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3 A CONSTRUÇÃO PRINCIPIOLÓGICA DO DIREITO PENAL

3.2 Princípio da intervenção mínima: a tutela do bem jurídico constitucional-penal

A intervenção estatal pode ser compreendida como instrumento necessário à solução de conflitos, quando se torna imprescindível a aplicação de sanções para preservação de direitos. Por essa perspectiva, é possível perceber a função de

39No mesmo sentido, Sebástian Borges de Albuquerque Mello (2010, p. 76) explica que “a partir da positivação constitucional dos direitos e garantias individuais, o Direito Penal não poderia, mesmo que por intermédio de uma lei aprovada por esmagadora maioria, punir alguém que não tivesse praticado um fato proibido, ou um fato inofensivo, cogitado ou praticado sem culpa.”

controle social exercida pelo Direito e, ainda, a distribuição da justiça promovida de forma institucionalizada. Segundo Guilherme de Souza Nucci (2010, p. 166-167), a intervenção do Estado para garantir a justa aplicação da lei está na esfera dos fenômenos normais, sendo, inclusive, considerada como desejável, “na medida em que se acate a liberdade individual como bem supremo, preservando-se a dignidade da pessoa humana na exata demanda do Estado Democrático de Direito.”

Em compasso com a consideração dos direitos fundamentais como instrumentos de leitura das regras punitivas, tem-se a razão fundante do Direito Penal, vislumbrada como a última opção de tutela de direitos, sendo que este subsistema jurídico, de acordo com o momento e a cultura social, protege bens jurídicos considerados mais relevantes quando entender que os demais ramos do Direito serão incapazes de fazê-lo. É um limitador ao poder punitivo estatal, evitando os tempos da barbárie da vingança legalizada40. Leciona José Caparrós (2001) que a esfera punitiva deve se ocupar apenas das agressões consideradas intoleráveis aos bens jurídicos de natureza transcendente, ou seja, àqueles bens importantes para a sociedade. E, nesse mesmo sentido, é a lição de Muñoz Conde (1975, p. 59- 60):

O poder punitivo do Estado deve estar regido e limitado pelo princípio da intervenção mínima. Com isto, quero dizer que o Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves do ordenamento jurídico são objeto de outros ramos do Direito.

Segundo Pierpaolo Cruz Bottini (2007), a utilização legítima do Direito Penal é justificada apenas diante de condutas que violem a dignidade da pessoa humana ou mesmo que alcancem bens e valores que comprometam a existência material do homem. Numa vertente democrática, não é autorizada ao subsistema jurídico-penal a sua intervenção quando da inexistência de comportamentos que não oferecem risco à funcionalidade do Estado democrático. Na mesma medida, Guilherme de Souza Nucci (2010) salienta que só se pode viabilizar a intervenção penal quando, esgotadas as medidas punitivas extrapenais, permanece o ato capaz de gerar rupturas indesejáveis na paz social. Nota-se, claramente, que o Direito Penal é a

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Com o mesmo entendimento, Guilherme de Souza Nucci (2010, p. 167) afirma que o interesse punitivo decorre da própria natureza humana, “não se materializando necessariamente no formato de vingança, mas de igualdade de condições, vale dizer, o respeito à ei e ao direito alheio precisa ser cultuado, ainda que preciso seja a aplicação de sanções convincentes para tanto.”

saída emergencial, quando da falha de outros subsistemas, que foram incapazes de tutelar alguns bens jurídicos de relevo.

A interferência do Direito Penal deverá, portanto, ser mínima, com um caráter subsidiário. Destarte, ensina Cezar Bitencourt (1995) que o princípio da intervenção mínima, orientado pela concepção de mínima restrição aos direitos fundamentais, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outros meios de sanções ou de controle social se mostrarem suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização será inadequada e desnecessária. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do direito forem considerados como incapazes de conferir a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade. Essa constatação permitiu Ana Elisa Liberatore S. Bechara (2011) concluir que o mundo jurídico-penal é abalizado pela redução de seu âmbito de proteção, pois é apresentado como último recurso do Estado, quando se revela imprescindível à manutenção da ordem social.

O caráter subsidiário do Direito Penal é justificado por Claus Roxin (2006), quando assegura que aquele subsistema jurídico possibilita as intervenções mais drásticas em relação aos direitos dos cidadãos, apenas podendo ser utilizado nos casos de insuficiência de outras medidas. Com ponderação semelhante, Sebástian Borges de Albuquerque Mello (2007, p. 18) afirma que

a intervenção penal é mínima porque só deve ser aplicada quando necessária, o que implica dizer que o Estado, diante de um determinado conflito, deve esgotar todos os recursos e buscar todas alternativas possíveis de controle social para solucionar o conflito. Somente o fracasso ou a insuficiência dessas medidas justifica o recurso ao Direito Penal. Assim, se o Estado dispuser de um meio não-penal (e, por isso, menos gravoso) para resolver o conflito, este deve ter preferência em relação à interferência do Direito Penal. A intervenção mínima do aparelhamento penal remonta sua própria essência, sua razão de ser, como ramo do Direito que mais agride determinados direitos constitucionais. É a última forma de atuação do Estado, quando os demais instrumentos se mostraram inaptos para alcançar a manutenção da paz social através do controle do Estado. Com esse entendimento, aduz André Copetti (2000, p. 87):

Sendo o direito penal o mais violento instrumento normativo de regulação social, particularmente por atingir, pela aplicação das penas privativas de liberdade, o direito de ir e vir dos cidadãos, deve ser ele minimamente utilizado. Numa perspectiva político-jurídica, deve-se dar preferência a todos os modos extrapenais de solução de conflitos. A repressão penal deve ser o último instrumento, quando já não houver mais houver alternativas disponíveis.

