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A Residência em Medicina Geral Comunitária do Hospital Monsenhor Horta em Mariana/MG está relacionada a um processo que se inicia na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais – FM/UFMG, em fins da década de 60 por ocasião da proposta de mudança curricular.

Até então, o curso da FM/UFMG era baseado na diretriz flexneriana, trazida para o Brasil na década de 50 pela Fundação Rockefeller através de financiamento “[...] nas três principais faculdades das três maiores capitais brasileiras: São Paulo, Rio e Belo Horizonte”, na expectativa de que estes “[...] três currículos modelares logo influenciassem todas as faculdades do país. Mas, por causa do anacronismo da importação do modelo, a diretriz flexneriana logo, em menos de uma década, teve de sofrer modificações de graus variáveis” (SALGADO, 2007, p. 3).

O curso de medicina da Faculdade de Medicina da UFMG tinha duração de 5 anos, modelo mantido por 10 anos de 1968 a 1977. O curso foi estruturado, em um módulo de Ciências Básicas que era no Instituto de Ciências Biológicas/ICB, com duração de dois anos, onde se começava estudando as células, depois os órgãos, os tecidos, e assim por diante. Depois se estudava Farmacologia Básica. No terceiro ano o aluno ia para curso de Medicina propriamente dito, que era dividido em cadeiras: Cardiologia, Gastroenterologia, Epidemiologia, etc., todo fragmentado.

Em 1974 ocorre um seminário na Faculdade de Medicina da UFMG patrocinado pela Organização Pan-Americana de Saúde, para discutir o avanço da Medicina, da Saúde Pública, onde muitas pessoas mais ligadas à saúde pública questionam aquele modelo de ensino e fazem uma proposta de mudança.

Salgado (2007, p. 3) refere que com a frustração do modelo flexneriano, os EUA “[...] passaram a exportar outras diretrizes [...]” desta vez, agora, através da “[...] Fundação Kellogg e, depois, do Banco Mundial (motor da privatização), acrescida do uso lamentável da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) como subagências auxiliares”.

Essa Semana de Estudos sobre Saúde da Comunitária (1ª SESAC), que aconteceu em Belo Horizonte, coincide com a reforma do ensino médico da UFMG, com o início do internato rural e ela é precursora na formação desse grupo de estudos médicos que atua junto às entidades médicas e participa da reforma da saúde. Esta SESAC foi muito rica, contando com expoentes da área de saúde pública de vários estados.

Tinha o pessoal de Brasília, tinha o Gastão Wagner51, tinha o Sérgio Arouca52 que centralizava isso, que era uma grande figura nesse período, participando dessa primeira semana. Foi um evento nacional. Vieram pessoas de São Paulo, do Paraná, do nordeste (ML53).

Nessa época, estudantes e representantes de estudantes junto à Congregação participaram desse seminário no qual se discutiu a reforma curricular do Curso de Medicina com vista à introdução do estágio extra-muros, como era chamada a saída da faculdade para as alternativas de estágio em saúde pública, saúde da comunidade - a medicina da comunidade, como era chamada. Depois ocorre uma discussão, uma controvérsia com esse nome.

Neste seminário, muitos alunos do Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina (que já contava com a participação de várias pessoas que hoje são expoentes na saúde pública), iniciam uma discussão de como modificar aquele perfil de médico acadêmico e aquele perfil do ensino todo formatado por departamentos e então buscar a formação extra- muros. A universidade faz essa reforma.

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Gastão Wagner de Sousa Campos é médico, professor titular de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Exerceu a chefia do Depto de Medicina Preventiva e Social da FCM/Unicamp de 1996 a 2000 e de 2005 a 2009. Foi secretário de saúde de Campinas de 1989 a 1990 e de 2001 a 2003. Foi também secretário executivo do Ministério da Saúde (2003-2005).

