que o compõem.” É a manifestação do empenho interior que fortalece uma nação. A posição de Smiles em relação ao papel do Estado no desenvolvimento da vida de um trabalhador aproxima-se mais das ideias de Owen do que das de Stuart Mill. Assim como Smiles, Mill tinha grande simpatia pelas ideias socialistas, mas o seu objetivo era promover a reforma do capitalismo. Para Smiles (1893, p. 1), “sempre que os homens estão sujeitos a um excesso de proteção ou de governo, tal sistema tende inevitavelmente a reduzi-los a um estado de impotência relativa.” Assim, “as melhores instituições não podem mesmo prestar ao homem um auxílio eficaz. O mais que alcança é deixá-lo livre para se desenvolver e para melhorar a sua condição individual” (SMILES, 1893, p. 2). E continua: “A carreira industrial adotada pela nação tem sido também o seu meio mais poderoso de educação constante ao trabalho, sendo o melhor exercício para cada indivíduo em particular, é também a melhor disciplina para o Estado.” (SMILES, 1893, p. 32).

A doutrina liberal preconiza indivíduos autônomos, independentes e autodeterminados, que desenvolvem a capacidade de ajudar-se. Do mesmo modo que Adam Smith, Smiles argumentou em favor da ação individual como aquela que seria traduzida em interesses de um coletivo: naquele caso, a nação. Em Smith, a liberdade de mercado é considerada poderosa para impulsionar e melhorar a condição humana, tanto assim que destaca:

O esforço natural de cada indivíduo para melhorar sua própria condição, quando se permite exercê-la com liberdade e segurança, é, a princípio, tão poderoso que ele, sozinho, e sem nenhum auxílio, não somente é capaz de conduzir a sociedade à riqueza e à prosperidade, mas de superar uma centena de obstáculos inoportunos, colocados muito freqüentemente pela loucura das leis humanas para dificultar suas ações; embora a conseqüência desses obstáculos seja sempre mais ou menos a usurpação de sua liberdade ou a

diminuição de sua segurança. (SMITH, 1937, p. 508).

Smiles, desta maneira, levava aos trabalhadores de Leeds, Inglaterra, o axioma fundamental de que cada indivíduo agindo em interesse próprio, somado às ações de uma coletividade de indivíduos, maximizaria o bem-estar coletivo. Reforçando tal perspectiva, o publicista escocês argumenta:

[...] o fato de ter uma milionésima parte na constituição da legislação do país, votando em favor de dois ou três concidadãos a intervalos de três ou cinco anos, não pode exercer, por mais conscienciosamente que se cumpra este dever, senão influência mínima na vida e no caráter de um homem. Além disso, torna-se cada dia mais evidente que a ação do governo é mais negativa e restritiva do que positiva e ativa, resumindo-se principalmente num sistema de proteção – proteção da vida, da liberdade e da propriedade. (SMILES, 1893, p. 2).

Perante as dificuldades, Smiles parece assumir uma postura que aponta o homem como aquele capaz de vencer as suas próprias batalhas. “A vida”, recorda Smiles, “é, também, batalha de soldados”. (SMILES, 1893, p. 6), em que os homens precisam ser batalhadores, perseverantes, pois, na sua opinião, é desta forma que ocorre o progresso de uma civilização.

Popkewitz (1998, p. 149) destaca que as sociedades liberais do século XIX “estabeleceram uma nova relação entre o governo da sociedade e o governo, ou controle, do indivíduo.” Lembra o autor que as doutrinas constitucionais do século XIX acerca da “liberdade, dos direitos e da lei impuseram limites sobre as atividades do Estado baseavam-se na pressuposição da existência de indivíduos que agiam com responsabilidade pessoal para governar sua própria conduta.” (POPKEWITZ, 1998, p. 149).

É o que propagava Smiles (1893, p. 3) quando afirmava, que “a maneira pela qual um homem é governado pode não ter grande importância, enquanto que tudo depende da forma por que ele se governa a si próprio.” As ideias que Smiles difundia sobre o autogoverno estão inspiradas em Emerson (1804-1882), filósofo

americano que salientava: “O auxílio que temos dos outros é mecânico, em comparação com as descobertas da natureza em nós.”(EMERSON, 1996, p. 14).

Cabe lembrar que, no século XIX, as ações sociais, em sua maioria, eram vistas como “práticas invasoras do espaço da individualidade” (CUNHA, 2001, p. 35), significando dizer, na perspectiva das ideias de Adam Smith, que “a atividade dos indivíduos, libertos tanto quanto possível de restrições políticas, é a principal fonte do bem-estar social e a fonte última do progresso social.” (DEWEY, 1970, p. 20).

A adesão a esse pensamento embasou a construção do discurso de autoajuda de Smiles no período vitoriano, disseminando modos de ação, práticas individuais condizentes ao estilo de vida favorável à ordem capitalista. Na medida em que se reforça o espírito de autoajuda como motivo de ações, reforçam também o valor dos modelos de conduta e os meios de transmissão de valores e educação, incitando práticas calcadas na moral, dever e força do caráter como argumentos centrais de constituição de um novo tipo de trabalhador em tempos de desenvolvimento industrial. Dessa forma, se pode interpretar a pregação da autoajuda como um processo que visa disseminar concepções de mundo, de Estado, de educação e de trabalhador fundamentais para a construção e manutenção da hegemonia capitalista.

2.4 CONHECENDO A OBRA AJUDA-TE: A GÊNESE DA