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Quarto passo: sacrifício ritual para leigos — tão fácil que qualquer um consegue fazer!

Fui criado no Texas, onde Jesus e futebol americano são os únicos deuses que importam. E embora tenha aprendido a gostar de futebol americano mesmo sendo um péssimo jogador, todo esse papo de Jesus nunca fez muito sentido para mim. Jesus estava vivo, aí morreu, depois ressuscitou, aí morreu de novo. E era um homem, mas também era Deus e agora é um troço meio homem-deus-espírito que vai amar todo mundo eternamente. Sempre me pareceu meio arbitrário, e minha sensação era... Como dizer?... Que o povo saía inventando essas histórias.

Não me entenda mal. Eu concordo com a maior parte dos ensinamentos de Cristo: pratique o bem, ame seu vizinho, e por aí vai. Os encontros de jovens eram até bem divertidos (colônias de férias religiosas talvez sejam as atividades de verão mais subestimadas de toda a história). E na igreja geralmente havia cookies escondidos em algum lugar, em alguma sala, toda manhã de domingo. Quando se é criança, isso é empolgante.

Mas, sendo totalmente honesto, eu não gostava de ser cristão, e por uma razão bem idiota: meus pais me faziam usar umas roupas nada a ver. Pois é. Eu questionei a fé da minha família e me tornei ateu aos doze anos por causa de suspensórios e gravatas-borboleta.

Lembro-me de perguntar ao meu pai:

— Se Deus já sabe tudo e me ama independentemente de qualquer coisa, qual o problema Dele com a roupa que eu visto no domingo? — Meu pai me mandava car calado. — Mas, pai, se Deus perdoa sempre nossos pecados, por que a gente não mente, trapaceia e rouba o tempo todo então? — Outro cala-boca. — Mas pai...

Então esse lance de igreja acabou mesmo não dando em nada para mim. Eu já usava camisetas do Nine Inch Nails por baixo da roupa nas aulas de religião antes de ter pelos no corpo e, alguns anos depois, já queimava os neurônios tentando ler Nietzsche. Dali para a frente, foi ladeira abaixo. Comecei a causar. Faltava à aula de religião para fumar no estacionamento. Não tinha mais jeito: eu era um pequeno in el.

Os questionamentos e o ceticismo assumidos chegaram a tal ponto que um dia o professor me chamou num canto e me fez uma proposta: me daria notas altas no curso pré-Crisma e diria aos meus pais que eu era um aluno exemplar se eu parasse de questionar as inconsistências de lógica da Bíblia na frente de todas as outras crianças. Eu topei.

Provavelmente ninguém cará muito surpreso em saber que não sou lá muito espiritualizado — sinto muito, mas não tenho qualquer crença no sobrenatural. O caos e a incerteza me dão um prazer doentio. Infelizmente, isso me condena a enfrentar a Verdade Desconfortável o tempo todo. Mas é algo que aprendi a aceitar.

Agora que estou mais velho, porém, entendo essa coisa de se-arrumar-para-Jesus. Ao contrário do que eu pensava na época, meus pais não queriam me torturar (nem Deus). Era tudo uma questão de respeito. E não a Deus, mas à comunidade, à religião. Usar roupa bonita no domingo era um sinal de virtude enviado ao restante da congregação: “Esse negócio de Jesus é sério mesmo!” Faz parte da dinâmica de nós-contra-eles. É o sinal de que você é um “nós” e merece ser tratado como tal.

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E ainda tem os mantos... Já reparou que em todos os momentos importantes da vida tem alguém usando um manto? Casamentos, formaturas, funerais, audiências judiciais, cirurgias cardíacas, batismos e, sim, sermões de igreja também.

A primeira vez que reparei nisso foi quando me formei na faculdade. De ressaca e não tendo dormido mais do que três horas, cambaleei até meu assento para o início da cerimônia. Olhei ao redor e pensei, puta que pariu, não vejo tanta gente de manto num mesmo lugar desde a época da igreja. E então olhei para baixo e percebi, para meu horror, que eu também estava usando um.

O manto, uma deixa visual que signi ca status e importância, faz parte dos rituais. E nós precisamos dos rituais porque é o que torna nossos valores tangíveis. O processo que nos leva a valorizar determinada coisa não é racional. Precisa ser vivido. É uma experiência. E uma forma de tornar a vivência de um valor mais fácil é associá-lo a roupas bonitinhas e palavras impactantes — em resumo, oferecer rituais. Rituais são representações visuais e empíricas do que julgamos importante. Por isso toda religião que se preza tem os seus.

Lembre-se, emoções são ações; é tudo a mesma coisa. Portanto, para modi car (ou reforçar) a hierarquia de valores do Cérebro Sensível, é preciso dar às pessoas uma ação fácil de repetir, mas ainda assim totalmente singular e identi cável. É aí que entram os rituais.

