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ERNANDES: A AUTOCRACIA BURGUESA COMO ESTRUTURA HISTÓRICA E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CONTRA- REVOLUÇÃO NOB RASIL

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História

Rodrigo Pereira Chagas

F

LORESTAN

F

ERNANDES

:

A AUTOCRACIA BURGUESA COMO ESTRUTURA HISTÓRICA E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CONTRA

-

REVOLUÇÃO NO

B

RASIL

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História

Rodrigo Pereira Chagas

F

LORESTAN

F

ERNANDES

:

A AUTOCRACIA BURGUESA COMO ESTRUTURA HISTÓRICA E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CONTRA

-

REVOLUÇÃO NO

B

RASIL

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em História Social, sob a orientação do Prof. Doutor Antonio Rago Filho.

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AGRADECIMENTOS

Como cabe a todo trabalho autoral, assumo os prováveis erros da pesquisa e tentarei destacar sempre que possível, no corpo do texto, as contribuições teóricas e técnicas que recebi para os eventuais acertos. Além disso, cito abaixo alguns nomes de pessoas das quais recebi, direta ou indiretamente, importantes contribuições neste processo de mestrado.

Para realizar esta pesquisa recebi apoios múltiplos em níveis e dimensões variados. Infelizmente corro o risco de cometer injustiças ao arrolar nomes, no entanto, injustiça maior seria deixar de fazê-lo, uma vez que, sem estes diversificados apoios – e um punhado de sorte – jamais teria conseguido realizar um trabalho dentro da estrutura acadêmica que impera no país.

De saída, devo agradecer ao apoio financeiro do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), fundos públicos, que me garantiu as condições mínimas para reproduzir minha vida com alguma dignidade durante o processo todo.

Ao meu orientador e amigo, o Prof. Dr. Antonio Rago Filho, deixo expressa aqui a gratidão por sua honestidade de grande intelectual, sua distinção humana, estímulo e apoio incondicionais.

À Prof. Dra. Vera Lucia Vieira, agradeço pela participação em minhas bancas de qualificação e defesa, bem como, pelo incansável incentivo e apoio a todos os alunos da Pós-Graduação em história da PUC/SP que enfrentam as mais diversas dificuldades para pesquisar a violência que estrutura, tragicamente, a sociedade brasileira e latino-americana.

Com a Prof. Dra. Lívia Cotrim minha dívida é imensurável. Aqui, limito-me a agradecer pela paciência de ter me orientado durante a graduação e de ter aceitado participar como professora convidada de minhas bancas de qualificação e defesa.

Em grande medida só pude realizar este trabalho por ter feito minha graduação no Curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André, curso que vem resistindo bravamente à mercantilização da educação e mantendo firme um compromisso com os problemas humanos e o posicionamento crítico radical. Assim, agradeço aos alunos e professores deste curso, em especial, à Prof. Dra. Terezinha Ferrari e ao Prof. Dr. Ivan Cotrim.

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especialmente, Vitor Lacerda, por nossos debates incansáveis e pela honesta amizade firmada em tão pouco tempo.

Para além das instituições formais, dois grupos de grande liberdade de pensamento foram importantíssimos em minha trajetória nestes dois anos: a Escola Livre de Ciências Humanas e Artese o Grupo de Leitura do Sumaré.

No primeiro contei com o companheirismo de toda uma rapaziada: Fabão, Lídia, Michel, Bruna, Digo e, destacadamente, João Paulo Alves Craveiro (Joãozinho), um alegre companheiro para todos os momentos. Ainda vinculado à Escola Livre tive um enriquecimento intelectual maravilhoso junto ao Grupo de Estudos de Estética e Ontologia, com amigos tão expressivos como Leandro Candido, Vladimir Luis da Silva e Fábio Roberto Ribeiro. Deixo aqui também minha sincera gratidão e amizade a um personagem marcante da Escola Livre: o grande pintor brasileiro Gontran Guanaes Netto que, desde seu exílio institucionalizado, nos deu exemplos vivos das profundas feridas que a ditadura militar deixou em nossa cultura.

No segundo, o Grupo de Leitura do Sumaré, recebi contribuições estimulantes e agradeço a todos que por lá passaram, mas principalmente ao pessoal que permaneceu: Tadeu, Renata, Frida, Rodolfo e um “arô” especial ao economista Carlos Alberto Cordovano Vieira, que criou o grupo e gentilmente me convidou para participar das reuniões.

É bom lembrar que ao se objetivar uma formação intelectual que fuja da mera afirmação do que o mundo é e vem sendo, faz-se necessária toda uma rede social que permita ao indivíduo manter algum grau coerência e respaldo humano. Neste ponto não só os amigos que compartilham diretamente do trabalho e dos grupos de pesquisas são essenciais; principalmente porque estes não se limitam apenas à esfera “acadêmica”.

Sinto-me, assim, agraciado, já que conto com tantos amigos e colegas que são verdadeiros críticos da realidade social vigente, cada um à sua maneira. Um grande abraço a: Beto, Tati, Diogo, Talita, Alexandre de Paula, Luciano Dutra, Roberto Candido e Leandro de Morais Silva. Danilo Amorim merece menção especial pelas discussões infindas – nos grupos de estudos ou por telefone – e pelos livros que já nem sabe mais estarem comigo.

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Norberto, meu padrasto. Um abraço especial a Sonia Maria Moretti, minha querida mãe, que ouviu sem querer, ou poder fugir, meus delírios cafeínicos sobre temas que tanto domina e preza em sua vida cotidiana, como Florestan Fernandes, política e economia brasileira.

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RESUMO

Nossa pesquisa buscou resgatar, através do ideário do sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), sua compreensão sobre o processo comumente denominado “transição” ou “abertura democrática” no Brasil (1974-1988) – processo que participou como agente privilegiado, partindo de uma análise altamente elaborada sobre as estruturas sociais brasileiras e atuando diretamente como intelectual orgânico “dos de baixo” em atividades como: professor, publicista e deputado federal.

