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Capítulo 1 – Economia Solidária: Contextos e Percursos

1.2. A economia solidária no Brasil

1.2.1. Primeiras experiências

A expressão economia solidária só vai ser utilizada, no Brasil, a partir dos anos de 1990. Mesmo assim, considero importante traçar um breve panorama sobre as primeiras experiências associativas que tiveram como base o cooperativismo. Apesar de essas experiências terem como referência inicial as idéias dos pioneiros de Rochdale, suas práticas foram revelando uma proximidade maior com as formas de atuação das empresas capitalistas do que mesmo com os princípios de autogestão pensados por alguns precursores. Entretanto, convém cautela no sentido de não generalizar para todas as experiências essa afirmação, tendo em vista, principalmente, a diversidade do Brasil e suas peculiaridades. Nesse sentido, ainda que o cooperativismo brasileiro, de forma geral, tenha caminhado para uma prática que não tinha com base uma gestão democrática e participativa, considero importante conhecer os seus antecedentes, inclusive para a reflexão e formas de atuação das iniciativas produtivas que hoje se denominam economia solidária.

No seu início, o cooperativismo, no Brasil, conta com a contribuição de imigrantes europeus, principalmente, no sul do país, com a ação dos Jesuítas,19 dos movimentos messiânicos sebastianistas, de origem portuguesa, que tinham conteúdo do cooperativismo comunitário integral. Somam-se também as experiências de ajuda mútua que, posteriormente, em alguns casos, transformaram-se em sindicatos.

Enquanto na Europa o cooperativismo nasce, no início do século XIX, como reação aos princípios do liberalismo econômico, no nosso caso, com uma indústria ainda incipiente, o cooperativismo vai percorrer uma história diferente. No Brasil, as cooperativas de consumo foram organizadas, em sua maioria, por patrões, e as agrícolas, predominantes no início, pelo Ministério da Agricultura, enquanto instrumento de política econômica estatal, com o objetivo de estimular a produção, justificando a intervenção do Estado na economia em favor das classes menos favorecidas. Outras foram constituídas por fazendeiros e usineiros ricos para facilitar a sua própria produção. Esse estímulo à atividade cooperativa, por parte do Estado, tinha como propósito auxiliar na crise econômica por que estava passando, oriunda do setor cafeeiro e que já vinha se processando, desde a República Velha.

A esse respeito Rios (1989) diz que:

(...) no Brasil, o cooperativismo surge como uma promoção das elites (econômicas e políticas) numa economia predominantemente agro-exportadora. Não se trata, pois, de um movimento vindo de baixo, mas imposto de cima. Não é um caso, pois, de um movimento social de conquista, mas de uma política de controle social e de intervenção estatal. Não ocorreu a criação de uma fórmula associativa, mas apenas sua importação e adequação aos interesses das elites políticas e agrárias (RIOS, 1989, p.24).

No Brasil, diferentemente da experiência de Rochdale, que esteve vinculada muito mais à atividade urbana em ramos de atividades ligadas ao consumo e produção, houve uma maior proliferação do cooperativismo no campo, cuja prática não teve como propósito questionar a estrutura agrária das regiões.

19 Em 1902, surgem, no Rio Grande do Sul, as primeiras caixas rurais que tinham como referência as experiências desenvolvidas por Raiffeisen. A primeira dessas caixas foi organizada em Nova Petrópolis e o seu organizador foi o padre suíço Teodoro Amstad.

A partir de 1930, verificou-se a ampliação do número de cooperativas no país. Foi nesta década que se estabeleceu uma legislação mais completa20 sobre as cooperativas por meio do Decreto 22.239 de 1932, tendo como base os princípios rochdaleanos e o caráter intervencionista do governo Vargas.