Rituais são concebidos para serem repetidos ao longo de um período extenso, o que só confere a eles uma sensação ainda maior de importância: a nal, não é sempre que se tem a chance de fazer exatamente a mesma coisa que as pessoas faziam quinhentos anos atrás. É um simbolismo muito grandioso. E rituais são simbólicos. Como valores que são, precisam encarnar algum tipo de história ou narrativa. Nas igrejas, sujeitos de manto mergulham pão no vinho (ou suco de uva) e distribuem para um monte de gente como o alimento que representa o corpo de Cristo. O simbolismo encena o Seu sacrifício (Ele não merecia aquilo!) pela nossa salvação (nós também não, mas por isso é tão poderoso!).

Países estabelecem rituais em torno de sua fundação ou de guerras que venceram (ou perderam). Marchamos em paradas, balançamos bandeiras, soltamos fogos de artifício em nome de uma percepção compartilhada de que tudo aquilo signi ca algo valioso e construtivo. Casais criam seus próprios rituais e hábitos, piadas internas, tudo para reforçar o valor do relacionamento, uma religião interpessoal particular. Rituais nos conectam com o passado. E com nossos valores. Rati cam quem somos.

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Rituais geralmente envolvem algum tipo de sacrifício. Nos velhos tempos, padres e líderes de fato matavam pessoas no altar, por vezes arrancando-lhes os corações ainda pulsantes, e as pessoas ao redor gritavam, tocavam tambores, faziam todo tipo de doideira.38

Tais sacrifícios eram realizados para aplacar a ira de algum deus ou garantir uma boa colheita, entre tantos outros efeitos desejados. Mas a verdadeira razão para sacrifícios rituais era mais profunda.

Seres humanos são criaturas terrivelmente dominadas pela culpa. Digamos que você encontre uma carteira com cem dólares e nenhum documento de identidade ou qualquer outra informação sobre o possível dono. Não há ninguém por perto, nenhuma pista sobre como devolver aquilo, e então você ca com o dinheiro. A Primeira Lei Emocional de Newton postula que toda ação produz reação emocional oposta e de igual intensidade. Nesse caso, aconteceu algo de bom que você não merecia. É a deixa para a culpa.

Agora pense da seguinte forma: você existe. Não fez nada para merecer existir. Não sabe sequer por que começou a existir: aconteceu. Puf — você ganhou vida. Você não faz ideia de onde ela veio nem por quê. Se acredita que foi uma dádiva de Deus, puta merda! Olha a dívida que tem com Ele! Mas mesmo que não acredite — caramba, você recebeu a bênção da vida! O que fez para merecer algo assim?! Como pretende tornar sua vida digna? Eis a pergunta constante, e no entanto sem resposta, da condição humana e o motivo de a culpa inerente à consciência ser o pilar de quase todas as religiões espirituais.

Os sacrifícios mencionados em religiões espirituais ancestrais eram realizados para dar aos éis a sensação de estar quitando essa dívida, de uma vida digna de ser vivida. Apesar de, antigamente, seres humanos terem de fato sido sacri cados — uma vida por outra —, as pessoas acabaram percebendo que se poderia sacri car

simbolicamente uma vida (a de Jesus ou sabe-se lá a de quem) para salvar toda a

humanidade. Assim não seria preciso car limpando sangue do altar dia sim dia não (sem falar nas moscas, nem vamos entrar nesse assunto!).39

A maior parte das práticas religiosas é desenvolvida para alívio da culpa. É possível dizer inclusive que todas as orações não passam disto: minissessões de alívio da culpa. Não se ora a Deus para dizer: “Não me leve a mal, mas eu sou foda!” Não. A oração é uma espécie de diário de gratidão da época em que isso não existia. “Obrigado, Deus, por permitir que eu exista, muito embora às vezes seja uma merda ser eu. Desculpa aí por todas as coisas ruins que pensei ou z.” E puf! Sentimento de culpa aliviado, ao menos por algum tempo.

Religiões ideológicas administram a questão da culpa com muito mais e ciência. Os governos direcionam esse sentimento de culpa existencial ao serviço militar. “Nosso país deu a você essas oportunidades, então vista esta merda de uniforme e lute para nos proteger!” Ideologias de direita em geral entendem como necessários sacrifícios relacionados à proteção do país ou da família. Ideologias de esquerda em

geral percebem sacrifícios necessários como abrir mão de algo em nome do bem comum da sociedade.

Por m, nas religiões interpessoais, o autossacrifício gera um sentido de romance e lealdade (pense só no casamento: você sobe num altar e promete dar sua vida àquela pessoa). Todos temos di culdades para assimilar que merecemos ser amados. Mesmo quem teve pais sensacionais às vezes se pega pensando, gente, por que eu? O que eu z para merecer isso? Religiões interpessoais têm todo tipo de rituais e sacrifícios concebidos para que as pessoas sintam que merecem ser amadas. Anéis, presentes, aniversários de casamento, limpar o xixi do chão quando eu erro a mira da privada — são as pequenas coisas que, juntas, formam algo grande. De nada, meu amor.

COMO CRIAR SUA RELIGIÃO