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Antônio Sérgio da Silva Arouca (1941: Ribeirão Preto, SP — 2003: Rio de Janeiro, RJ). Médico sanitarista e político, consultor da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), professor da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz, assessorou o desenvolvimento do sistema de saúde cubano, chefe do Departamento de Planejamento da ENSP, presidente da Fiocruz. Militante do PCB, foi deputado federal por 8 anos, secretário de saúde do município do Rio de Janeiro/RJ.

[...] o João Amilcar54, era o pai do currículo de seis anos. A escola passou de cinco para seis anos com o discurso de ser terminal, na formação /// O cara já saísse com alguma formação para pegar algum serviço. Havia até uma idéia da equipe ideal: [...] cirurgião era obstetra também, o pediatra anestesista, o clínico poderia ser um auxiliar do cirurgião. Um pequeno número de pessoas poderia resolver as grandes questões de saúde. [...] O João Amilcar tinha todo aquele discurso de medicina integral, o futuro era o generalista, o curso de seis anos foi todo montado em cima do médico generalista [...] (JT55).

Neste período, forma-se uma turma da Faculdade de Medicina da UFMG que vai para o Vale do Jequitinhonha, para Diretoria Regional de Saúde de Diamantina, cujo diretor era o Francisco de Assis Machado, o Chicão56, e

[...] experimentam, eram estudantes de medicina, eu fiz parte desse grupo, e nós fomos fazer uma experiência da saúde da comunidade alí, de saúde comunitária. Era atuar prestando algum nível de assistência e tentando fazer educação para a saúde. Dentro de uma visão mais crítica e tudo [...] (ML).

Existiam outras experiências no Brasil, algumas bem mais antigas

[...] o próprio Chicão que já tinha todo um trabalho no nordeste, [...] era um sonho que eles já tinham de muito tempo antes. [...] Ele é um militante do Partidão [PCB] e mais tempo ele já tinha essa idéia de formar um grupo e irem para interior, acho que eles chegaram a ir para Três Marias/MG. Uns 10 anos antes, quer dizer isso já é quase uma gestação, era uma repetição de várias idéias. Uma história construída a muitas mãos e cabeças (ML).

54 João Amílcar Salgado (1937: Nepomuceno, MG), médico, filósofo, historiador da medicina brasileira,

professor titular da UFMG.

55 JT: médico, clinico, ex-preceptor da residência de Mariana. 56

Francisco de Assis Machado, médico, professor e pesquisador da UFMG, diretor da Regional da Secretaria do Estado de Saúde no Vale do Jequitinhonha/MG, da Regional da SES de Montes Claros/MG e da SES da Região Metropolitana de Belo Horizonte; implantou o primeiro Projeto das Ações Integradas de Saúde em Minas Gerais, coordenou a Secretaria Técnica do Programa de Interiorização de Ações de Saúde e de Saneamento – PIASS, para a Região da SUDENE; presidiu o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde/ CEBES na gestão 1984/85; consultor e assessor da Organização Pan-Americana de Saúde e Ministério da Saúde.

Nesta época havia uma discussão, que na I SESAC foi levantada por Juan César García57 da Organização Pan-Americana de Saúde - OPAS58, no sentido de afirmar que a Medicina Comunitária era medicina de pobre, que era a medicina chinesa dos médicos dos pés descalços. A Medicina Comunitária seria uma forma de baratear o custo da atenção porque havia um exército de mão de obra que não tinha acesso aos serviços de saúde. Então, seriam profissionais mal formados para atender a esses desfavorecidos e acalmar, diminuir a tensão social - isso atendia ao interesse do regime militar. Essa crítica existia, mas era contestada por um grupo que propunha outra concepção para a Medicina Comunitária:

[...] não, pelo contrário, seremos bem formados, era essa a idéia do Célio59, de formar bem formado e criou esse espaço de educadores de saúde, de promoção de saúde. Não chamava assim na época, mas era isso. E buscar, tirar tudo que pudesse da tecnologia para adequar àquelas realidades. Essa discussão existia sim, e de fato a origem disso daí era, eu acredito que tinha essa visão americana, uma proposta acrítica. Mas tinha essa mais avançada, essa transposição, era uma proposta crítica, que se fazia com participação popular, discutindo na própria comunidade (ML).