Em 1944, aconteceu o primeiro Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em São Paulo, quando se comemorou o centenário da experiência dos pioneiros de Rochdale. Nesse Congresso, foi visível toda orientação teórica para a organização do cooperativismo no Brasil, que tinha como base os princípios de Rochdale, reorientados para atender aos interesses dos grandes capitalistas. A partir de meados da década de 1940, o governo passou a oferecer vários incentivos materiais e fiscais às cooperativas e, em 1951, foi criado o Banco Nacional de Crédito Cooperativo (BNCC), extinto no governo Collor. A partir de 1966, o cooperativismo perdeu muitos incentivos fiscais (cobrança de alguns impostos que, anteriormente, não eram efetuados), estabeleceram-se limites nas operações de crédito aos associados, impostos pelo Banco Central, e de liberdades já conquistadas, levando ao fechamento de muitas cooperativas. Diferente do que ocorreu no período de 1930 a 1964, a partir de 1965, o número de cooperativas agrícolas, praticamente, permaneceu o mesmo. Segundo os estudiosos do tema, essas mudanças estão diretamente relacionadas com o conjunto de transformações ocorridas no processo de acumulação do capital pelas quais passou o Brasil com reflexos no desenvolvimento agrícola e, em conseqüência, nas cooperativas. Com isso, constata-se um fortalecimento das empresas industriais mais avançadas, com subsídios importantes para seu desenvolvimento (linhas de crédito a juros subsidiados, isenções tributárias etc.), participação massiva do capital estrangeiro e a contenção dos preços dos produtos agrícolas com o desestímulo do aumento de sua produção. Ainda no ano de 1966, com o Decreto-Lei 59, de 21/11, foi criado o Conselho Nacional de Cooperativismo por meio do qual se definiu um controle excessivo do governo sobre o movimento cooperativista21.

20 Anteriormente teve-se o prenúncio de uma legislação, com os Decretos 979 de 6 de janeiro de 1903 e 1.637 de 5 de janeiro de 1907.

21 Em 1967, o Decreto 60.597 regulamenta a Lei 59 de 21/11/66, atribuindo a fiscalização das cooperativas de crédito ao Banco Central do Brasil; as de habitação ao Banco Nacional de Habitação e as demais cooperativas ao Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário – INDA.

No governo Médici, foi criada a Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB22 (1969), com a finalidade de ser o órgão nacional de representação das cooperativas, no Brasil. Em 1968, acontece, em Porto Alegre, o III Congresso Brasileiro de Cooperativismo.

A década de 1970 foi considerada o período em que se tem uma grande preocupação com o amparo e renovação da legislação cooperativa e os instrumentos jurídicos necessários para o seu funcionamento. A legislação criada no governo Vargas foi reforçada pelo autoritarismo do regime militar no governo Médici, com o Decreto-Lei 5.764 de dezembro de 1971, regulando até hoje o funcionamento do cooperativismo no Brasil, já que o propósito, por parte do Estado, era atrelar e controlar a atividade cooperativa. A Constituição de 1988 avançou no sentido de fornecer uma maior liberdade na criação das cooperativas, apesar da necessidade de Leis complementares para regularização da questão, até hoje sem aprovação.

A partir da década de 1980, com a multiplicação de outras práticas produtivas solidárias, algumas questões se apresentavam. Por um lado, o cooperativismo, ligado à OCB, começava a se preocupar com o impulso associativista que estava se desenvolvendo no país, vinculado a pequenos negócios com atuação no setor informal, ocupando, muitas vezes, espaços das cooperativas. Por outro, a preocupação é também no sentido de garantir e ampliar o seu espaço no cenário nacional e garantir a independência com relação ao controle estatal23. Esse movimento associativo com que se preocupava a OCB começava a mostrar sua expressão também em outros segmentos da sociedade brasileira.

Esses órgãos podiam intervir nas cooperativas para resguardar a lei e defender o interesse coletivo.

22 A Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB foi criada em 1969, fruto da junção da UNASCO – União Nacional das Associações Cooperativas e da ABCOOP – Associação Brasileira de Cooperativas. Nesse mesmo ano de criação da OCB, aconteceu o IV Congresso Brasileiro do Cooperativismo, em Belo Horizonte.