No conjunto deste ideário, visualizamos uma atividade intensa e esperançosa, mas de grandes desilusões; que amargam a institucionalização da ditadura militar (contra-revolução) no Brasil e a manutenção de estruturas arcaicas através de “modernizações conservadoras”, conjugadas à repressão e afastamento sistemáticos da participação popular no “destino da Nação”.

O trabalho dá destaque a dois momentos que compõem o ideário florestaniano: por um lado, resgata alguns aspectos teóricos estruturais, principalmente, sua concepção de autocracia burguesa; e, por outro, apresenta sua face teórico-prática, que corresponde à “história dinâmica” da luta de classes.

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ABSTRACT

The object of this study is to examine, within the framework of the ideology upheld by the Sociologist Florestan Fernandes (1920-1995), his understanding of the process commonly known as “transition” or “political opening” in Brazil (1974-1988) – where he participated as a privileged agent, setting forth a highly elaborated analysis of Brazilian social structures and functioning as an organic intellectual “dos de baixo”in activities such as: professor, publicist and deputy.

Within this framework, we visualize an intense and promising activity but often leading to deep disappointment that discourage the institutionalization of the military dictatorship (counter-revolution) in Brazil and the preservation of archaic structures through “conservative modernization”, combined with the systematic repression and refrain from popular participation in the “nation’s destiny”.

This study emphasizes two aspects that reflect Florestan Fernandes´ ideas: it examines some structural theoretical concepts, particularly, his conception of bourgeois autocracy on the one hand; and introduces his theoretical-practical facet that corresponds with the “dynamic history” of the struggle of classes.

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS...10

INTRODUÇÃO ...12

PARTE I: REPOSICIONAMENTO TEÓRICO-PRÁTICO ...17

1. A CORREÇÃO SOCIALISTA DA SOCIOLOGIA ...19

1.1 NOS QUADROS DA RUPTURA ...22

1.2 DUPLA CONDIÇÃO ...31

1.3 A ANÁLISE ESTRUTURAL-HISTÓRICA E A HISTÓRIA EM PROCESSO ...48

2. AUTOCRACIA: ESTRUTURA DE PODER E DOMINAÇÃO...63

2.1 A “REVOLUÇÃO BURGUESA” E A TRANSFORMAÇÃO CAPITALISTA NO BRASIL...64

2.2 PROBLEMATIZAÇÃO DA CATEGORIA AUTOCRACIA...85

2.3 BASES SOCIAIS E SIGNIFICADO DA DITADURA MILITAR: A CONTRA-REVOLUÇÃO PREVENTIVA107 PARTE II: A HISTÓRIA EM PROCESSO ...123

3. DISTENÇÃO: LENTA, GRADUAL E SEGURA...124

3.1 IMOBILIDADE E DINAMIZAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES...131

3.2 DESOBEDIÊNCIA CIVIL...141

3.3 AS GREVES NO ABC...145

3.4 UM DEBATE DA ESQUERDA ...150

3.5 OS NOVOS PARTIDOS ...156

3.6 CLASSE E PARTIDO...164

3.7 A DITADURA E OS PARTIDOS ...168

3.8 REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA E PARTIDOS OPERÁRIOS...173

3.9 AS DIRETAS-JÁ!...186

3.10 A TRANSIÇÃO TRANSADA...197

4. A REFORMA DA REVOLUÇÃO E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LUTA...208

4.1 A ADESÃO AO PT ...208

4.2 A CAMPANHA PARA O PLEITO DE 1986 ...216

4.3 PIVÔS POLÍTICO-IDEOLÓGICOS ...232

4.4 OS TRABALHOS DA CONSTITUINTE ...238

4.5 NOTÍCIAS E ESTRATÉGIAS DA CONSTITUINTE ...250

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Manuscrito em pedaço solto de papel...18

Figura 2 – Carta a Antonio Candido...31

Figura 3 – Fichamento: A domesticação dos intelectuais...38

Figura 4 – Fichamento: The Social Costs of Development...66

Figura 5 – Fichamento: A dominação externa no Brasil...77

Figura 6 – Glosas marginais em Teoria do Estado...86

Figura 7 – Fichamento: Classes sociais no Brasil...91

Figura 8 – Glosas marginais em 18 Brumário...94

Figura 9 – Fichamento: O “modelo de desenvolvimento” brasileiro....128

Figura 10 – Recorte de jornal: Florestan é proibido de falar......128

Figura 11– Fichamento: Conjuntura nacional......151

Figura 12 – Recorte de jornal: Homenagem......179

Figura 13 – Fotografia: Revista Ensaio......179

Figura 14 – Fichamento: O significado das eleições......182

Figura 15 – Material de Campanhas: Convite......220

Figura 16 – Fotografia: Lançamento da Campanha de 1986......221

Figura 17 – Material de Campanhas: Folheto......225

Figura 18 – Material de Campanhas: Charge – Pelo socialismo......226

Figura 19 – Material de Campanhas: Charge – Constituinte......227

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Nada de revolução democrática de conteúdo proletário e de base popular. Se o controle burguês do Estado colide com a revolução democrática, pior para a democracia... Pois a ditadura militar não é a única via de preservação ou reciclagem da autocracia burguesa.

