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PARTE I: REPOSICIONAMENTO TEÓRICO-PRÁTICO

2. AUTOCRACIA: ESTRUTURA DE PODER E DOMINAÇÃO

2.2 PROBLEMATIZAÇÃO DA CATEGORIA AUTOCRACIA

Se recorrermos aos dicionários e enciclopédias jurídicos e políticos, teremos como definição de autocracia “o sistema de governo no qual a vontade de um só homem é a lei suprema. Representa, pois, a fórmula de governo diametralmente oposta à democracia”.198 Sendo, por alguns teóricos, diferenciada inclusive do governo absolutista do tipo europeu, na medida em que estes “não tiveram poderes onímodos, pois estavam limitados por outras instituições”,199 tornando assim o conceito de autocracia ligado historicamente a formas de governos orientais, nos quais o poder dimana do próprio soberano, que não está submetido a qualquer tipo de instituição que o controle.

Todavia, encontramos uma segunda acepção do termo: “em um sentido genérico, autocracia expressa a antítese de democracia; em um sentido específico significa uma forma política concreta que tem seu marco de vigência histórica na Ásia”.200 Dentro desta perspectiva mais geral encontramos a definição de Hermann Heller, bastante adequada para compreensão do conceito em Florestan Fernandes:201 “A maneira como se distribui o Estado determina a forma do mesmo. Isto é aplicável, em primeiro lugar, a duas formas fundamentais de Estado. A democracia é uma estrutura de poder construída de baixo para cima; autocracia organiza o Estado de cima para baixo”.202

198 AUTOCRACIA. In: ENCICLOPEDIA jurídica Omeba. Tomo I. Buenos Aires: Editorial bibliográfica Argentina, s/d,

p. 957.

199 Ibid., pp. 957-958.

200 AUTOCRACIA. In: Nueva ENCICLOPEDIA jurídica. Tomo III, Barcelona: Francisco Seix, 1951, p. 129.

201 Florestan utiliza o autor em alguns textos, mas não especificamente para tratar do conceito de autocracia. De qualquer

forma, a definição de Hermann Heller é bastante próxima com a forma mais ampla como Florestan trata a questão sob o capitalismo dependente: autocracia como governo organizado de cima para baixo e que não está ligado apenas a um indivíduo, mas a um grupo ou extrato de classe. Um fato interessante é que Florestan tinha um exemplar do livro Teoria do

Estado, de Heller, em seu escritório de deputado federal em Brasília, além do exemplar que estava em sua biblioteca com as anotações que apresentamos abaixo.

202 “Na autocracia [...] todo o poder estatal provém do autocrata; a ele incumbe adotar todas as decisões politicamente

relevantes. [...] Na prática, o monarca absoluto e, com maior razão, o moderno ditador têm que repartir amplamente o seu poder antes de tudo, com a sua burocracia e os demais órgãos de dominação, com grupos de poder religiosos, econômicos e de outra espécie, tanto nacionais e internacionais, mas, em primeiro lugar, com a classe privilegiada e, na ditadura, por conseguinte, com a camarilha do partido ditatorial que constitui a base sustentadora do seu poder”. HELLER, Hermann

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Figura 6 – Anotações de Florestan Fernandes em uma de suas edições do livro “Teoria do Estado” de Hermann

Heller.Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

É importante ressaltarmos que o conceito de autocracia, dentro das ciências sociais, foi apropriado e funcionalizado – assim como o conceito de autoritarismo e totalitarismo – por uma análise liberal, que busca vincular o socialismo e o comunismo ao nazifascismo (um

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fenômeno capitalista, diga-se de passagem), afirmando que estes são modelos típicos de autocracia moderna – assim, lemos que: como “o Führerprinzip (princípio do chefe) formulado na Alemanha nacional-socialista. Também os governos comunistas sempre tiveram essas mesmas características autocráticas”.203 De qualquer forma – para além do uso ideológico liberal do conceito, que visa apagar as particularidades históricas e contrapô-las a um tipo ideal de democracia que inexiste fora da cabeça destas pessoas –, estes autores mantêm sempre uma definição próxima das que já mencionamos acima.204