23 Dentre as questões debatidas pelos integrantes da OCB estão: eliminação do controle estatal e a necessidade do movimento cooperativo assumir a própria autogestão; eleição de representantes do movimento cooperativo na constituinte de 1988; integração das cooperativas nos programas de reforma agrária.

Observam-se, já em meados dos anos de 1980,

uma gradativa emergência e multiplicação de empreendimentos associativos de cunho comunitário e, às vezes, até semi-familiar (...) empreendimentos formados dentro dos movimentos sociais, também de cunho comunitário, ligados a reprodução da vida (GAIGER, 2000, p.168).

Ainda, conforme Gaiger (2000), esses empreendimentos possuíam uma vinculação com setores da Igreja e significavam muito mais obras assistenciais e filantrópicas. Destacam-se aí os trabalhos desenvolvidos pelos Projetos Alternativos Comunitários da Cáritas – PACS.

Segundo dados da Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB, o número de cooperativas cresceu 43,7%, no período de 1990 a 1998, e 29% de 1999 a 2002. Entre elas, as cooperativas de trabalho tiveram um crescimento de 112%.

Já no inicio da década de 1990, começaram a aparecer cooperativas de produção, em virtude da falência de algumas fábricas que passam a ser assumidas pelos trabalhadores. Em 1994, foi criada a Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas Autogestionárias e de Participação Acionária – ANTEAG, cujo objetivo é orientar e acompanhar o processo de formação de empresas geridas pelos próprios trabalhadores24.

Segundo informações da ANTEAG, em 1994, 100% dos projetos de autogestão que viriam posteriormente a ser acompanhados por ela, foram originados de ‘crise do negócio, má gestão e situações pré- falimentares’. Já em 2000, contemplando um número bastante ampliado destas experiências (cerca de 150, envolvendo aproximadamente 30 mil trabalhadores diretos), 45,7% haviam sido originados na própria iniciativa dos trabalhadores; em 18,3% dos casos, as empresas originais haviam chegado efetivamente à falência; em 10,4% originaram-se por artifícios da terceirização; em 9,8% tratavam-se de situações ainda pré- falimentares; em 6,5% as empresas haviam sido apenas desativadas. Somente em 6% dos casos foram atribuídos estritamente à crise do negócio e má gestão. Incluindo nestes casos, os 2% em que a empresa foi simplesmente abandonada e os 1,3% em que eram empresas dirigidas por ‘laranjas’, e considerando também situações falimentares e pré-falimentares, conclui-se que em 2000 apenas 43,9% das empresas de autogestão, ora acompanhadas pela ANTEAG surgiram com os mesmos motivos daquelas de 06 anos atrás (TAUILE, 2001, p.12).

24

Estudos importantes sobre experiências de empresas autogeridas podem ser encontrados em: Alves (2001); Pedrini (1998); Singer (2002b) e ANTEAG (2000).

Essa proliferação das iniciativas produtivas, no campo da economia solidária, especificamente nas décadas de 1980 e 1990, vem acompanhada de mudanças no cenário brasileiro, marcado por crescentes índices de desemprego, contínua concentração de renda, aumento do endividamento interno e externo, baixo crescimento econômico com redução dos investimentos e ênfase na financeirização, adesão ao processo de internacionalização da economia, elevação dos índices de pobreza e miséria e, conseqüentemente, o aumento do nível de desigualdades sociais.

Mesmo tendo vivido anos de ouro (1950–1980) em sua economia, quando houve o maior impulso da industrialização nacional, por meio do Estado Desenvolvimentista, com uma taxa média anual de produção em torno de 7%, o Brasil continuou tendo um dos piores modelos de distribuição de renda do mundo, ou seja, a distribuição da riqueza continuou concentrada nas mãos de poucos. Essa situação é agravada se considerados os dados do IBGE que apontam, nos anos de 1990, a perda de seis milhões de empregos e na década de 1980, cerca de dois milhões.