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INTRODUÇÃO

O objetivo inicial deste trabalho visava à análise da “abertura democrática”, tendo como baliza temporal o período de 1984 a 1994 e, como objeto específico, os discursos de Florestan Fernandes. Particularmente, visávamos resgatar as problematizações feitas pelo sociólogo paulista sobre a “transição transada”, a “nova República” e o caráter conciliatório e antidemocrático da “abertura”, em sua fase final. Tais objetivos foram delineados a partir da pesquisa de iniciação científica, realizada durante o processo de graduação em Ciências Sociais.1

No entanto, com o desenrolar da pesquisa de mestrado, percebemos a necessidade de aprofundarmos mais um recorte semelhante ao trabalhado em nossa iniciação científica, devido, por um lado, à amplitude e complexidade do ideário florestaniano e, por outro, à própria importância histórica do período. Foi possível, desta forma, corrigir uma série de equívocos e desdobrar vários elementos centrais para a temática proposta e, assim, compreendermos melhor o cerne da “transição” criticada por Florestan.

Outro elemento importante, que nos levou a manter o recorte cronológico anterior, foi o fato de resgatarmos um amplo conjunto de documentos, dentre eles gravações e manuscritos inéditos, bem como, artigos e entrevistas de difícil acesso, que permitiram ampliar a discussão do período. Na verdade, fizemos o resgate e sistematização de uma documentação bastante significativa de um período maior, que vai até 1995 (quando o autor morre), mas não tivemos fôlego o suficiente para incorporar ao trabalho todo este material – deixaremos apenas algumas indicações sobre o tema ao longo do trabalho e em nossas considerações finais. De qualquer forma, ter resgatado todo o processo, nos deu uma compreensão imprescindível para a composição da análise exposta neste trabalho. Destarte, o material que apresentamos no corpo do texto dá mostra da rica documentação que, em grande medida, aguarda por pesquisadores no ótimo acervo da Biblioteca Municipal da Universidade Federal de São Carlos.2

1 Iniciação científica realizada no CUFSA sob o título: A “abertura democrática” no ideário de Florestan Fernandes:

1974-1989; com orientação da Prof.ª Dra. Lívia Cotrim e contando com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.

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Saindo desta esfera do trabalho técnico, em grande medida “braçal”, é importante ressaltar que partimos, como é próprio da academia, de alguns “referenciais metodológicos” e sobre eles gostaríamos de esclarecer alguns pontos gerais, que poderão ajudar o leitor a melhor compreender nossa posição.

Podemos dizer que nossa “metodologia” de trabalho compartilha com Florestan Fernandes do referencial do marxismo; mas, apesar disso, possuímos também algumas diferenças específicas que valem a pena serem apontadas – uma “questão de método” que só tem importância de ser aventada pelo fato de que a proximidade de nossos referenciais poderia criar ambigüidades e imputações que são sempre indevidas nesse tipo de trabalho e, sinceramente, indesejáveis de nossa parte. Obviamente que, ao fazer isso, não tratamos de nos comparar a Florestan Fernandes – autor muitíssimo superior, com sólida formação intelectual e incrível erudição –, buscamos apenas esclarecer nossa posição.

Ao desenvolver suas análises, Florestan resgata uma “imaginação sociológica” e a aplicação de um vastíssimo e rigoroso repertório técnico-metodológico próprio da sociologia, compondo o que Gabriel Cohn chamou de “ecletismo bem temperado”.3 Procedimento metodológico que não será encontrado em nossa pesquisa. Não queremos, com isso, dizer, como se poderia supor, que partimos de outro recorte epistemológico como, por exemplo, o da ciência da história; mas apenas que buscamos não partir, como tais recortes acadêmicos geralmente impõem, de um posicionamento gnosiológico a priori.

Nossa referência “metodológica” é pautada pelo resgate do caráter ontológico da obra de Karl Marx realizado por Georg Lukács e desdobrado pelo filosofo brasileiro José Chasin – que extraiu da obra de Marx a teoria das abstrações, posicionando as categorias marxianas em um estatuto ontológico.4 De forma simplificada, podemos dizer que buscamos pesquisar a lógica específica do objeto específico, evitando imputar à pesquisa elementos cognitivos – para o arrepio dos hermeneutas tão em voga.

3 “Neste livro [A revolução burguesa no Brasil] a sua modalidade própria de ecletismo, temperado (ele próprio, em outro momento, fala de “ecletismo balanceado”), não está na construção deste ou daquele conceito: está no modo como ele incorpora as diversas vertentes metodológicas e teóricas na própria análise”. COHN, Gabriel. Ecletismo bem temperado. In: D’INCAO, Maria Angela. (org.) O saber militante. São Paulo: Unesp / Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987, p. 51.

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Neste sentido, não foi nosso objetivo trabalhar através de tipificações e modelos que possibilitem análises sincrônicas ou aplicar a dialética para dar conta de elementos diacrônicos, dos quais deduziríamos contradições e sínteses; menos ainda, partiremos de um referencial estrutural funcionalista ou de demais recursos habitualmente utilizados pelos sociólogos.

Dentro de nosso marco referencial, poderíamos apontar, de forma um pouco mais precisa, que nossa pesquisa buscou realizar uma análise imanente ou genética dos discursos de Florestan Fernandes, articulada, na medida do possível, a sua gênese e funções sociais. Na medida do possível, porque o ponto essencial de uma análise com esta é o resgate dos elementos internos ao próprio discurso analisado como fio condutor dos dois outros momentos analíticos; o resgate da gênese e das funções sociais serão sempre limitados, de forma mais intensa, por uma série de contingências, que vão desde a conjuntura da realização do trabalho e a capacidade do pesquisador, até o nível de avanço das pesquisas sobre a variedade de temas que compõem tais elementos.

Esta forma específica de proceder, como já pontuamos, é estranha à concepção de método de Florestan, que, apesar de ampliar continuamente sua ligação com o marxismo, sempre tomou como referência o recorte epistemológico da sociologia. O que deve ficar claro é que este fato não impediu que Florestan tenha feito um trabalho de fundamental importância, mesmo em seu momento mais profundamente “academicista”, apenas sugerimos que tal procedimento pode ter levado a possíveis distorções, que, em muitos casos, ele mesmo indicou – como veremos na pesquisa.