No que tange à análise de Florestan, já em 1954, encontramos registros do autor caracterizando a forma política brasileira de autocrática, em um texto no qual utiliza esta denominação a partir de um debate jurídico. Naquele momento, buscava fundamentar que a organização política brasileira tendia para uma democracia – ainda que dentro de uma composição mista (não exclusiva), que misturava democracia com autocracia:

A ordem legal tende, na sociedade brasileira, para um padrão

organizatório democrático. Seria possível apoiar essa

caracterização na moderna tipologia jurídica, para a qual a definição de “democracia” e de “autocracia” se fundam na forma de combinação dos componentes democráticos e autocráticos do Estado, abandonando-se a antiga presunção de que tais componentes deveriam ser considerados como exclusivos ou absolutos. 205

Há uma diferença clara entre como a autocracia aparece neste texto e sua definição posterior do conceito. Nele relativiza-se o significado de oposição à democracia; tratava-se mais de um elemento herdado da organização societária anterior, predominantemente estamental, que naquele momento coabitava com a democracia, mas que tenderia a desaparecer com o desenvolvimento do capitalismo, dando lugar à democracia como modelo político próprio do modo de produção capitalista que se implantava.

Em texto do início dos anos 60, o conceito autocracia reaparece como um determinado traço da concentração do poder que caracteriza o Brasil; mas já não é tão clara neste texto a tendência constatada no momento anterior, na qual a autocracia seria um elemento que se dissiparia com o desenvolvimento do capitalismo nacional. Assim, por mais que o país ostentasse uma organização formal de república federativa, a partir de um sistema de governo autodenominado democrático, Florestan destacava, agora, a forte característica autocrática

203 AUTOCRACIA. In: DICIONÁRIO de Política. São Paulo: T. A. Queiroz, 1998, p. 49.

204 “Uma autocracia é qualquer sistema político em que os dirigentes são insuficientemente – ou nada – submetidos a

regulamentos antecedentes e obrigatórios impostos por outra autoridade que participam no governo e tem poder suficiente para compelir os dirigentes infratores a se submeterem à lei”. FRIEDRICH, Carl; BREZEZENSKI, Zbigniew. Totalitarismo

e autocracia. Rio de Janeiro: GRD, 1965, p. 14.

205 FERNANDES, Florestan. Existe uma crise da democracia brasileira? (1954). In: Ib., Mudanças sociais no Brasil. São

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que prevalecia na prática. Tais características estavam estruturalmente vinculadas aos valores das classes dominantes brasileiras, de origem estamental, que refletia a concentração econômica e de poder.

Atrás dessas noções, temos uma opção pela mudança social que pretende submeter as forças que alteram a estrutura e a organização da sociedade brasileira aos interesses e aos valores sociais de camadas tradicionalmente acostumadas à estabilidade social e ao que ela sempre ocultou no Brasil: extrema iniqüidade na distribuição da terra, da renda e das garantias sociais; operação automática de controles sociais que regulavam ou dissimulavam as tensões sociais, por meio da dominação autocrática dos poderosos e da acomodação passiva dos subordinados; identificação das fontes de lealdade através de relações pessoais e diretas, objetiváveis no âmbito da família, da parentela ou de grupos locais e regionais.206 Mas será no momento em que Florestan se depara com o “golpe dentro do golpe”, em 1968, e ao concluir sua resposta teórica a este, que este traço autocrático será apresentado como elemento estrutural inerente a composição do capitalismo dependente. Não se trata mais de um resquício indesejado de organização societária anterior, que tendia a se retrair na medida em que a racionalidade capitalista impusesse seus padrões democráticos. No caso dos países dependentes, a autocracia é o garante da sobrevivência do próprio capitalismo dependente, fazendo parte de sua estrutura elementar.

Temos que ter em mente que para ressaltar este aspecto autocrático na composição do “modelo brasileiro”, Florestan lançou mãos, em grande medida, do pensamento weberiano. Como havíamos afirmado, o sociólogo paulista já destacava a importância de Weber para análise do subdesenvolvimento, pelo menos, desde os anos 60. Considerava “sua caracterização formal de ‘situação de classe’” como “um verdadeiro marco na história da Sociologia”:

Além disso, entre todos os sociólogos clássicos, Weber é o que oferece a explicação mais límpida e simples da ordem social inerente ao capitalismo e à estratificação em classes, como uma ordem social de “possuidores” e “não possuidores”, fundada em interesses univocamente econômicos. [...]