Há uma recomposição do emprego formal que envolve maior insegurança, elevada concorrência, face ao desemprego, flexibilização dos processos de trabalho, aliadas a mudanças significativas na base produtiva das empresas, por meio da adoção de um novo padrão produtivo que leva a reorganização da produção e do trabalho, inovações tecnológicas e, em conseqüência, maior competitividade e produtividade do trabalho.

Contribui, nesse processo, a disseminação das idéias neoliberais, a redefinição do papel do Estado por meio da liberalização das importações, desregulamentação econômica e financeira, privilegiando o mercado financeiro com altas taxas de juros, valorização cambial.

Vive-se, portanto,

um novo momento do capitalismo, cujas características fundamentais estão assentadas na hegemonia do capital financeiro, na flexibilização do trabalho e do trabalhador e na desregulamentação e liberalização sustentadas no modelo neoliberal, que visa a mais completa mobilidade, liberdade e mundialização do capital (DRUCK, 2001, p.81).

Os reflexos recaem sobre os trabalhadores que passam a vivenciar situações de desemprego, dificuldades, cada vez mais, de inserção no mercado formal de trabalho, trabalhos temporários e instáveis. Segundo Pochmann (2001), durante a década de 1990, a cada 10 empregos criados, 02 eram assalariados, porém sem registro formal.

Dos 13,6 milhões de pessoas que ingressaram no mercado de trabalho, nos anos 90, apenas 8,5 milhões obtiveram acesso a algum posto de trabalho, gerando um excedente de mão-de-obra de 5,1 milhões de desempregados. Em outras palavras, somente 62,5% das pessoas que se inseriram no mercado de trabalho encontraram uma vaga” (POCHMANN, 2001, p.103).

É nesse cenário que (re)surgem outras formas de organizar a produção e de gerar trabalho e renda que vão além das experiências vinculadas ao cooperativismo. É comum nos diversos espaços, seja acadêmico, seja dos movimentos sociais, Fóruns, ONG´s, o entendimento de que se trata de experiências que têm procurado trilhar um outro caminho, cujo objetivo não é só gerar renda, mas também construir uma forma de produzir que favoreça a participação de todos os envolvidos nos empreendimentos, não só na gestão, bem como no usufruto dos bens e serviços. O propósito é estabelecer uma prática que se diferencie do chamado cooperativismo tradicional que, historicamente, foi sendo construído no Brasil com o apoio da OCB, com predomínio, inclusive, do cooperativismo agropecuário, cuja gestão sempre ficou ao encargo de um pequeno grupo, com sua produção beneficiando o grande capital.

Ao se referir ao cooperativismo Veiga (2002) aponta que hoje

o cooperativismo no Brasil vive enorme desenvolvimento. Existe, por um lado, o cooperativismo oficial, mais ou menos ligado a agências governamentais e de iniciativas de grande e médio porte, que não respeitam os princípios do cooperativismo, agindo na prática como empresas capitalistas. Por outro lado, existem inúmeras iniciativas voltadas para a construção de cooperativas autogestionárias, que realizam intercâmbios e se esforçam para a construção de redes de economia solidária (VEIGA, 2002, p.29).

Conforme Gaiger (1999a),

(...) no campo do solidarismo econômico popular, contam-se hoje empreendimentos os mais diversos, de caráter familiar ou comunitário, sob forma de sociedades informais, microempresas ou cooperativas de trabalhadores. Identificam-se por seus princípios de equidade e participação, que procuram colocar em prática, organizando-se de forma autogestionária e democrática (GAIGER, 1999a, p.3).

Na atualidade, o desenvolvimento da economia solidária, no Brasil, além da presença de inúmeros empreendimentos, vem se expressando também em diferentes níveis, dentre os quais podem ser destacados: as ações governamentais, o papel exercido pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária, enquanto articulador dos diferentes segmentos do campo da economia solidária, e a presença de entidades de assessoria e fomento.