Em contrapartida, se, por um lado, Florestan parte de um tratamento metodológico apriorístico para questionar seu objeto de análise, no geral, não deixa de realizar o caminho contrário, questionando a validade do método através da observação do objeto analisado. Posiciona-se como artesão de uma sociologia própria – crítica, antes mesmo de ser “militante” – que não se limita meramente a aplicar métodos variados, mas também a confeccioná-los e a extrair deles os instrumentos que atendam às necessidades particulares da realidade social que analisa. Tampouco o sociólogo foi contaminado pela ojeriza, já mais que expressiva em sua época, da “verdade” como finalidade científica.

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– momento que trataremos no primeiro capítulo da pesquisa –, justamente porque “o tipo de trabalho que ele realizou e estimulou [...] debruçou-se sistematicamente sobre os processos sociais ocorrentes na sociedade brasileira. E foi com referência a esta pesquisa do real que Florestan dedicou-se a apurar o instrumento analítico sociológico”.5

Que não haja lugar à dúvida: consideramos as contribuições teóricas de Florestan Fernandes, no período em que analisamos, como uma das melhores que o pensamento de esquerda produziu no Brasil – em grande medida, podemos afirmar que, neste trabalho, não fazemos mais do que dissertar sobre esta contribuição.

No que diz respeito à organização do trabalho, ele está dividido em duas partes. A primeira é resultado de nosso esforço para entender os conceitos chaves e o reposicionamento de Florestan Fernandes em relação a suas atividades teórico-práticas. Para atingir este objetivo, buscamos comparar e problematizar as ideias de Florestan em relação às de alguns de seus intérpretes e com outros pensadores que abordaram problemas teóricos próximos aos trabalhados pelo sociólogo – ao esbater posições teóricas diversas, não tínhamos outra intenção senão a de demarcar melhor a especificidade do pensamento do próprio Florestan Fernandes.

Obviamente, não esgotamos os vários aspectos presentes na obra florestaniana; nosso interesse foi resgatar apenas os conceitos que nos pareceram mais importantes à devida compreensão de seu ideário relacionado ao tema de nossa pesquisa: assim, no primeiro capítulo, problematizamos a chamada “ruptura” ou radicalização, realizada pelo autor, como ponto de partida para uma re-interpretação do Brasil e que gerou uma renovação de seu posicionamento teórico. Já, no segundo capítulo, resgatamos o entendimento do autor sobre a modernização da autocracia no Brasil – a autocracia burguesa –, principal característica de dominação de classe que perpetua as estrutura históricas arcaicas no país.

Na segunda parte, acompanhamos o desenvolvimento das concepções teóricas de Florestan em sua aplicação a problemas concretos – procedimentos que acabam constituindo seu ideário sobre a “abertura política”, ou melhor, sobre a institucionalização da contra-revolução. Neste segundo caso, também lançamos mãos de outros pensadores, mas agora cumprindo, principalmente, a função de contextualização dos momentos históricos. E aqui, vale uma ressalva, ao aproximarmos ou complementarmos a interpretação de Florestan com a de outros autores – como, por exemplo, José Chasin, René Dreifuss, entre outros – não

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estamos igualando ou pareando as contribuições, mas simplesmente mostrando possíveis nexos e complementações entre elas e, mesmo assim, sempre que nos pareceu necessário, tentamos particularizar a posição de Florestan. Por outro lado, chegamos a receber críticas de amigos apontando, nesta segunda parte, que não aparece claramente qual é a nossa posição em relação à posição de Florestan Fernandes; fato que tentamos reparar na medida do possível, mas a partir do qual devemos lembrar que, em grande medida, estamos construindo “uma posição” justamente neste processo e vários dos elementos que trazemos através da análise de Florestan ou nos pareceram, de fato, a resposta mais adequada às questões abordadas, ou simplesmente não tivemos condições para criticá-los. Repito, como objetivo principal, tentamos demonstrar a posição de Florestan; este é o primeiro passo de qualquer crítica positiva e o passo que nos coube de forma bastante limítrofe nesta pesquisa.

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PARTE I:

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4

1.

A CORREÇÃO SOCIALISTA DA SOCIOLOGIA

Absolutamente. Continuo marxista. Continuo a defender minhas posições de extrema esquerda. Serei sempre um radical, mas sei que a gente não chega à lua sem mais nem menos. (Florestan Fernandes, Revista Tempo Social, 1995)

A socióloga Amélia Cohn, ao finalizar sua apresentação de sua organização de textos de Florestan Fernandes que vão de 1968 a 1995, demonstra que o autor perseguia sistemática e metodologicamente as possibilidades históricas de geração de uma cidadania universal – ou seja, de uma cidadania que chegasse “aos de baixo” – e conclui seu escrito reforçando que o sociólogo buscava este objetivo: “sempre, claro, da perspectiva democrática, e, de preferência, socialista”.1

Se observarmos o desenvolvimento da obra de Florestan dos anos 70 até sua morte, veremos que seria conveniente, para sermos mais fiéis ao seu discurso, uma pequena alteração: sua perspectiva, neste período, foi a do socialismo como principal (senão única) possibilidade de o Brasil (e a América Latina) efetivamente iniciar uma rota democrática.2

A democracia em Florestan Fernandes não é um valor em si ou uma palavra de ordem que deva ser defendida a todo custo; não é uma ideia ou formalismo anistórico; mas sim uma condição concreta, “forma política de organização do poder, que pode assumir realidades históricas variáveis”3 e que nasce e é sustentada por relações estrutural-históricas complexas. Este posicionamento leva o autor a uma recorrente adjetivação da democracia, que aparece como: burguesa, socialista, restrita, ampliada, real, popular, etc. Isto para fugir de uma falsa dicotomia entre o formalismo democrático e a prática democrática efetiva, que se realiza ou não historicamente (em sua particularidade) e estruturalmente (em sua universalidade).

