• Nenhum resultado encontrado

Prisão civil por dívida versus Apropriação indébita

3 PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART 2º,

3.4 Prisão civil por dívida versus Apropriação indébita

59 MACHADO, Hugo de Brito. Estudos de Direito Penal Tributário. São Paulo: Atlas, 2002. p. 26. 60 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2012. p. 48

Alguns alegam que o inciso II do art. 2º da Lei nº 8.137/90 seria um caso de apropriação indébita pelo contribuinte dos valores dos tributos devidos ao Fisco, portanto constitucional61. Veja-se o que dispõe o Código Penal sobre tal crime:

Apropriação indébita

Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

O crime de apropriação indébita consiste então em tomar para si indevidamente coisa móvel de outrem de que tinha posse ou detenção. O crime é sempre doloso, uma vez que não existe previsão para a modalidade culposa. Logo, o agente deve apresentar a intenção de se apoderar da coisa alheia, não sendo crime o mero esquecimento de devolver ou entregar o bem que esteja sob sua posse.

Rogério Greco destaca os elementos essenciais para a configuração do crime de apropriação indébita:: “a) a conduta de se apropriar de coisa alheia móvel; b) a existência de posse ou mesmo de detenção sobre a coisa por parte do agente; c) o surgimento do dolo, ou seja, do animus rem sibi habendi, após a posse ou a detenção da coisa.”62 (grifei)

Por conseguinte, a conduta, prevista no art. 2º, II, da lei nº 8.137/9063, de não recolher aos cofres públicos o valor dos tributos devidos não constitui crime de apropriação indébita, vez que o dinheiro é do contribuinte, sendo o Fisco meramente um credor. Não há, dessa forma, apoderação de coisa alheia. Existe apenas uma relação jurídica tributária entre o sujeito passivo e a Fazenda.64 Hugo de Brito Machado Segundo e Raquel Cavalcanti Ramos Machado ilustram a situação com um exemplo esclarecedor:

Suponha-se que uma pessoa jurídica faça um pagamento para uma pessoa física. Do valor contratado deverá ser retido o IRFonte. Assim, por exemplo, se uma sociedade comercial remunera professor de Direito para a elaboração de um parecer jurídico, e são contratados honorários no valor de

61 Nesse sentido: PRADO. Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 4ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2011. LOVATTO, Alecio Adão. Crimes tributários: aspectos criminais

e processuais. 3ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008.

62 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 7ª edição. Niterói: RJ: Impetus, 2010. p. 191

63 O entendimento quanto à inconstitucionalidade do art. art. 2º, II, da lei nº 8.137/90 pode ser estendido à tipificação do crime de apropriação indébita previdenciária no art. 168-A do Código Penal. No entanto, focar-se-à no primeiro dispositivo que é o objeto do presente trabalho.

64 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 33ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 504

R$ 10.000,00, a contratante deverá pagar ao contratado R$ 7.250,00, e recolher R$ 2.750,00 de IRFonte. Se o IRFonte não for recolhido, dir-se-á, estará configurado o crime previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, ainda que não tenha havido omissão, fraude, ocultação, falsificação ou adulteração de qualquer livro, documento ou declaração fiscal. Mas será que houve mesmo apropriação?

Vejamos.

Se a pessoa jurídica contratante não tivesse pago nada do que contratara com o parecerista, teria havido apropriação indébita? Não. Apenas subsistiria a dívida relativa aos honorários contratados.

E se a pessoa jurídica contratasse o pagamento dos honorários em duas parcelas, e pagasse apenas a primeira, mantendo-se inadimplente com a segunda, teria havido apropriação? Não. Apenas subsistiria a dívida relativa à segunda parte dos honorários.

Então, por que o parcelamento desses honorários, com a entrega de 72,5% ao prestador do serviço, e 27,5% ao Fisco credor desse mesmo prestador, configura apropriação? Sinceramente, não vemos qualquer diferença entre essa divisão da dívida, e o enquadramento jurídico do inadimplemento de qualquer das duas parcelas, e as duas divisões e inadimplementos apontados nos parágrafos anteriores.65

Como bem se pode observar no exemplo, a relação entre o Fisco e o contribuinte é claramente creditória e não um caso de apropriação indébita. Destarte, criminalizar o fato de o indivíduo dever ao Estado, fere frontalmente o art. 5º, LXVII, da Carta Magna que proíbe a prisão por dívida. Não pode o legislador infraconstitucional chamar de apropriação indébita, o que dívida é, sob pena de desestruturar toda lógica e coerência do sistema jurídico e de fazer letra morta dos direitos e garantias constitucionais.

A jurisprudência, entretanto, tem lamentavelmente decidido de forma diversa. É pacífico, no STF, o entendimento que o art. 168-A do Código Penal, que criminaliza mutatis mutandis a mesma conduta do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, é constitucional:

“A norma penal incriminadora da omissão no recolhimento de contribuição previdenciária - art. 168-A do Código Penal - é perfeitamente válida. Aquele que o pratica não é submetido à prisão civil por dívida, mas sim responde pela prática do delito em questão. Precedentes.” 66

Há ainda quem argumente que os valores dos tributos estariam embutidos no preço da mercadoria, tendo sido pagos, portanto, pelos consumidores. Assim o não recolhimento desses aos cofres públicos pelo fornecedor, configuraria

65 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Sanções Penais

Tributárias. In: MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Sanções Penais Tributárias. São Paulo:

Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 2005. p. 440 e 441.

66 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. HC 91704 / PR. DJ de 20 de junho de 2008. Relator:

Min. Joaquim Barbosa. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=112&dataPublicacaoDj=20/0 6/2008&incidente=2529851&codCapitulo=5&numMateria=20&codMateria=3>. Acesso em: 07/11/2013

uma apropriação indébita do tributo supostamente pago pelo consumidor ao Fisco. Esse, entretanto, é um raciocínio econômico que não pode ser aplicado diretamente nas relações jurídicas.

Se se admitir tal teoria, segundo a qual o consumidor dos produtos é o verdadeiro contribuinte do imposto e não o fornecedor, ter-se-á que concordar também que aquele é igualmente empregador, inquilino ou cliente da companhia de energia elétrica, vez que o salário dos empregados, o aluguel do local onde funciona a empresa, a energia elétrica utilizada e todas as demais despesas no exercício da atividade empresarial estão incluídas no preço final do produto67.

Nem se precisa dizer que tal raciocínio, pelo menos no âmbito das relações jurídicas, é completamente descabido. Se assim o fosse, qualquer dívida contraída no exercício de uma atividade econômica poderia configurar apropriação indébita, afinal os clientes estariam pagando por tudo que estaria sendo “apropriado” pelo dono do negócio, o que tornaria inócua a garantia constitucional que assegura a não prisão por dívida.

Mais uma vez, Hugo de Brito Machado Segundo e Raquel Cavalcanti Ramos Machado apresentam exemplo muito elucidativo sobre a questão:

Exemplificando, o advogado deve cobrar honorários que o permitam pagar o IPTU da sede de seu escritório, o ISS incidente sobre seus serviços, o material de escritório adquirido, a remuneração de uma secretária, de um contínuo, a ajuda de custo de um estagiário, a conta de energia elétrica e assim por diante. Não se pode pretender, por isso, que o não-pagamento da conta de energia, porque se trata de custo já embutido dos honorários cobrados do cliente, seja tipificado como “apropriação”. Do contrário, repita- se, o não-pagamento de toda e qualquer dívida contraída no âmbito de uma atividade econômica, se inadimplida, configuraria “apropriação”.68

Além do que, mesmo os que não reconhecem que, no caso de o contribuinte não recolher o tributo devido aos cofres públicos, há uma obrigação tributária e não uma apropriação indébita, tem que admitir que essa última exige o elemento subjetivo do dolo para a sua configuração.

Não há crime contra a ordem tributária sem dolo. Como destacam Deborah Sales e Raul Nepomuceno “é fundamental que o agente tenha praticado a

67 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 33ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 505

68 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Sanções Penais

Tributárias. In: MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Sanções Penais Tributárias. São Paulo:

conduta com a intenção de cometer sonegação, ou seja, com o conhecimento da ilicitude de sua conduta e com a vontade de praticá-la. Caso não tenha agido com dolo, torna-se atípica a conduta imputada ao contribuinte.”69

Assim, na hipótese em que o contribuinte declara os tributos que deve pagar ao Fisco, resta clara a impossibilidade de configuração do crime de apropriação indébita, uma vez que é necessária a intenção do agente em se apoderar dos valores dos tributos para que o crime ocorra.

Ora, se o sujeito declarou espontaneamente o montante devido, é certo que ele não tem a intenção de se apoderar dos valores escriturados. Se não há dolo, não há apropriação indébita, portanto não há crime70.

Logo, ainda que se admita ser o inciso II do art. 2º da lei nº 8.137/90 apropriação indébita, não se pode assentir que a conduta supracitada seja crime, pois se o dispositivo se enquadra nos casos previstos no art. 168 do CP, deve preencher os mesmos requisitos desse, entre eles o dolo, o qual está comprovadamente ausente nas hipóteses em que o contribuinte declara o que deve, nada ocultando do Fisco.

No entanto, não faz sentido entender que o legislador previu na Lei nº 8.137/90, que tem o objetivo de proteger o sistema tributário nacional, conduta já tipificada no Código Penal e sancionada com pena mais grave. Por ser mais específica, a Lei nº 8.137/90 é aplicada em detrimento do Código Penal, em razão do princípio da especialidade, então contribuintes que se apropriassem dolosamente de valores de tributos devidos ao Fisco, receberiam a pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, prevista no art. 2º da lei nº 8.137/90, em vez da pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa, prevista no art. 168 do Código Penal.

Não há lógica, portanto, na interpretação que diz ser uma apropriação indébita o inciso II do art. 2º da lei nº 8.137/90, posto que com essa visão a norma não atingiria seu fim, que é uma maior proteção ao sistema tributário pátrio. O que o legislador quis foi criminalizar a mera conduta de não pagar ao Fisco o valor do tributo devido, caindo, entretanto, em um vício de inconstitucionalidade.

69 SALES, Deborah. NEPOMUCENO, Raul. Sanções Penais Tributárias. In: MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Sanções Penais Tributárias. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 2005. p. 288

70 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 33ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 505

É importante esclarecer que não se está defendendo a impunidade do contribuinte inadimplente. Esse, claro, deve ser punido com multa e cobrado por meio de uma ação de execução fiscal, meios eficientes e aptos a atingir o fim pretendido, que é a satisfação do crédito da Fazenda. O que se está combatendo é a criminalização da dívida com sanção prisional, pena desarrazoada que fere gravemente nossa Lei Maior, a qual proíbe de forma expressa a prisão por dívida, instituto arcaico e incompatível com o Estado Democrático de Direito atual.

4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A MANIFESTAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL

Documentos relacionados