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Nunca vou me esquecer da primeira vez que escutei que tinha sangue nas mãos. Lembro como se fosse ontem.

Era uma bela manhã ensolarada de 2005 em Boston, Massachusetts. Eu estava na universidade, a caminho da aula, tranquilão, quando vi uma garotada mostrando fotos dos ataques terroristas do 11 de Setembro com a legenda “Os Estados Unidos mereceram”.

Eu não me considero nem de longe a pessoa mais patriota do mundo, mas acho que quem ergue um cartaz desses à luz do dia está pedindo um soco.

Parei e fui falar com eles, perguntar o que estavam fazendo. Haviam montado uma mesa onde colocaram alguns pan etos. Um deles trazia uma foto de Dick Cheney com chifres de demônio e as palavras “assassino em massa” escritas embaixo. Em outro, George W. Bush com um bigode de Hitler.

Aqueles alunos integravam o Movimento Juvenil LaRouche, grupo fundado em New Hampshire pelo ideólogo de extrema esquerda Lyndon LaRouche. Seus seguidores passavam horas e horas nos arredores de campus de faculdades no nordeste do país, distribuindo pan etos a universitários suscetíveis. Ao me deparar com eles, levei dez segundos para entender o que eram de fato: uma religião.

É isso. Eram uma religião ideológica: uma religião antigoverno, anticapitalista, antivelhos, antissistema. Defendiam que a ordem mundial internacional era corrupta do começo ao m. Que a única razão para a Guerra do Iraque tinha sido dar mais dinheiro aos amigos de Bush. Que terrorismo e tiroteios em massa não existiam e que tais eventos não passavam de esforços governamentais altamente coordenados para controlar a população. Não se preocupem, meus amigos de direita, pois anos depois eles desenhariam o mesmo bigode de Hitler e fariam as mesmas alegações sobre Obama — se isso faz vocês se sentirem melhor (não deveria).

O que o Movimento Juvenil LaRouche (LYM) faz é absolutamente genial. Procura universitários descontentes e inquietos (geralmente rapazes), uma galera tão raivosa quanto assustada (assustada com as súbitas responsabilidades que foram obrigados a assumir e raiva da intransigente e decepcionante vida adulta) e prega uma mensagem simples: “Não é culpa de vocês.”

Sim, meu jovem, você achava que era tudo culpa do papai e da mamãe, mas não é. Nananinanão. E sei que você achava que era tudo culpa dos seus professores de merda e daquela faculdade que era um roubo. Negativo. Também não foram eles. Você deve até ter achado que era tudo culpa do governo. Está chegando perto, mas ainda não.

Veja só, é culpa do sistema, essa entidade pomposa e vaga da qual você sempre ouviu falar.

Esta era a fé vendida pelo LYM: se conseguirmos derrubar “o sistema”, tudo vai car bem. Não haverá mais guerra. Não haverá mais sofrimento. Não haverá injustiça.

Lembre-se de que, para termos esperança, precisamos vislumbrar um futuro melhor (valores); precisamos nos sentir capazes de alcançar este cenário (autocontrole); e precisamos encontrar outras pessoas que compartilhem dos nossos valores e deem apoio aos nossos esforços (comunidade).

A juventude é um período em que muita gente enfrenta problemas com valores, controle e comunidade. Pela primeira vez na vida, os jovens ganham o direito de decidir o que querem ser. Medicina? Administração? Psicologia? Tantas opções podem ter um efeito paralisante.4 E a inevitável frustração faz muitos questionarem seus valores e perderem a esperança.

Além disso, o autocontrole é um problema nessa fase da vida.5 Pela primeira vez, essas pessoas não estão vinte e quatro horas por dia sendo vigiadas por alguma autoridade. Por um lado, há a sensação de liberdade, o entusiasmo. Por outro, elas passam a ser responsáveis pelas próprias decisões. E caso não sejam lá muito boas em acordar na hora certa, ir à faculdade ou ao trabalho e estudar o su ciente, é difícil admitir que não há ninguém a quem culpar a não ser elas mesmas.

Por m, os jovens estão particularmente preocupados em encontrar uma turma e se encaixar.6 O que não só é importante para seu desenvolvimento emocional como também os ajuda a encontrar e solidi car a própria identidade.7

Gente como Lyndon LaRouche usa jovens perdidos e sem rumo como capital. LaRouche deu a eles uma explicação política distorcida para justi car a insatisfação que sentiam. Ofereceu a sensação de controle e os fez sentir mais fortes ao traçar uma estratégia para (supostamente) mudar o mundo. E, por m, forneceu uma comunidade na qual eles “se encaixam” e sabem quem são.