A parte mais importante da contribuição conceptual e teórica de Weber, para o estudo das sociedades capitalistas subdesenvolvidas, está em suas análises e explicações do poder e das formas de dominação.207

206 FERNANDES, Florestan. Reflexões sobre a mudança social no Brasil (1962). In: Ib., A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro Zahar, 1976, p. 215. Grifos nossoss.

207 FERNADES, Florestan. Sociedade de Classe e subdesenvolvimento (1967); In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, pp. 40-41.

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Apesar da afirmação acima haver sido feita em 1967, não nos parece que a avaliação do autor tenha mudado até o momento da publicação de A revolução burguesa, obra em que trata de forma mais abrangente o conceito de autocracia. Antes da publicação do livro, Florestan escreve um artigo que serve como uma “introdução à terceira parte de um livro, em fase final de preparação, sobre a revolução burguesa no Brasil”, no qual lemos de início:

Na acepção em que tomamos o conceito, revolução burguesa denota o conjunto de transformações econômicas, sociais, psico-culturais e políticas que só se realizam quando o desenvolvimento capitalista atinge o clímax de sua revolução industrial. Há, porém, um ponto de partida e um ponto de chegada, e é extremamente difícil localizar-se o momento em que essa revolução alcança um patamar histórico irreversível, de plena maturidade e, ao mesmo tempo, de

consolidação do poder burguês e da dominação burguesa.208

Lembremos que o tipo ideal weberiano de poder seria a probabilidade de imposição da vontade mesmo contra a resistência alheia, enquanto a dominação seria a probabilidade de encontrar obediência. Esta compreensão, no entanto, pode acarretar conseqüências problemáticas do ponto de vista marxista, como argumenta Hirst, “longe de propiciar uma classificação rigorosa por meio de análise das formas do domínio estatal e político, os tipos weberianos mistificam a ‘dominação’”, na medida em que desloca as relações concretas relacionadas da estrutura do Estado e de suas condições sociais para uma relação intersubjetiva onde “a legitimidade torna-se o problema fundamental nessa teoria política porque o poder depende do consentimento – a dominação baseada na força não poderia sobreviver por muito tempo”.209

Na utilização de Florestan, vemos que o autor, no geral, não foge das relações concretas e tampouco usa a legitimação como um paliativo ou relativismo; mas sim tenta compreendê-la como uma necessidade concreta da classe burguesa, no intuito da auto- conservação. Assim, resgata, como de costume, os elementos que lhe parecem positivos para a composição de seus esquemas teóricos:

Ao contrário de outras burguesias, que forjaram instituições próprias de poder especificamente social e só usaram o Estado para arranjos mais complicados e específicos, a nossa burguesia converge para o Estado e faz a unificação no plano político, antes de converter a dominação sócio-econômica no que Weber entendia como “poder político indireto”. As próprias “associações de classe”, acima dos interesses imediatos das categorias econômicas envolvidas, visavam a exercer a pressão e influência sobre o Estado

208 Ib., Revolução burguesa e capitalismo dependente (1973). In: Revista Debate & Crítica, nº 1. São Paulo: Hucitec, 1973, p.

48. Grifos do autor.

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e, de modo mais concreto, orientar e controlar a aplicação do poder político estatal, de acordo com seus fins particulares.210

Para Luis Werneck Vianna, Florestan está entre aqueles autores que, através de uma leitura weberiana, “identificam os elementos quase asiáticos que teriam presidido a formação do Estado nacional, em razão do transplante do patrimonialismo de Estado português, como a raiz dos nossos males”;211 uma vez que trata “o Estado [...] como a única entidade que podia ser manipulável desde o início [...] com vistas à sua progressiva adaptação à filosofia política do liberalismo”.212 Vianna refaz a argumentação de Florestan do desdobramento capitalista no Brasil, pontuando sua “chave weberiana” e apontando, por exemplo, como se dá, em Florestan, a transição da ordem senhorial para a ordem competitiva, tendo como referencial heurístico os “tipos de dominação e das modalidades expressivas de ação que cada um deles comporta, implicando um processo progressivo de realização do moderno em que, por meio da diferenciação societal”.213

