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2.7 “NÃO SOMOS SENÃO AQUILO QUE NÓS FAZEMOS”: A EDUCAÇÃO FORMAL EM SMILES

57 Marx (1968, p 501), referindo-se a Ure como um apóstolo do capital, destaca que “embora

3.2 QUALIFICAÇÃO E CONTROLE DO TRABALHADOR

Na acepção de Harvey (1992, p. 119), produção de mercadorias em “condição de trabalho assalariado põe boa parte do conhecimento, das decisões técnicas, bem como do aparelho disciplinar, fora do controle da pessoa que de fato faz o trabalho”. A familiarização com o trabalho na fábrica nas primeiras décadas do século XX elevou a responsabilidade individual de cada trabalhador e com este, a

necessidade de controle sobre as ações de cada um no espaço de trabalho. Nesse aspecto, é interessante observar o que dizia Ford (1954, p. 78) em seu livro Minha obra e minha vida66, no qual o industrial destaca:

Queremos sim, completa responsabilidade individual. O operário responde pelo seu trabalho; o mestre responde pelos homens sob seu comando; o contramestre responde pelo seu grupo; o chefe de seção responde pelo seu departamento e o inspetor geral responde por toda a fábrica. Cada um deles deve saber o que se passa no seu raio de ação.

Ford explica porque esse controle é um procedimento que não é construído ao acaso. “Um grupo de homens que quer firmemente que um trabalho se faça não encontra dificuldades na gerência de sua execução.” (FORD, 1954, p. 78). Em sua concepção, “o trabalho, única e exclusivamente, tem a voz de comando entre nós. Este é um dos motivos porque prescindimos de títulos.” (FORD, 1954, p. 79). A dedicação ao trabalho explicaria a aceitação dos trabalhadores dos diversos cargos de controle por entender que ação dá valor ao salário de cada um, ou seja, “o único objetivo deve ser entregar o trabalho feito e receber a paga.” (FORD, 1954, p. 78).

No tocante aos níveis hierárquicos de controle na fábrica, a devoção ao trabalho com vistas ao salário garantiria o respeito dos trabalhadores às chefias de controle, por outro lado, Ford, enfatizava que isso nem sempre era tão tranqüilo, por isso a ascensão profissional nas fábricas é construída pelo trabalhador. “O homem de maior capacidade de trabalho [...] é o que vence.” (FORD, 1954, p. 45). Foi dessa maneira, de acordo com o industrial, que

nosso pessoal chegou às suas posições. O gerente da fábrica começou como maquinista. O diretor da grande fábrica de River Rounge começou como modelador. O chefe de uma das nossas seções mais importantes entrou como varredor. Não há na empresa um homem que não tenha vindo da

66 Minha obra e minha vida, com tradução e prefácio de Monteiro Lobato, faz parte de um

compêndio publicado como Os princípios da prosperidade (1954) que contém, além da obra citada, outros dois livros de Henry Ford: Hoje e amanhã e Minha Filosofia da indústria.

rua. Tudo o que temos realizado vem de homens que se fizeram em nossa fábrica, impondo-se unicamente pela sua capacidade. (FORD, 1954, p. 81).

O engajamento dos homens, nessas décadas, conforme aponta Ford, dispensava titulações. “Nossa seção de contratos não rejeita ninguém por motivo dos seus antecedentes. Venha da universidade de Harvard ou da penitenciária de Sing-Sing, ninguém lhe pedirá diplomas” (FORD, 1954, p. 80). A desconsideração pelo saber escolar passa pela aplicação direta ao processo de trabalho, o que Ford questionava. Já na primeira década do século XX, Ford comentava sobre suas concepções de trabalho e de educação ao questionar o ensino técnico. Para ele:

A escola industrial não deve ser um compromisso entre a escola superior e a primária, mas um lugar onde se ensine às crianças a arte de ser produtivo. Se os alunos são postos a fazer coisas sem utilidades, a fazê-las para depois desfazê-las, não podem sentir interesse pelo ensino. E durante o curso fica improdutivo; as escolas, a não ser por caridade, não conseguem assegurar a subsistência dos alunos. (FORD, 1954, p. 280).

Tendo como base os pressupostos citados anteriormente, foi fundada, em 1916, a Escola Industrial Ford cujo processo de trabalho constituía o núcleo de aprendizagem em que o desempenho na produção representava que a própria fábrica constituía a melhor fonte de conhecimento. Aos olhos do industrial,

[...] a fábrica oferece mais recursos para a educação prática do que a maioria das universidades. As lições de cálculo são dadas nos problemas concretos de fabricação. [...] a escola dispõe de uma oficina montada. Os rapazes vão passando de uma máquina para outra. Trabalham apenas em artigos de que a nossa companhia se utiliza; mas as nossas necessidades são tão grandes que a lista compreende quase tudo o que existe. O produto do trabalho escolar, depois de examinado, é adquirido pela Ford Motor

Company; o que não resiste ao exame é lançado à conta de perdas da escola. (FORD, 1954, p. 284). O ideal de escolarização defendido por Ford revela a ênfase na formação no interior da fábrica, ou seja, no setor produtivo que levava, além da eficiência relativa, aos aspectos práticos a importância para o capital da criação de uma relação de dependência entre os donos dos meios de produção e os trabalhadores que destes dependem para prover sua subsistência.

Ford desqualificava a escola como um espaço de apropriação de conhecimentos porque não proporcionava resultados práticos. Tanto assim, que Monteiro Lobato, no Prefácio de Os princípios da prosperidade, obra que condensa uma série de publicações de Ford (1954), ao falar do industrial, destaca:

Nasceu mecânico e jamais trocou o estudo direto das coisas pelo estudo falaz dos livros. Educou-se a si mesmo e vem disso grande parte de sua vitória. Quem entope a mioleira com a vida morta dos livros torna-se inábil para bem compreender a vida viva das coisas humanas. Olhava com seus olhos, pensava com seu cérebro, fazia com as mãos.

A ideia do aprender fazendo, aprender trabalhando não é nova. Em 1868, o diretor da Escola Técnica Imperial de Estradas de Ferro de Moscou, Vitor Della-Vos, “quis obter um tipo de operário treinando em grau mais elevado, mais uniforme, em menor espaço de tempo e por preços mais baixos. Concluiu que não conseguiu isso pelos métodos de aprendizado usados nas oficinas de produção ligados à escola.” (BENNET, 1944 apud FRIGOTTO, 1983). Tal concepção inspirou, como já frisada anteriormente, os estudos de tempos e movimentos de Taylor maximizados no fordismo. O processo de aprendizagem de Della-Vos consistiu então na criação de “oficinas de instrução” onde um mecânico perito – professor – iniciava

o curso dando uma aula demonstração sobre o primeiro exercício da série e fazia com que os alunos executassem o trabalho ensinado. [...] No momento próprio fazia a segunda demonstração, e depois a terceira e assim por diante até completar

o primeiro período do curso no qual o aluno aprendia a usar todas as ferramentas. No segundo período eram ensinados elementos de montagem em trabalhos de madeira. [...] durante o terceiro período o aluno prepara ele próprio seus planos e o professor [mecânico perito] passava a agir como superintendente. O objetivo era fazer com que cada estudante desenvolvesse a capacidade de iniciativas e seu poder de assumir responsabilidades. (BENNET, 1944 apud FRIGOTTO, 1983, p. 41).

O próprio Ford, narrando o desenvolvimento da Ford Motor Company, destaca sua experiência como exemplo de aprendizagem. Esse costume de fazer “uma resenha completa das experiências infelizes, sobretudo das bem feitas, impede que os espíritos moços.” (FORD, 1954, p. 67) sigam o mesmo caminho. Como viu-se também, essa era a concepção difundida por Smiles ao utilizar as biografias como estratégia na educação de jovens trabalhadores. Ao estender-se a concepção de espaços educativos para além dos formais, a prática no trabalho é situada como espaço privilegiado de educação. Também nesse sentido, para Ford (1954, p. 79), “o trabalho, única e exclusivamente, tem voz de comando entre nós. Este é um dos motivos porque prescindimos dos títulos. [...] os títulos produzem efeitos bizarros.”

Nesse sentido, o industrial dizia que “nenhuma escola poderá ensinar o que vai suceder no ano seguinte”, visto que “instruir-se não é absorver as teorias de um bando de professores.” (FORD, 1954, p. 186). Na mesma perspectiva de Smiles, Ford acreditava que é “a vida que nos educa”. É um erro pensar que a universidade proporcionaria ensinamentos úteis à prática do trabalho, sendo que “a educação real de um homem começa depois que ele deixa a escola.” (FORD, 1954, 186- 187).

Em realce a essa concepção de educação, Ford (1954, p. 419) acrescenta que os “inventores, por exemplo, não são um produto de escolas; mas se a escola os livra de incidir em erros passados, haverá grande economia de precioso tempo” considerando os princípios da produtividade e eficiência.

Ao valorizar o trabalho e não o diploma, Ford buscava o engajamento dos homens. Configura-se aí um dos mecanismos de

controle do trabalhador, uma vez que “graças ao sistema de seleção da nossa fábrica, estou certo que cada homem acaba por colocar-se no seu lugar.” (FORD, 1954, p. 81). Mas para que isso funcione,

uma disciplina severa rege a fábrica [...] exigimos que os operários executem o que lhes ordena. Nossa organização é tão especializada e tão intimamente se relacionam as partes, que nem por um momento poderíamos deixar ao operário liberdade de ação. Sem disciplina severa haveria uma confusão espantosa [...] é preciso que os homens realizem um máximo de trabalho para terem um máximo de salário. (FORD, 1954, p. 92).

Em busca de produtividade, a aplicação de normas no aperfeiçoamento da linha de montagem consistiu em trazer o trabalho ao operário ao invés de levar o operário ao trabalho, o que, segundo o industrial, resultaria na “economia de pensamento e na redução ao mínimo dos movimentos do operário, que, sendo possível, deve fazer sempre uma só coisa com um só movimento.” (FORD, 1954, p. 70).

Confirmando o que dissera Marx com relação à manipulação da jornada de trabalho, Ford reduziu o dia de trabalho a oito horas, elevando o valor da hora/homem, impondo uma intensificação do ritmo da produção, aumentando, com isto, a produtividade a níveis antes desconhecidos. (GURGEL, 2003). Recorda-se Gramsci (2004) em sua análise a respeito do modelo fordista entendido para além dos limites da produção e da distribuição, mas exercendo grande influência também no modo de vida americano. Mas esse modo de vida também encontra seus limites e entra em crise. “Não era a crise de uma forma de organizar a sociedade, mas de todas as formas.” (HOBSBAWM, 1995, p. 20). Nessa perspectiva, basta considerar, de acordo com Harvey (1992, p. 118), “todo o complexo de forças implicadas na proliferação da produção, da propriedade e do uso de massa do automóvel para reconhecer a vasta gama de significados sociais, psicológicos, políticos, bem como mais propriamente econômicos.”

3.3 “NÃO CRITIQUE, NÃO CONDENE, NÃO SE QUEIXE”: