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2.1. DO ESTADO BUROCRÁTICO AO NOVO GERENCALISMO

2.1.3. O princípio da Regulação

Na década de 1990, o Estado brasileiro optou politicamente por deixar de prestar diretamente os serviços públicos para se concentrar na regulação e na fiscalização. A partir dos anos 2000, o tema passou a ocupar espaço na literatura científica nacional como consequência dos debates sobre a reforma do Estado brasileiro, sendo a categoria regulação amplamente utilizada na Administração Pública.

De acordo com Oliveira e Elias (2011), regulação é um termo polissêmico, uma vez que remete a conceitos que se fundamentam a partir de diversas ideias e referenciais teóricos, criando concepções que perpassam pelo campo das ciências biológicas, políticas, econômicas e sociais, e que se inter-relacionam em alguma medida. Os autores afirmam que todos os sistemas, sejam eles físicos, biológicos ou sociais, tendem, naturalmente, no decorrer de sua existência, a um movimento de entropia que resulta em um estado de desordem estrutural (OLIVEIRA; ELIAS, 2011). Nessa perspectiva, a função de regulação surge para estabilizar esse processo, por meio de agentes, regras e mecanismos reguladores.

Em uma perspectiva ampliada, Apolinário (2013) define a regulação como qualquer medida ou forma de intervenção que tenha como objetivo ordenar o comportamento dos indivíduos ou de determinados grupos de indivíduos. No campo da administração pública, ainda conforme a autora, regulação é o conceito empregado para designar a nova forma de intervenção do Estado na economia, subsequente à liberalização dos mercados e à privatização e/ou terceirização dos tradicionais serviços públicos (APOLINÁRIO, 2013).

Nesse contexto, Apolinário (2013) afirma que a regulação se configura como uma forma de intervenção pública que tem por objetivo, em certos casos, condicionar, e, em outros, apenas influenciar a atividade das organizações (públicas ou privadas) que operam em determinado setor, por meio: a) da criação de mecanismos de fixação de preços ou de tarifas; b) da limitação do acesso a determinadas atividades ou do seu exercício; e c) do estabelecimento de condições sobre a forma de prestação de um determinado serviço.

Desse modo, entende-se a regulação como a função ou poder público que surge na sequência da privatização e da liberalização de determinados setores da economia, para garantir a proteção dos diferentes interesses em conflito (do mercado, dos operadores, dos usuários, do público em geral) (APOLINÁRIO, 2013). Assim, é possível compreender que a existência de regulação no setor público se justifica de forma a assegurar a satisfação de necessidades coletivas que de outra forma poderiam não se materializar em um ambiente no qual a lógica do mercado tende a se sobrepor aos requisitos de bem-estar social, como é o exemplo dos serviços de saúde.

Esse entendimento se fortalece em Santos e colaboradores (2011, p. 181), para os quais a regulação pública é definida como

o conjunto de medidas legislativas, administrativas e convencionadas através das quais o Estado, por si ou por delegação, determina, controla ou influencia o comportamento de agentes econômicos, tendo em vista evitar efeitos desses comportamentos que sejam lesivos de interesses socialmente legítimos e orientá-los em direções socialmente desejáveis.

No que se refere especificamente à oferta de serviços públicos, Marques-Neto (2002) verifica o surgimento de um novo padrão de atuação regulatória, no qual a imposição unilateral e autoritária de pautas, condutas e comportamentos dá lugar à articulação de interesses e ao estabelecimento de pautas regulatórias negociadas junto com os diversos interesses envolvidos (operadores, usuários efetivos e potenciais). Surge, assim, o que o autor denomina regulação reflexiva, na qual o Estado deixa de atuar somente na garantia do acesso aos direitos de cidadania e passa a ser um mediador de interesses, com vistas ao ordenamento das disfunções sociais (MARQUES-NETO, 2002).