1 COHN, Amélia (org.). Encontros: Florestan Fernandes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 13.

2 “É que a América Latina tem uma alternativa histórica, essa alternativa não está no capitalismo, ela não é aberta pela democracia burguesa, não é aberta pelo imperialismo, não é aberta pela internacionalização da economia capitalista, ela é aberta exatamente pelo socialismo”. FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes, história e histórias (1981). In: COHN, Amélia (org.). Op. Cit., p. 136. “Muitos falavam na necessidade de restaurar a democracia, uma bandeira com a qual eu não convivia bem, porque, para mim, nunca houve democracia no país”. Ib., Uma trajetória de militância (1991). In: COHN, Amélia (org.). Op. Cit., p. 189. “A ideologia serve para esconder, e assim vai se passando de uma fantasia a outra: da democracia à eleição livre, ao voto secreto, etc.”. Ib., Revista Tempo Social (1995). In: COHN, Amélia (org.). Op. Cit., p. 222. “Eu [Florestan Fernandes] sou socialista, portanto acredito que nós vamos construir uma sociedade socialista, que deverá começar com uma democracia da maioria, atingir a igualdade com liberdade e desenvolver todos os elementos fundamentais da personalidade humana. Trata-se de um socialismo que defende um humanismo – uma síntese, uma superação de todas as outras formas de humanismo anteriores”. Ib., Uma trajetória de militância (1991). In: COHN, Amélia (org.). Op. Cit., p. 172.

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5 Em suas formulações dos anos 50, ao tratar do tema,4 Florestan já relacionava o desenvolvimento democrático às condições históricas, socioculturais e econômicas. Já denuncia, então, a existência de uma tradição nacional que deveria ser superada – e que acreditava estar sendo superada –, pois se esgotava em seu caráter formal e restrito, como fica claro em um pronunciamento de 1954 no Ministério da Educação.

Restringindo-nos ao essencial, poderíamos dizer que o Brasil se constituiu em Nação, econômica, cultural e socialmente, em condições altamente desfavoráveis à difusão de ideais democráticos de vida política. [...] Graças a essa composição estrutural, a maior parte da população, brasileira adulta não tinha participação direta na vida política, ou nela tinha acesso para exercer atividades subordinadas aos interesses das camadas dominantes. Formaram-se, em conseqüência, duas orientações de comportamento, que eram

sancionadas pela tradição e reforçadas por uma longa prática. De um lado, nas camadas populares, a do alheamento e de desinteresse pela vida política. De outro, nas camadas dominantes, a de que o exercício do poder político fazia parte dos privilégios inalienáveis dos setores “esclarecidos” ou “responsáveis” da Nação. Uns não identificavam em nenhum ponto os seus interesses sociais como os destinos do Estado; outros identificavam-nos demais...5

No entanto, há pelo menos dois momentos da trajetória de Florestan nos quais a democracia aparece no discurso do autor como exigência “número um”: em 1962, no II Congresso Brasileiro de Sociologia,6 e em um discurso de paraninfo da turma do ano de 1964, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP, onde diz: “nossa débil ‘revolução burguesa’ constitui, por enquanto, o único processo dinâmico e irreversível que abre algumas alternativas históricas”,7 sustentando “que o único elemento realmente positivo de nossa história recente diz respeito aos pequenos progressos que alcançamos na esfera da democratização do poder”.8

Vale lembrar, contudo, que no primeiro caso (1962), afirma a democracia como principal preocupação que cabia a sociedade menos de um ano após a tentativa de golpe contra a entrada legal de João Goulart, como vice-presidente ao governo;9 e, no segundo caso,

4 Sobre democracia em Florestan Fernandes nas décadas de 50 e 60 ver: SOUZA, Patrícia Olsen. Os dilemas da democracia

no Brasil: um estudo sobre o pensamento de Florestan Fernandes. Araraquara: Unesp, em mimeo, 2005.

5 FERNANDES, Florestan. Existe uma crise da democracia no Brasil? (1954). In: Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, pp. 99-100. Grifos nossoss.

6 “A expansão da ordem social democrática constitui o requisito sine qua non de qualquer alteração estrutural ou organizatória da sociedade brasileira [...] em conseqüência, lutar pela democracia vem a ser muito mais importante que aumentar o excedente econômico e aplicá-lo produtivamente.” Ib., A “revolução brasileira” e os intelectuais (1964). In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 195.

7Ibid., p. 192. 8Ibid., p. 194.

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6 já temos como pano de fundo o golpe militar definitivo no governo Jango. Para além do clima golpista que predominou em solo brasileiro desde o início do século XX, naquele momento, o autor via a possibilidade do Brasil consolidar e aprofundar sua “revolução burguesa”, iniciada, segundo sua análise, por volta de 1880 e ainda naquele momento inacabada. Para Florestan, o Brasil transitava no sentido de se tornar um país capitalista autônomo, democrático-burguês. Neste contexto não deixa lugar à dúvida:

Isso significa, em outras palavras, que os intelectuais brasileiros devem ser paladinos convictos e intransigentes da causa da democracia. A instauração da democracia deve não só ser compreendida como o requisito número um da “revolução burguesa”. Ela será o único freio possível a esta revolução. Sem que ela se dê, corremos o risco de ver o capitalismo industrial gerar no Brasil formas de espoliação e iniqüidades sociais chocantes, desumanas e degradantes como outras que se elaboraram em nosso passado agrário.10

Esta posição de Florestan é perfeitamente fundamentada em suas previsões dos anos 50 e meados dos anos 60, quando acreditava que “a importância de elementos autocráticos” na organização política do país tendiam “a diminuir gradativamente na constituição do Estado brasileiro”.11

Duas décadas depois, suas conclusões serão bem diferentes; passará a diagnosticar que o Brasil possui dificuldades congênitas para o desenvolvimento de uma democracia nos moldes burgueses. Mas, o que haveria mudado? Seu “conceito” de democracia?

