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Princípio da igualdade formal e igualdade material

1. A IGUALDADE

1.3. Princípio da igualdade

1.3.2. Princípio da igualdade formal e igualdade material

A leitura da fórmula consagrada do princípio de que “todos são iguais perante a lei”, como observado na evolução da ideia de igualdade, apresenta importante dicotomia: igualdade formal (ou jurídica, liberal) e igualdade material (ou real, efetiva, social, concreta, de oportunidades)59.

A igualdade formal decorre do constitucionalismo liberal no qual os homens nascem e mantem-se livres e iguais em direitos. A igualdade material advém da consciência das

58 É de salientar que “pela sua própria natureza e função, os princípios não carecem de sede fixa no texto constitucional; os que lhe sejam exteriores (ou anteriores) podem dele ser simplesmente induzidos”. Conforme MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição... cit. p. 300.

59 Como quer que se denomine segundo MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional... cit., p. 225; e CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria... cit., p. 426.

desigualdades faticamente existentes e da necessidade de modificar a realidade social e econômica como realização de justiça.

A afirmação de que todos são iguais perante a lei traduz a obrigação de igualdade na aplicação da lei. Esse tratamento isonômico determina que a imposição da lei ao caso concreto deve ser efetivada de forma impessoal, sem diferenciar as situações que se submetem à ordem legal baseadas em razões alheias ou não previstas juridicamente. A ênfase é no tratamento do indivíduo perante a lei. A igualdade na aplicação da lei significa que a lei deve ser executada sem discriminações ou privilégios, sendo vedadas distinções de qualquer natureza60.

Esse sentido do princípio da igualdade, sem ressalvas, alude à ideia de distribuição de bens de acordo com os méritos de cada um, cabendo à lei garantir apenas o tratamento isonômico daqueles que possuem méritos iguais, propiciando-lhes o alcance de iguais benefícios61. O princípio, assim, se realiza numa igual aplicação da lei a todos os cidadãos, vinculando apenas os aplicadores da lei, traduzindo-se, em outros termos, quase em mera exigência de generalidade da lei62.

Ocorre que restringir o princípio da igualdade somente a uma proposição de universalidade, sendo assente que igualdade perante a lei e generalidade da lei não significam a mesma coisa63, denota permissão de diferenciações quanto ao conteúdo. Assim, a universalidade pode tolerar que o legislador ardiloso cumpra formalmente a igualdade ao tratar da mesma forma determinado grupo de pessoas com idênticas características e violar materialmente a igualdade ao diferenciá-las de maneira discriminatória. Basta lembrar do

apartheid na África do Sul e do tratamento jurídico dos judeus na Alemanha nazista”64. A lei tratava, igualmente, judeus e negros, mesmo criando um regime flagrantemente discriminatório.

Jorge Reis Novais reforça a ilação de que a generalidade não é condição suficiente e / ou necessária da igualdade. Refere que uma lei geral pode ser tão intensamente desigual, se

60 De ressaltar que José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional... cit., p. 215) reputa desnecessária tal distinção na ordem constitucional brasileira, porquanto doutrina e jurisprudência são firmes na orientação de que a “igualdade perante a lei tem o sentido que, no exterior, se dá à expressão igualdade na lei, ou seja: o princípio tem como destinatários tanto o legislador como os aplicadores da lei” (grifo no original).

61 Cf. ALMEIDA, Kellyane Laís Laburu Alencar de. A igualdade e a proporcionalidade... cit., p. 57 62 Cf. PINTO, Maria da Glória Ferreira. Princípio da igualdade... cit., p. 26.

63 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra editora. 1982, p. 381, o princípio da igualdade não é uma mera “refracção do princípio da legalidade”.

tratar diferentemente pessoas e situações cuja profunda desigualdade fática exija as correspondentes compensações de tratamento, quanto uma lei individual e concreta pode se configurar numa autêntica igualdade, desde que a situação e a pessoa sejam tão diversas e especiais que mereçam um tratamento correspondentemente individualizado65.

Restrito ao sentido formal, o princípio da igualdade terminaria apenas revelando o princípio da prevalência da lei em face do aplicador do direito66.

A igualdade perante a lei, apesar de continuar sendo um mínimo imposto à observância de qualquer Estado de direito enquanto exigência derivada da igual dignidade de todos67, se mostra insuficiente se não for acompanhada de uma igualdade na própria lei ou através dela, isto é, uma igualdade material que vincula o legislador ao conteúdo da lei68. Em outros termos, o princípio da igualdade não se satisfaz com a mera abstenção do Estado em não discriminar; o princípio impõe a efetiva promoção da igualdade, sendo a lei o instrumento de concretização da justiça social. Nessa perspectiva material a igualdade assume um sentido superior. Não basta o art. 5º, inciso I, da Constituição do Brasil estabelecer que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Há a necessidade de, no âmbito da relação do trabalho, por exemplo, fomentar e buscar a igualdade material entre trabalhadores de diferentes gêneros, com a promoção de medidas positivas que efetivamente coloquem em pé de igualdade homens e mulheres, naturalmente diferentes na composição física. É por isso que o art. 198 da CLT estabelece que “é de 60 kg (sessenta quilogramas) o peso máximo que um empregado pode remover individualmente, ressalvadas as disposições especiais relativas ao trabalho do menor e da mulher”, sendo que o art. 390 do mesmo diploma legal69, veda “empregar a mulher em serviço que demande o emprego de força muscular superior a 20 (vinte) quilos para o trabalho continuo, ou 25 (vinte e cinco) quilos para o trabalho ocasional”.

A própria lei deve tratar igualmente todos os cidadãos. Assim, é na igualdade na criação da lei que se encontra fundamento para vincular o legislador à igualdade e também para que ele atente para elaboração de leis sem discriminações ou privilégios. Como também

65 NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes... cit. p. 104.

66 Nesse sentido, dentre outros, PINTO, Maria da Glória Ferreira. Princípio da igualdade... cit., p. 25; CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição Dirigente... cit. p. 381.

67 NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes... cit. p. 102.

68 NEVES, Antônio Castanheira. O instituto dos 'assentos' e a função jurídica dos supremos tribunais. Coimbra: Coimbra Editora, 1983, p. 166.

69 Como adiante se verá, há entendimento sugerindo a abolição da restrição do art. 390 da CLT com a apreciação de cada caso às situações e características pessoais da trabalhadora, ao tempo gasto na atividade e às condições do serviço.

é na igualdade através da lei que se exige tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais.

O conteúdo do princípio da igualdade está vinculado com a realização da justiça, assim definida com as concepções e valores de cada sociedade em cada tempo. Nesse sentido, a primeira Constituição republicana do Brasil, proclamada em 1891, declarava serem eleitores “todos” os cidadãos maiores de 21 anos, assim compreendidos apenas os homens. O conteúdo da norma era discriminatório, já que as mulheres, até então, não eram consideradas capazes de eleger os seus próprios representantes. Somente com a promulgação da Constituição de 1934, restou assegurado às mulheres o direito ao voto, declarando, em seu artigo 108, serem eleitores os brasileiros de ambos os sexos, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei.

A asserção do princípio da igualdade ocorre paulatinamente com a passagem da igualdade jurídica de programática a preceptiva70. Isto é, a ocupação do princípio da igualdade, em Estado de direito social, deve compreender instrumentos de transformação de estrutura social que permitam aos desfavorecidos, oportunidades de igualdade jurídica no exercício dos direitos fundamentais. Obviamente que não se objetiva uma igualdade absoluta, com a imposição de um único valor tido como legítimo, em detrimento da pluralidade de valores sociais e humanos, mas, sim, a correção de tendências abusivas da liberdade individual e delimitá-las em observância das demandas sociais71.

As exigências do princípio da igualdade, portanto, não se limitam ao aspecto formal, mas projetam-se, enquanto igualdade fática, no plano da igualdade de oportunidades e da disponibilização de condições materiais para que cada indivíduo tenha efetivas chances de usufruir dos benefícios da vida em sociedade que, a partida, não lhes afortunam72.

Essa compensação, além do mais, não se limita em reconhecer a situação de desigualdade, mas permite ao legislador repor ou criar condições de uma verdadeira igualdade, inclusive, introduzindo fatores dinâmicos de compensação que até podem se traduzirem em tratamentos privilegiados em favor de determinados grupos, historicamente

70 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional... cit., p. 224-5.

71 Conforme ressaltado por PINTO, Maria da Glória Ferreira. Princípio da igualdade... cit. p. 57.

72 Para Bonavides, o viés material do princípio da igualdade visa corrigir os desvios sociais provocados por um modelo econômico de caráter liberal e individualista, que deixa aos particulares a liberdade de regularem o mercado e lidarem com as consequências do absenteísmo estatal. É o substrato dos direitos de segunda dimensão, o qual foi um dos fundamentos do movimento constitucionalista do século XX e informam os direitos sociais, culturais, econômicos e coletivos. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional... cit., p. 54.

discriminados, para que tenham resultados iguais no meio social73. É o caso por exemplo, de cotas para mulheres em concursos públicos, que, obviamente, causa muita polêmica pela dúvida de se constituir ação afirmativa ou restrição.

Contudo, embora a igualdade formal e material indiquem sentidos diversos74, não possuem efetivamente ideias opostas. Antes ao contrário, pois integram indissociavelmente o conteúdo do princípio da igualdade. A concepção de igualdade material, apesar de ter se desenvolvido depois da ideia de igualdade formal, não é excludente, contribuindo ambas para enriquecer o seu conteúdo. A igualdade formal é condição para que a igualdade material se concretize, porque é através da lei que o Estado pode dispensar tratamento isonômico compensando desigualdades. Já a igualdade material permite a concretização dos reclames de justiça social que o constituinte quis atender.

Aliás, a distinção dicotômica do princípio da igualdade em igualdade formal e igualdade material tem razão de ser, especialmente, para demonstrar duas circunstâncias: a de atribuição de direitos em situação de igualdade; e a de delimitação das obrigações de cada um dos poderes do Estado na promoção da igualdade, mas sem colocá-los em compartimentos estanques, porquanto, muito embora os direitos são os mesmos para todos, mas, nem todos se encontram em condições de igualdade para exercê-los, é imprescindível que essas condições sejam criadas ou repostas através da transformação da vida e das estruturas dentre as quais as pessoas se movem75.