As causas para essa mudança de abordagem, ainda conforme o autor, não são puramente ideológicas: de um lado, afirma, estão os aspectos de natureza econômica, que ao tempo em que prejudicam a capacidade de investimentos estatais, fazem emergir polos de decisão econômica que transcendem e independem das estruturas (públicas) dos estados nacionais; de outro lado, o autor destaca os aspectos de natureza política e social que fazem com que a sociedade contemporânea tenha uma atitude muito mais participativa em relação à atuação do poder público, assumindo um papel ativo e organizado em relação às suas demandas (MARQUES-NETO, 2002). Além desses dois elementos, Marques-Neto (2002) ainda destaca o forte impacto da evolução tecnológica, que torna as relações sociais e econômicas ainda mais complexas, introduzindo um padrão crescente de exigências sociais.

Do ponto de vista político, segundo Marques-Neto (2002), há a necessidade de que a atividade regulatória seja permeável à participação da sociedade em todos os seus segmentos e suscetível a controles, não só pelos organismos institucionais, mas também pela própria sociedade. Já na perspectiva organizacional, o autor indica a necessidade de novos órgãos e instrumentos de ação estatal (MARQUES-NETO, 2002). Nesse sentido, para desempenhar este novo perfil de ação regulatória, se fazem necessários instrumentos capazes de conferir ao regulador independência, autonomia, especialidade e capacitação técnica.

O Estado exerce suas atividades regulatórias por meio de estruturas organizacionais próprias, geralmente articuladas em agências ou centrais de regulação. As primeiras são orientadas à regulação de setores da economia, e as últimas estão voltadas à regulação de serviços específicos. Desse modo, observando- se o princípio da Descentralização Política e Administrativa dos serviços sociais básicos (como saúde e educação), permite-se a intervenção com maior assertividade em distintos níveis do setor e dos serviços, bem como a inserção de diferentes instâncias de participação e controle social em todo o processo e também nos resultados, mesmo que o controle interno, segundo o Novo Gerencialismo, seja centrado nos resultados. Contudo, para que haja participação e controle social, são indispensáveis o acesso à informação e transparência.

De acordo com Majone e Spina (1993), as burocracias do Estado dedicadas à regulação devem ter seu foco de atuação voltado a um único objeto especificamente,

valendo-se das contribuições de especialistas para o desenvolvimento dos critérios e processos regulatórios naquele determinado setor. Os autores destacam que os organismos reguladores gozam de prerrogativas quase-judiciais, como impor o término de certas atividades; quase-legislativas, na definição de normas de conduta coletivas de adoção obrigatória; administrativas, permitindo interferências até mesmo na atividade empresarial; de investigação e programação, realizando pesquisas sobre o objeto de intervenção e recomendar até mesmo uma nova legislação.

Nesse sentido, Majone e Spina (1993) distinguem o Estado Regulador do Estado Social à medida que aquele não se propõe a satisfazer todas as demandas sociais, apenas se dedica a apresentar respostas específicas a problemáticas pontuais, respeitando, na medida do possível, as lógicas de ação dos sistemas regulados. Dessa forma, segundo os autores, o Estado Regulador enfrentaria menores problemas em termos de consenso e governabilidade (MAJONE; SPINA, 1993).

Do ponto de vista da legislação, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) (BRASIL, 1989, p. 84, grifo nosso) não emprega o termo regulação expressamente no seu texto, contudo estabelece características do sistema que direcionam para a necessidade de organização sistêmica das ações e serviços de saúde no território:

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

São princípios do Estado Regulador: descentralização da prestação dos serviços, privatização, delegação com autonomia e separação entre formulação e execução das políticas públicas. Observa-se que neste artigo da CRFB/88 já estão previstas todas as ações daí decorrentes, sendo a regulamentação um dos mecanismos de regulação, que se fundamenta em dispositivos jurídicos precisos, estabelecidos de forma vertical, normativa e unilateral, a exemplo da Lei nº 8.080 (BRASIL, 1990) que regulamenta o SUS. Os aspectos relativos à regulação do acesso aos serviços de saúde serão tratados em discussão específica, apresentada nos capítulos seguintes desta Tese.

A descentralização da prestação de serviços públicos requer, dentre outros atributos, a autonomia administrativa e financeira. Para tanto, há que se ter mecanismos que possibilitem o controle e a transparência. Nesse sentido, entende- se que as atividades regulatórias do Estado demandam transparência nos processos das centrais e agências, de forma a possibilitar a auditabilidade destes e, principalmente, o fortalecimento da participação e controle por parte da sociedade civil. Sobre tais questões dedica-se a discussão a seguir.