O ponto de inflexão desta reflexão sobre a possibilidade de democracia no Brasil é a publicação de seu ensaio sociológico A revolução burguesa no Brasil, em 1975, em que examina “dialeticamente as artimanhas de uma classe dominante, que fez da condição burguesa e do ‘espírito capitalista’ meios de autoprivilegiamento exclusivo e fatores de articulação entre o ‘arcaico’, o ‘moderno’ e o ‘ultramoderno’”.12

Todavia, para que Florestan chegue à formulação de A revolução burguesa com conclusões tão opostas a sua compreensão dos anos 50 – passando da previsão de uma democracia como tendência para a impossibilidade do capitalismo brasileiro ser efetivamente democrático burguês – há um processo de ruptura em seu posicionamento intelectual que

mil voluntários para lutar a favor da posse de Goulart – e transformar o palácio do Governo em um verdadeiro Quartel

General. Apesar disso, Goulart, sem ter dimensão da situação no Brasil e demonstrando seu caráter conciliatório, acaba realizando um acordo através de Tancredo Neves e aceita um “parlamentarismo híbrido” que entra em vigor em setembro de 1961. No final de 1962, transita-se para o presidencialismo através de um plebiscito. Ver: LABAKI, Amir. 1961 a crise da renúncia e a solução parlamentar. São Paulo: Brasiliense, 1986.

10 FERNANDES, Florestan. A “revolução brasileira” e os intelectuais (1964). In: Ib.,Sociedade de classe e

subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 195.

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7 nasce entre os anos 60 e 70, justamente quando a “análise histórico-sociológica atinge seu apogeu, no Brasil, e nos quais sofreu uma perseguição sem quartel”.13

Este processo de ruptura reflete o que o autor chamou de uma “crise da civilização” e uma “crise da ciência”. Ao final desta ruptura, Florestan continuará partindo da sociologia como plataforma de análise e intervenção da realidade social, porém, longe das amarras que a academia passou a representar sob o capital monopolista, pois: “às vezes, se o que entra em conta é uma denúncia (expressa ou velada), ele [o sociólogo] é limitado por sua profissão ou por suas vinculações acadêmicas dentro do mundo da universidade”.14

Abre-se, então, um novo horizonte intelectual que radicaliza sua “sociologia crítica”15 ao se aproximá-la continuamente do pensamento marxista.

1.1Nos quadros da ruptura

Descrever a ruptura que ocorre na obra de Florestan entre os anos 60 e 70 é apontar uma nova atitude de “natureza psicológica e política” que rompe com a posição dos períodos anteriores, nos quais o sociólogo assumia suas “responsabilidades profissionais em um nível puramente profissional”. Seu posicionamento anterior se devia ao entendimento de que a sociedade brasileira evoluía para uma “revolução burguesa segundo o ‘modelo’ francês,16 sob a aceleração de renda, do prestígio social e do poder”:

Tratava-se de uma “utopia” e, o pior, de uma utopia que se achava redondamente errada.

Tal utopia pode ser facilmente compreendida se se toma em conta sua origem acadêmica (transferência de ideias de trabalho por parte dos professores de origem europeia e treinados para trabalhar nas universidades europeias) e a falta de concomitância entre papéis profissionais e oportunidades de participação dos sociólogos no movimento político-social.17

Nos anos 60, desenvolve-se uma polarização política e ideológica dos papéis sociais do sociólogo, “tendo como patamar uma situação de crise nacional e internacional das

13 FERNANDES, Florestan. Mudanças Sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, p. 20.

14Ib., Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o "poder institucional". São Paulo: Hucitec, 1977, p. 99.

15 “Florestan Fernandes é o fundador da sociologia crítica no Brasil. Toda a sua produção intelectual está impregnada de um estilo de reflexão que questiona a realidade social e o pensamento”. IANNI, Octavio. Sociologia da sociologia: o pensamento sociológico brasileiro. São Paulo: Ática, 1989.Ver também: Ib., (org.). Florestan Fernandes: Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. Outro autor que busca explorar esta dimensão crítica do pensamento de Florestan Fernandes é Mariosa, mas, no geral, não achamos um bom ângulo de análise, pois tende a destacar um aspecto subjetivo do sujeito. MARIOSA, Duarte. Florestan Fernandes e a sociologia como crítica dos processos sociais. Campinas: Unicamp, em mimeo, 2007.

16 “Sob as condições do absolutismo real, as classes superiores proprietárias da França adaptaram-se à intrusão gradual do capitalismo, fazendo maior pressão sobre os camponeses [...] a modernização da sociedade francesa teve lugar através da coroa. Como parte desse processo, desenvolveu-se uma fusão entre a nobreza e a burguesia”. MOORE JUNIOR, Barrington.

As origens sociais ditadura e da democracia: senhores camponeses na construção do mundo moderno. Lisboa: Cosmo, 1975, p.138.

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8 estruturas internas de dominação de classes”. O golpe mais duro deste processo ocorre com o AI-5 (1968), que será determinante na imposição de sua aposentadoria e de sua proscrição de três anos de exílio. No Canadá, exilado, realizou análises comparadas entre vários países da América Latina, que lhe evidenciaram “em que sentido o que acontecia no Brasil era típico de um ‘estágio de incorporação’” do país ao capital monopolista. Segundo o autor, esta compreensão foi o golpe final que liquidou “as últimas hesitações e todas as esperanças” de uma saída de amplitude efetivamente democrática – “sob a pressão de outras classes (como o proletariado, o campesinato ou certos setores insatisfeitos das classes médias)” – no caso brasileiro;18 ou seja, a partir dali, vê que “dentro do capitalismo só existem saídas, na América Latina, para as minorias ricas, para as multinacionais, para as nações capitalistas hegemônicas e a sua superpotência”.19

Neste momento, fica claro que a burguesia nacional e internacional não toleraria uma democratização – ainda que incipiente, como a que se iniciava no Brasil pré-64 – já que, se assim o fosse, tal democratização poderia interferir em sua concentração de privilégios e poder. Ao mesmo tempo, se explicitava a Florestan como a burguesia nacional cumpria a função de cooperação com o capital internacional na luta contra o possível avanço do socialismo no Brasil.