A medicina pública era um negócio muito mal visto, era muito de baixa qualidade, então a idéia era mudar, mudar com qualidade. Fazer uma medicina para as necessidades básica da população, mas de boa qualidade. Essa que era a idéia (JT).

Salgado (2007) refere que à época, era a Secretaria do Estado da Saúde que exercia o papel que hoje é desenvolvido pelas secretarias municipais de saúde. Os profissionais que se formaram no início da década de 70, que possuíam esse cunho social muito forte, foram trabalhar em saúde pública. Uma boa parte destes foi para Manguinhos, e trouxeram esse

57 Juan César García, (1932: Necochea, Argentina – 1984: Washington, EUA). Médico, sociólogo, pioneiro

das Ciências Sociais em Saúde na América Latina.

58 “Na própria Organização Pan-Americana de Saúde, passou a projetar-se cada vez mais a linha independente

e original de Juan César García, um argentino que discordava dos paradigmas de exportação, sendo defensor de inovações nascidas das realidades regionais de saúde” (SALGADO, 2007, p. 3)

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Célio de Castro (1932: Carmópolis de Minas, MG – 2008: Belo Horizonte, MG). Médico, professor universitário e político. Dois mandatos de prefeito de BH e dois de deputado federal.

debate para dentro da Secretaria de Saúde que se organizava por regionais de saúde, ampliando os espaços de trabalho. Estes espaços foram importantes, por exemplo, para os internatos da Faculdade de Medicina, que utilizava as estruturas da Secretaria de Estado, no noroeste e norte de Minas Gerais. Havia uma estreita relação entre a Secretaria de Estado de Saúde e a Escola de Medicina, através de seu diretor à época, Philadelphus60, além de outros membros desse grupo que exerciam funções de direção junto à Secretaria de Estado.

Nesta época, cria-se a revista do CEBES - Centro Brasileiro de Estudos em Saúde, e ocorrem muitas discussões e encontros como o Encontro do Estudante de Medicina do Pará, e iniciam-se as discussões sobre os diversos programas, como o da UNB, que realizava uma experiência de Medicina Rural; em Minas, a experiência no Vale do Jequitinhonha e em Montes Claros, na montagem da secretaria de saúde que, aliás, possibilitava um grande espaço para essas experiências61.

A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) institui o Internato Rural, oficializando-se a mudança do currículo do curso médico. A partir de 1973, as turmas que entram na Faculdade para o curso de seis anos, fazem o internato rural, inicialmente na regional de saúde de Montes Claros e de Diamantina, nos municípios de Montes Claros, Diamantina, Capelinha, Coração de Jesus, Januária.

Em Belo Horizonte, médicos que trabalhavam no Hospital João XXIII convidam Célio de Castro, referência de médico clínico, bem formado e político, e organizam um grupo de estudos médicos. Célio de Castro era um clínico que discutia a mudança do paradigma da medicina, de modificar aquela medicina segmentar e ter uma visão mais ampla.

Nesse meio campo aí, vários de nós já havia se formado e continuava a discussão de saúde pública, de questionamentos. Na realidade, era até um modo de você fazer um contraponto ao regime militar, aos espaços de discussão centrava tudo por ali (ML).

60 Benedictus Philadelpho de Siqueira, médico, professor emérito da Faculdade de Medicina da UFMG,

primeiro presidente da ABRASCO (1981-1983), primeiro coordenador do Nescon (1983-1985).

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Nesta época, Chicão que havia iniciado a experiência do Vale do Jequitinhonha era o diretor da regional de saúde de Montes Claros.

Nessa época, a única residência médica oficialmente estruturada em Belo Horizonte era a do Hospital das Clínicas da UFMG. As residências do Hospital Felício Roxo, da Santa Casa e do Hospital Geral Semper eram extra-oficiais, mas formavam residentes. O Célio de Castro então propõe ampliar a residência do Hospital Semper que fazia estágio de urgência no João XXIII, para Ouro Preto/Mariana e para João Monlevade.