De fato, em grande medida, veremos que Florestan tem como referência o conceito weberiano, o qual considera ter “uma evidente influência de Marx”, sem que com isso Marx tenha limitado “nem a originalidade nem a fecundidade do uso que lhe deu Max Weber”214e o momento mais fecunda da análise de Weber seria a definição da “situação de classe”,

Que podemos expressar sucintamente como a oportunidade típica de uma oferta de bens, de condição de vida exteriores e experiências pessoais de vida, e na medida em que essa oportunidade é determinada pelo volume e tipo de poder, ou pela falta deles de dispor de bens ou habilidades em benefício de renda de uma determinada ordem econômica. A palavra classe se refere a qualquer grupo de pessoas que se encontrem na mesma situação de classe.215

Como veremos mais à frente, esta influência weberiana na forma que Florestan desenvolve sua concepção de estratificação social terá importantes papeis na teorização da revolução burguesa no Brasil, conseqüentemente, na conceituação de autocracia.

210 FERNADES, Florestan. Revolução burguesa e capitalismo dependente (1973). In: Revista Debate & Crítica, nº 1. São

Paulo: Hucitec, 1973, p. 49.

211 VIANNA, Luis Werneck.Weber e a interpretação do Brasil, 1999, p7. In: http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=85

212 Florestan FERNANDES apud VIANNA, Luis Werneck.Ibidem. 213 Ibidem.

214 FERNANDES, Florestan. Sociedade de Classe e subdesenvolvimento (1967); In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 40. (nota 16)

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Figura 7 – Ficha de 31 ago. 74, com o título: Classes Sociais no Brasil.

Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. Na ficha acima lemos:

1) O que é uma sociedade de classes: produção capitalista X estratificação social X dominação de classe (Estado e Nação X controle burguês do Estado). Base material = relações capitalistas X modo capitalista de produção: mais valia (absoluta e relativa); reprodução do trabalho, da força do trabalho e de todo o sistema.216 Apesar de bastante esquemático, este item demonstra a fusão que o autor faz de elementos weberianos e marxistas para compor a “sociedade de classe”, definindo a base material a partir de elementos marxistas, mas incorporando dois elementos weberianos: estratificação social e dominação de classe. Neste sentido a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda parece ser bastante correta ao escrever:

No seu entendimento, a noção adquire um hibridismo do ponto de vista teórico ao combinar a tradição weberiana e marxista [...]. Vale dizer, a situação de mercado entrecruza-se com critérios forjados no

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âmbito da produção. Numa análise marxista clássica, o mercado é a aparência de momentos anteriores e, nesse sentido, é determinada pelos mecanismos de produção. É no interior da ordem social competitiva que as classificações positivas e negativas ocorrem, análise inspirada em Max Weber. [...] Por isso, a ordem social competitiva, em sociedades capitalistas como a brasileira, é fluída, do ponto de vista das diferenças e solidariedades de classes, além de diversificar aspirações e valores sociais.217

Por outro lado, em um sentido mais específico, Marx e, principalmente, Lenin parecem ter influenciado também no desenvolvimento do conceito autocracia.

Na verdade, parece-nos pouco provável que Florestan parta de Marx para resgatar o termo autocracia, já que, em Marx, o termo não chega a ganhar uma dimensão conceitual. Suas poucas utilizações que temos notícia estão ligadas a ideia de despotismo e absolutismo, como, por exemplo, encontramos em suas analises da “miséria alemã” – isto é, da Alemanha ainda aristocrata e feudal, em seus artigos da Nova Gazeta Renana, como vemos nas passagens abaixo:

Nós queremos a unidade alemã, mas somente com o estilhaçamento da grande monarquia alemã os elementos para esta unidade poderão ser isolados. Somente na tempestade da guerra e da revolução poderão ser amalgamados. Mas o constitucionalismo desaparece por si mesmo assim que a palavra dos acontecimentos disser:

autocracia ou república. 218

Marx utiliza autocracia, nesta argumentação, vinculada à aristocracia feudal e em oposição à república; portanto, muito próximo às definições que apresentamos no âmbito jurídico e político contemporâneo. No entanto, em O Capital, o autor também faz uso do termo, mas agora para outra situação que talvez permita que o conceito ganhe o que nos parece seu sentido mais preciso, pois demonstra como “esse poder dos reis asiáticos egípcios ou dos teocratas etruscos etc. transferiu-se na sociedade moderna para o capitalista, atue ele isolado ou como capitalista coletivo em associações como a sociedade anônima”:219