Assim, as classes dominantes sofreavam abertamente, através de um duplo golpe dos militares – em 1964 e 1968 –, o desenrolar histórico, deflagrando uma inflexão histórica que possibilitará que o sociólogo paulista questione suas práticas e funções sociais, reproduzindo assim o que Lukács afirmou em relação ao pensamento francês do início do século XX:

As inflexões na história provocam, portanto, necessariamente, crises na filosofia. Concepções que, durante muito tempo, pareciam indiscutivelmente evidentes, tornam-se de repente problemáticas. O pensamento, então, entrega-se tumultuosamente, por toda parte, à procura de justificações novas, de possibilidades de modificação, de perspectivas inéditas.20

Parafraseando o filósofo húngaro, mas no sentido inverso, como se deu no caso de que tratamos, podemos dizer que seria espantoso que o desmoronamento da luta em termos democráticos do pré-64, promovido pelos golpes da burguesia, não tivesse provocado mudanças no pensamento brasileiro que exibissem todos os caracteres de uma crise. Em Florestan, esta crise se expressa à esquerda, na busca de “superar a circularidade de uma

18 FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 202.

19Ibid., p. 204.

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9 investigação sociológica condicionada pelo passado e repor o raciocínio sociológico no circuito da história em processo, que se abre para o futuro”.21

Florestan passa a estudar a revolução socialista da Rússia, da China e de Cuba – entre as quais, lhe chamou a atenção as peculiaridades da revolução de 1905, na Rússia –22 e o que se evidencia, neste contexto conturbado, são os limites da própria ciência sob o capitalismo monopolista, que é entendido como uma época de crise da civilização na qual estão em xeque as próprias funções sociais da sociologia.

Até agora a Sociologia (e com ela os sociólogos) nunca passou de uma “serva do poder”. Mas isso não se deu porque a Sociologia esteja condenada a ser e a manter-se uma “ciência burguesa”. [...] A Sociologia sofreu, portanto, uma dupla deformação, que nos compete corrigir e retificar, para chegarmos a explicações adequadas a mudanças que não podem ser concebidas e efetuadas sem conhecimento científico prévio da realidade. 23

O enfrentamento desta crise exigirá um reposicionamento do autor, que se expressará como ruptura de suas perspectivas e modus faciendi do período anterior. Os elementos desta ruptura já aparecem de forma bastante clara em 1969, em sua coletânea de escritos publicada no exílio: The Latin American in residence lectures.24

Este momento de ruptura vivido por Florestan já foi bastante abordado dentro das análises realizadas sobre o autor. Na verdade, ele se tornou um ponto central para definir o caráter do pensamento de Florestan antes e depois de sua saída da USP, um ponto de apoio para separar o “joio do trigo”. Surgem assim recortes para “depurar” o autor e possibilitar o resgate apenas do “Florestan que nos convém”.

Para o objetivo desta pesquisa trata-se de um momento incontornável, primeiro, porque em grande medida determina o rumo que sua obra tomará; depois, porque a forma como este momento vem sendo analisado tende a rebaixar o caráter científico da obra de Florestan após sua saída da USP e, assim, reduzir a legitimidade das análises feitas pelo autor nos últimos 26 anos de sua carreira, período no qual nossa pesquisa está inserida.

Bárbara Freitag será uma das primeiras a tocar no tema de uma diferenciação entre o ideário de Florestan antes e depois dos anos 70, em sua fala na Jornada de Estudos de Florestan Fernandes na Unesp/Marília, em 198625 onde apresentará a ideia de que Florestan passa da posição de um “acadêmico-reformista” para a de um “político-revolucionário”. O

21 FERNANDES, Florestan. A Sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Cortez, 1977, p. 102.

22Ibid., p. 204.

23Ib., Sociologia, modernização autônoma e revolução social (1970). In: Ib., Capitalismo Dependente e Classes Sociais na

América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, pp. 126-127.

24Ib., The latin american in residence lectures. Toronto: University of Toronto, 1969.

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10 tema também será abordado por Eliana Vera Soares em sua dissertação de mestrado orientada por Freitag.26 Nesta, a autora demonstrará uma “conciliação” que amenizava o corte de Freitag entre o político e o acadêmico, chegando mesmo à conclusão de que esta é uma questão secundária à luz das superações pessoais do autor.

Outra leitura corrente é a de que, com o fim de sua carreira como professor da USP, ao ser aposentado compulsoriamente em 1969, Florestan deixa de desenvolver um pensamento de caráter científico – ainda que mantenha viva sempre sua “vocação científica”27 – e “sua noção mesma de ciência, antes concebida a partir da articulação de certos procedimentos, preocupada com o rigor, capaz de combinar várias orientações metodológicas, enfim, dotada de universalidade, esfuma-se”;28 neste sentido, o sociólogo se adstringiria cada vez mais à figura de publicista. Dentro desta leitura da professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, a crise pela qual Florestan passa tem sua preponderância na esfera psicológica do autor e se exprimirá “na conciliação entre pensamento científico e revolução e no desencanto nos papéis profissionais do sociólogo, dado que haviam lhe arrancado o centro dos seus investimentos pessoais”.29