Portanto, deu a eles esperança.8

— Vocês não acham que estão exagerando um pouquinho? — perguntei naquele dia aos alunos membros do LYM, apontando para as fotos das torres do World Trade Center nos pan etos.9

— De jeito nenhum, cara! É até pouco! — respondeu um deles.

— Olha só, eu também não votei no Bush e não concordo com a Guerra do Iraque, mas...

— Não importa em quem você vota! Um voto para qualquer um é um voto para o sistema corrupto e opressor! Você tem sangue nas mãos!

— Como é que é?

Eu nem sabia dar um soco, mas já estava fechando a mão. Quem aquele lho da mãe achava que era?

— Se você participa desse sistema, você perpetua ele — continuou o garoto. — E é cúmplice, portanto, do assassinato de milhões de civis inocentes mundo afora. Aqui, ó, dá uma lida nisso. — E jogou um pan eto em cima de mim.

Peguei e dei uma olhada, frente e verso. — Isso é uma completa estupidez — falei.

Nossa “conversa” continuou nessa levada por mais alguns minutos. Na época, eu não soube a melhor forma de agir. Ainda achava que esse tipo de coisa se baseava na razão e nas evidências, não em sentimentos e valores. E não se muda valores pela razão, só a partir da experiência.

Depois de me irritar bastante, acabei resolvendo sair dali. Já estava indo embora quando o garoto tentou me inscrever num seminário gratuito.

— Você tem que abrir sua cabeça, cara — disse ele. — A verdade é assustadora. Olhei para ele e respondi com uma citação de Carl Sagan que tinha lido certa vez num fórum on-line.

— Sua cabeça está tão aberta que o cérebro caiu!10

Me senti esperto e superior. Presumo que ele também. Naquele dia, ninguém mudou a cabeça de ninguém.

* * *

É quando estamos pior que nos deixamos impressionar mais.11 Quando nossa vida está desmoronando, signi ca que nossos valores não nos serviram para nada, e tateamos no escuro em busca de valores novos. Quando uma religião cai, abre-se espaço para outra. Gente que perde a fé no deus espiritual vai procurar por um deus mundano. Quem perde a família se entrega à sua raça, ao seu credo, à sua nação. Quem perde a fé no governo ou no país vai buscar esperança em ideologias extremistas.12

Há uma razão para todas as principais religiões do mundo terem em seu histórico o envio de missionários aos cantos mais pobres e miseráveis do planeta: quem está passando fome acredita naquilo que botar comida na mesa. A melhor estratégia para sua nova religião é pregar a mensagem àqueles que estiverem na merda: os pobres, os párias, os maltratados, os esquecidos. Gente que passa o dia no Facebook, sabe?13

Jim Jones arregimentou seus seguidores recrutando sem-teto e minorias marginalizadas, fazendo uso de uma mensagem socialista mesclada à sua visão (deturpada) do cristianismo. Calma aí, o que estou dizendo? Jesus Cristo fez a mesmíssima coisa.14 Buda também. Moisés... Bem, vocês já entenderam. Líderes religiosos pregam aos pobres, aos oprimidos, aos escravizados, dizendo que eles

merecem o Reino dos Céus — basicamente dizem um belo “foda-se” para as elites

corruptas de sua época. É uma mensagem fácil de corroborar.

Hoje é mais fácil do que nunca se dirigir aos desesperançados. Basta ter um per l em uma rede social: comece a postar umas maluquices extremistas e deixe o algoritmo se encarregar do resto. Quanto mais loucos e extremos seus posts, mais atenção eles vão gerar e mais desesperançados vão atrair, assim como bosta de vaca faz com as moscas. Não é nada complicado.

Mas não basta entrar na internet e dizer qualquer coisa. É preciso ter uma mensagem (semi)coerente. É preciso ter uma visão. Porque é fácil irritar e enfurecer as pessoas por causa de bobagem: o jornalismo criou todo um modelo de negócios a partir disso. Mas, para ter esperança, as pessoas precisam sentir que fazem parte de algum movimento maior, sentir que estão se juntando ao lado vencedor da história.

COMO CRIAR SUA RELIGIÃO