Através do código da fábrica, o capital formula, legislando particular e arbitrariamente, sua autocracia sobre os trabalhadores, pondo de lado a divisão dos poderes tão proclamada pela burguesia e o mais proclamado ainda regime representativo [...] O capital, aberta e tendenciosamente, proclama-a [a máquina] o poder inimigo do trabalhador, manejando-a em função desse atributo. Ela se torna a arma mais poderosa para reprimir as revoltas periódicas e as greves dos trabalhadores contra a autocracia do capital.220

217 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. São Paulo: Edusc,

2001, pp. 290-291.

218 MARX, Karl. Ameaça da Gazeta de Gervinus. Nova Gazeta Renana nº 25, 25 jun. 1848. In: Ib., Nova Gazeta Renana. São

Paulo: Educ, 2010, p. 119. Grifos do autor.

219 Ib., O Capital: critica da economia política, livro I. São Paulo: Difel, 1984, p. 383.

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Neste outro sentido, o próprio capital aparece como poder autocrático, despótico, dentro da relação capital/trabalho; mesmo que este esteja imerso em um regime representativo nos moldes clássicos da democracia burguesa. Assim, o pensamento liberal, ao criticar as sociedades não “democráticas”, autoritárias e autoritaristas, não fazem mais que temer que a sociedade como um todo se torne uma empresa capitalista.

Outro autor dentro da tradição marxista que faz uso do termo autoritarismo, mas que parece haver influenciado mais diretamente a adoção deste como aspecto estrutural na análise florestaniana, é Lenin, como nos indica Coutinho:

Indagado sobre as razões do uso desse termo por Florestan, o amigo Octavio Ianni me deu uma explicação convincente: o autor de RBB [A Revolução Burguesa no Brasil] teria se valido de uma expressão cunhada por Lenin para caracterizar a autocracia czarista em sua última fase, quando – sem deixar de ser autocrático (o czar se dizia mesmo “autocrata de todas as Rússias”) – o czarismo já atuava essencialmente como um Estado burguês. Insisto, porém, em que a “licença poética” a que Florestan recorreu não anula de nenhum modo a sua correta caracterização conteudística do poder ditatorial resultante do golpe de 1964.221

Como vemos, Coutinho entende a utilização do termo autocracia por Florestan como uma licença poética, devido ao fato do autor incorporar em sua caracterização da política brasileira um termo específico da situação histórica de Lenin.222 Mas cumpre questionarmos: Florestan era dado a licenças poéticas ao tratar de uma conceituação teórica tão amplamente utilizada em seu repertório?

Além disso, ao que tudo indica, Florestan não “importa” termos que ele considere de relevância apenas a uma particularidade histórica, como é o caso do termo bonapartismo. Florestan não utiliza este termo por acreditar que a utilização que Marx faz da expressão está ligada a particularidade francesa – se opondo, desta forma, a Engels e a Lenin que o utilizam em outras situações:

Tenho a segura convicção de que Marx formulara o seu pensamento com vistas à forma concorrencial ou competitiva de capitalismo e que ele, pela tendência a pesar as palavras que emprega, não endossaria a transformação subseqüente de um conceito histórico em um conceito abstrato e de validade geral. A ditadura militar, em qualquer circunstância, sempre terá algumas (ou várias) semelhanças estruturais e funcionais com o tipo de ditadura militar

221 COUTINHO, Carlos Nelson. Op. Cit., p. 258.

222 Outro autor que questiona a utilização da autocracia é Marcos Del Roio que afirma que “etimologicamente, autocracia é

expressão adequada ao poder absoluto de um indivíduo e não se presta tão bem para definir o poder de uma classe social”. DEL ROIO, Marco. A teoria da revolução burguesa – tentativa de particularização de uma revolução burguesa em processo. In: DEL ROIO, Marcos; MORAES, João Quartim (org.). História do marxismo no Brasil: visões do Brasil, vol. 4. Campinas: