• Nenhum resultado encontrado

3 A CONSTRUÇÃO PRINCIPIOLÓGICA DO DIREITO PENAL

4.1 A retribuição como função da pena: malum passionis propter malum actionis

malum actionis

As teorias absolutas apresentam a pena como mecanismo apto à retribuição, numa clara ideia da compensação do mal do crime. Assim, a prática de um delito servirá como pressuposto para uma punição retribucionista, quando se tem como objetivo primeiro a expiação pela desobediência ao comando normativo. Não há que se falar num fim utilitarista, mas apenas do efeito de retorno do mal ao

56 Segundo Leonardo Sica (2002, p. 56), “no atual estágio da civilização (?), o progresso no desenvolvimento espiritual e social dos indivíduos e da humanidade impõe que a ação instintiva se transforme em ação voluntária, adequando-a a um fim. Daí a necessidade de objetivação da pena como forma de autolimitação à reação desenfreada de vingança e legitimação do ius puniendi.”

agente que delinquiu. Nesse sentido, a pena encontraria um fim em si própria, dotada de um valor metajurídico que a fundamenta.

Na mesma construção, Cezar Roberto Bitencourt (2012) leciona que, numa perspectiva absoluta, à pena é atribuída a função única de realizar a justiça, a partir da imposição de um mal, cujo fundamento é encontrado no livre-arbítrio, considerando a capacidade humana de compreender o caráter justo e injusto das questões que lhe são apresentadas. Apresenta-se, portanto, uma vertente silogística formal: a pena é uma consequência jurídico-penal do crime.

Ao realizar uma abordagem histórica, Figueiredo Dias (1999) afirma que a teoria retribucionista já não é tão intensa na modernidade e na contemporaneidade, como fora na Idade Antiga, todavia, ainda se reveste de um caráter filosófico digno de consideração. Assim, encontra em Kant e Hegel a explicação para sua sustentação. Emmanuel Kant57 atribuía à pena um caráter de imperativo categórico, afirmando que, ainda que o Estado e a Sociedade desaparecessem, dever-se-ia, antes, punir o último dos assassinos. A sanção penal possuía uma fundamentação ética, negando-se a cidadania àquele que, porventura, descumprisse as disposições legais. A pena, segundo Kant (1978), não pode ser aplicada em benefício do culpado ou da sociedade, mas deve ser contra o culpado em razão de ter praticado uma conduta criminosa. Há uma nítida fuga ao utilitarismo, ao se considerar a pena como consectária do delito. No mesmo sentido estão as palavras de Santiago Mir Puig (2011, p. 36) que, ao abordar a retribuição kantiana afirma ser esta a perspectiva mais absoluta da pena:

La fundamentación ética de la retribución más absoluta se debe al filósofo alemán Kant. Como, según este autor, e hombre es un “fin en sí mismo” que no es lícito instrumentalizar en beneficio de la sociedad, no sería éticamente admisible fundar el castigo del delincuente en razones de utilidad social: no sería admisible justificar la pena por su utilidad para prevenir delitos. No se puede castigar a una persona para proteger a otros. Sólo es admisible, entonces,

57Em suas lições, Cezar Roberto Bitencourt (2012, p. 120) afirma que “Kant elabora sua concepção retributiva da pena sobre a ideia de que a lei penal é um imperativo categórico. Os imperativos categóricos encontram sua expressão no ‘dever-ser’, manifestando, dessa forma, essa relação de uma lei objetiva da razão com uma vontade, que, por sua configuração subjetiva, não é determinada forçosamente por tal lei. Os imperativos, sejam categóricos ou hipotéticos, indicam que resulte bom fazer ou omitir, não obstante se diga ‘que nem sempre se faz algo só porque representa ser bom fazê-lo’. Seguindo esse discurso kantiano, é bom ‘o que determina a vontade por meio de representações da razão e, consequentemente, não por causas subjetivas, e sim objetivas, isto é, por fundamentos que são válidos para todo ser racional como tal’.”

basar a pena en el hecho de que el delincuente la merece según las exigencias de la Justicia. Y si el delincuente merece la pena, entonces no sólo se puede, sino que éticamente se debe imponer, aunque no tenga ninguna utilidad. La Ley penal se presenta como una pura necesidad moral, un “imperativo categórico”, es decir, como una exigencia incondicionada de la Justicia, libre de toda la consideración utilitaria como la protección de la sociedad u otras.

O sentido silogístico-formal da pena, conforme ensinos de Jorge Figueiredo Dias (1999), também é fortemente percebido nas lições de Hegel, ao considerar o crime como a negação do direito. Por tal razão, a pena deveria ser a negação da negação, na medida em que anulava o crime e restabelecia o direito. Santiago Mir Puig (2011, p. 37) leciona que, de acordo com o método dialético hegeliano, a vontade geral é a tese, a negação da mesma pelo delito é a antítese, e a negação desta negação é a síntese: “aunque el próprio Hegel describe este proceso como de retribución (Wiedervergeltung), su sentido fundamental no es dar su merecido al delincuente, sino reafirmar el Derecho negado por el delito.”