Para viabilizar uma intervenção mínima, o Direito Penal é orientado pela seleção de bens jurídicos que merecerão a tutela desse subsistema jurídico. Isso porque o bem jurídico continua a ser o ponto de referência para incriminação, sendo imprescindível a demonstração da conexão de idoneidade da proibição para proteção do bem (HEFENDEHL, 2011). Segundo Winfried Hassemer (2011), uma teoria do bem jurídico41 contribui para o fortalecimento do caráter subsidiário do Direito Penal, na medida em que demonstra que à proteção de bens jurídicos será necessária, ao menos, uma ameaça.

Essa natureza seletiva será concretizada pelo paradigma constitucional, ainda que do texto constitucional não constem os conceitos de bem jurídico e de dano social, como já destacou Bernd Schünemann (2011). É por esse motivo que Sebástian Borges de Albuquerque Mello (2007) assegura que a intervenção penal possui um caráter extremo, sendo necessário que a Constituição seja responsável pela indicação daqueles bens mais importantes, a fim de incluí-los no rol protecionista do Direito Penal42. Por essa razão, Luiz Regis Prado (2009, p. 91) leciona que

a tarefa legislativa há de estar sempre que possível vinculada a determinados critérios reitores positivados na Lei Maior que operam como marco de referência geral ou de previsão específica – expressa ou implícita – de bens jurídicos e a forma de sua garantia. Há, por assim dizer, uma limitação nomológica em relação à matéria. A linha reguladora constitucional de ordem hierarquicamente superior deve servir para impor contornos inequívocos ao direito de punir. Em um Estado de Direito democrático, a determinação dos valores da comunidade deve estar, em princípio, delineada na Constituição.

41 Sobre a teoria do bem jurídico, Günter Stratenwerth (2011, p. 109) explica que “o bem jurídico, em primeiro lugar como bem da pessoa, não é uma mera atribuição normativa, que não pode ser eliminada por meio de intervenções fáticas. Ele tampouco consiste num feixe de possibilidades fáticas, que não poderiam ser merecedoras de proteção enquanto tais. Ele tem de consistir na união destes dois aspectos, dito grosseiramente: na disponibilidade do bem em conformidade ao Direito.” 42

Segundo Luis Prieto Sanchís (2011, p. 97), pensar na existência de um Direito Penal que não possua como função principal a proteção de bens jurídicos infere na constatação de seu “papel retórico y declamatorio, además, naturalmente, de propiciar la maximización de la respuesta punitiva.”

Numa clara relação entre os princípios da intervenção mínima e da dignidade humana, Sebástian Borges de Albuquerque Mello (2010) leciona que a intervenção estatal punitiva deve ser mínima, devendo ser sempre escolhido o meio que apresenta menor interferência possível aos direitos fundamentais, garantindo-se a manutenção e a realização da dignidade humana.

É possível verificar, ainda, que, pelo princípio da intervenção mínima, ocorre o processo de descriminalização, em razão das alterações sociais responsáveis pela escolha dos bens jurídicos tutelados penalmente, deixando de lado alguns que foram protegidos em momento pretérito, alterando sua tutela para outro ramo do Direito, mormente para o Direto Civil e o Direito Administrativo. É nesse cenário que se aponta para o processo de alteração de tutela, bem lembrado por Luigi Ferrajoli (2002, p. 575), ao se referir às contravenções penais como caminho para despenalização:

Um redimensionamento do direito penal deveria ser precedido, ao

menos, da despenalização de todas as contravenções,

compreendidas aquelas punidas com a prisão, assim como de todos os delitos punidos com multa mesmo se em alternativa à reclusão [...]; o fato de o legislador ter determinado qualificar certas condutas como simples contravenções, e de alguma maneira a elas agregar a punição – seja mesmo à discricionariedade do juiz – com uma simples multa, é suficiente para fazer supor que ele mesmo tornou tais condutas menos ofensivas que todos os outros crimes; e isto em uma perspectiva de um direito penal mínimo é, sem dúvida, um primeiro critério pragmático de despenalização.

O próprio Direito Penal se encarrega de lembrar seu caráter subsidiário através das chamadas transações penais, previstas na Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais, na tentativa de solucionar aquelas lides que envolvem delitos de menor potencial ofensivo43. Essa subsidiariedade é também percebida, portanto, no âmbito interno daquele subsistema jurídico, coadunando com uma

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Lembra, ainda, Guilherme de Souza Nucci (2010, p. 169) que a perspectiva de uma intervenção mínima construiu um cenário em que “emergiu a Lei 9.099/95, instituindo o Juizado Especial Crimina e garantindo-lhe a possibilidade de transação, com o contorno à viabilidade de punição por meio da pena privativa de liberdade, bem como tornando plausível a suspensão condicional do processo, dando a volta por cima do processo penal obrigatório, que culminava com a aplicação de sanção por vezes desnecessária. Em decorrência da meta de intervenção mínima, a Lei 9.714/98 inseriu, no Código Penal, o incremento das penas alternativas de direitos ou pecuniárias. Na legislação especial, o exemplo emerge da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), encartando como sanções penais ao usuário de entorpecentes penas restritivas de direitos ou multa, mas afastando, completamente, a aplicação de pena privativa de liberdade (art. 28).”

atuação estatal menos gravosa possível, quando da necessidade de intervenção penal44. Por esse sentido, busca-se a aplicação de medidas proporcionais, na sua máxima da necessidade, a fim de restringir na menor medida possível os direitos alcançados pela sanção penal.