Leonardo Sica (2007) explica que existe certa dificuldade em promover a separação entre as ideias de pena e castigo, no sentido de retribuição, ao que adjetiva de reação irracional do homem. Todavia, ressalta que essa teoria apresentou importante contribuição, na medida em que limitou a pena à culpabilidade do agente, exigindo um tratamento individualizado de acordo com o crime cometido. Entendimento idêntico àquele apresentado por Jorge de Figueiredo Dias (1999), quando ressaltou que o mérito da concepção absoluta, independente de seu valor ou desvalor, está no fato de ter erigido o princípio da culpabilidade no âmbito da aplicação da pena.

De todo modo, torna-se forçosa a concordância com Figueiredo Dias (1999), quando afirma que o caráter retribucionista da pena deve ser recusado. Em verdade, não se autoriza, no presente contexto de desenvolvimento do Direito penal, subsistir uma pretensão de vingança58. Isso seria tornar ilegítima a atuação do Estado em relação às questões de natureza delitiva, pois o esvaziamento do fim utilitarista da

58 No mesmo sentido, leciona Paulo José Freire Teotônio (2009, p. 45) que, “para que a pena imposta pelo Estado alcance todas as finalidades, contudo, deve estar revestida de notável discrição, a ponto de que ela cumpra o seu papel sem precisar ser injusta, desnecessária ou cruel. Deste modo, o ser humano, ao longo de sua evolução, chegou à conclusão de que ‘enjaular’ um indivíduo, açoitá-lo e submetê-lo a penas extremamente severas não eram o suficiente para reduzir os delitos, posto que o sistema de ‘vingança institucionalizada’, em vigor em período não tão remoto, não produzira os efeitos desejados.”

pena poderia conduzir à retomada de um processo de reificação59 do homem. Numa vertente crítica, Alicia Rodrigues Nuñez (2007) assevera que a retribuição não possui qualquer sentido prático para a coletividade. No mesmo sentido, explica Claus Roxin (1997, p. 82) que

la teoría de la retribución no encuentra el sentido de la pena en la persecución de fin alguno socialmente útil, sino en que mediante la imposición de un mal merecidamente se retribuye, equilibra y expía la culpabilidad del autor por el hecho cometido. Se habla aquí de una teoría “absoluta” porque para ella el fin de la pena es independiente, “desvinculado” de su efecto social. La concepción de la pena como retribución compensatoria realmente ya es conocida desde la antigüedad y permanece viva en la conciencia de los profanos con una cierta naturalidad: la pena debe ser justa y eso presupone que se corresponda en su duración e intensidad con la gravedad del delito, que le compense. Detrás de la teoría de la retribución se encuentra el viejo principio de Talión.

A concepção retribucionista da pena recebe outras críticas, principalmente em relação ao seu fundamento estrutural, verificado na falsa ideia de realização da justiça. Cezar Roberto Bitencourt (2012) assegura que a função do Direito penal deve estar alicerçada num fim racional, a partir da proteção de bens jurídicos, objetivando um cenário de convivência humana. No mesmo sentido, Santiago Mir Puig (2011) ressalta que a justificação do Direito reside na sua função de assegurar a existência da sociedade e de seus interesses, o que serve como base às teorias da prevenção e, consequentemente, rechaça o absolutismo. Em severas construções críticas, Jorge Figueiredo Dias (1999) considerou a teoria absoluta como uma doutrina social-negativa, oposta a qualquer tentativa de socialização e de restauração da paz jurídica, sendo inútil, portanto, ao controle e ao domínio do fenômeno da criminalidade.

59 A reificaçao humana consiste na desconsideração do homem enquanto sujeito de direitos e sua transformação em objeto. Pelo retribucionismo penal, pretende-se, tão-somente, cumprir um ideal de vingança, sem mensuração valorativa do homem. Portanto, torna-se evidente que a força punitiva do mal pelo mal pode servir como legitimador de cometimentos de arbitrariedades que desconsideram a dignidade da pessoa humana. Consoante lições de Figueiredo Dias, “quando se pergunta pelo fim da pena se indaga de efeitos relevantes na e para a vida comunitária, não devendo a questão ser desvalorizada como questão meramente terminológica.” E mais: “Como teoria dos fins da pena, porém, a doutrina da retribuição deve ser recusada e, na verdade, recusada in limine. Logo porque ela não é assumidamente (verdadeiramente não quer ser, nem pode ser) uma teoria dos fins das pena. Ela pretende justamente o contrário, isto é, a consideração da pena como “entidade independente de fins.” (DIAS, 1999, p. 93-94).