O próprio Florestan apresenta esta face psicológica da crise e, de fato, motivos para esta crise psicológica não lhe faltaram, basta retomarmos o próprio argumento de Arruda, na medida em que “o percurso formativo do autor, inclusive no âmbito da constituição de si mesmo e de sua identidade social, é indissociável da formação da própria institucionalização de sua disciplina” e, desta forma, “a saída desse nicho institucional terá significação equivalente, no que se refira à reconstituição de si mesmo, ao estabelecimento de uma nova relação com a disciplina e de uma nova equação do sentido social e político de sua própria atividade”.30

Trata-se do desmoronamento de um projeto de desenvolvimento de “sociologia moderna” que vinha sendo arquitetado há anos e ao qual o autor dedicou-se incessantemente. Mas nos parece que, da forma em que a questão é formulada por Arruda, sua “crise psicológica” e a adoção aberta de uma postura política maculam sua capacidade de fazer ciência, apesar de sua “vocação”. Teremos que refletir se realmente isso ocorre, se realmente Florestan deixa de “combinar várias orientações metodológicas” – e se este é um bom critério

26 SOARES, Eliane Veras. Florestan Fernandes: o militante solitário. São Paulo: Cortez, 1997.

27 “Independente do significado atribuído ao desempenho profissional do sociólogo e, mesmo, à disciplina, Florestan sempre foi um personalidade vocacionada [no sentido weberiano]”. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “escola paulista”. In: MICELI, Sergio. (org.) História das Ciências Sociais no Brasil, tomo II, 1995, p. 166.

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11 para fundarmos o caráter científico de uma análise –, se a crise psicológica está apenas ligada a questões de “investimentos pessoais” ou se não se trata também da percepção de que esta carreira e investimentos pessoais estavam pautados em “uma utopia que se achava redondamente errada”.31

Será Lidiane Soares Rodrigues quem recentemente desenvolveu o principal trabalho sobre o tema, a partir da não concordância da autora com a cisão consagrada por Freitag, entre o Florestan Fernandes “acadêmico-reformista” e o “político-universitário”. Seu objetivo foi debruçar-se “sobre a fração da obra do próprio Florestan Fernandes que pensa” e, além do mais “vislumbrar a historicidade dos diversos perfis a ele atribuídos”. Para isso, teve em vista o eixo institucional, que serve como linha divisória da trajetória do autor; por outro lado, como potencial heurístico para sua análise, a autora parte da problemática da memória e do esquecimento.32

A análise da autora buscou corretamente superar a excessiva simplificação apresentada na palestra de Freitag, mas, a nosso ver, acaba tendendo a coadunar com uma posição que reforça a ideia de “trauma psicológico” que macula a objetividade científica de Florestan. Fato que pode ser visto, na medida em que tende a subestimar Florestan quanto ao trato que este dá ao pensamento marxista e em especial ao de Lenin.

Em sua leitura, o resgate da obra e prática leniniana feita por Florestan Fernandes quase se limita a uma “transferência”, nos termos psicanalíticos, a um utilitarismo, na medida em que o sociólogo, frustrado com a academia, precisaria encontrar outro ponto de ancoragem para toda sua bagagem de sociologia aplicada e projeto de vida em suspenso.33 Tende-se assim a reduzir a análise ao aspecto da personalidade e resoluções de conflitos imediatos do cientista, na qual Florestan parece ser afetado por uma doença que sempre visou combater, o esquerdismo-infantil.

O foco no aspecto subjetivo ressaltado por Rodrigues é compreensível na medida em que um de seus interesses principais em analisar Florestan é buscar como se dá a recomposição do perfil intelectual do autor. No entanto, para delinear o desdobramento de

31 FERNANDES, Florestan. Mudanças Sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, p. 21.

32 RODRIGUES, Lidiane Soares. Entre a academia e o partido: a obra de Florestan Fernandes (1969/1983). São Paulo: USP, em mimeo, 2006, p. 12.

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12 perfis – dos anos 60 em diante –, acaba estabelecendo quadros que reduzem aspectos muito importantes: diminui-se o vínculo anterior com o pensamento marxista; aponta um distanciamento muito grande entre A revolução burguesa e suas obras anteriores, inclusive a obra do exílio.

O que parece servir de pressuposto para a análise de Rodrigues e que tem sua principal formuladora, em relação à obra de Florestan, na socióloga Maria Arminda, é a dissociação entre a dimensão científica e a dimensão política. Concepção amplamente adotada na academia e que tem sua base na ideia de neutralidade cientifica, de clara inspiração weberiana.34 Em última análise, com esta posição nada neutra, acaba-se em grande medida rejeitando apenas parcialmente a posição inicial de Freitag, já que parece que há uma manutenção subliminar da dicotomia ciência/política.

Este posicionamento, que distingue o político do acadêmico, acaba por ganhar uma dimensão muito importante porque é tomado por Arruda e outros autores que analisam os intelectuais brasileiros – como, por exemplo, Daniel Pecault – para diferenciar a postura intelectual não só de Florestan Fernandes, mas de toda a chamada “Escola Paulista de sociologia”, por ele conduzida, e que instaura o “estilo paulista” como verdadeiro paládio da ciência, entre os anos 50 e 60. Escola esta que se contrapunha ao pensamento isebiano que dava base ao “nacional-populismo”, vinculado ao partido comunista e ao governo “populista” de João Goulart. 35

Ora, Florestan, ao romper com a “neutralidade científica”, rompe com a “escola” que ele mesmo doutrinou, deixa de ser um cientista e avança no sentido da política, o que poderia resultar, se radicalizarmos este raciocínio, em um rebaixamento da precisão do seu pensamento a partir de então. O interessante é que esta ruptura e retomada crítica que Florestan realiza, em relação ao seu projeto anterior, “rebaixa” a própria “escola paulista de sociologia”; escola esta que fornece subsídio teórico para boa parte destes analistas que citamos acima.

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13 Rodrigues avançará neste sentido, buscando demonstrar que não só o autor passa a atuar de forma política, mas também realiza uma leitura do passado viciada por sua nova postura política; é o que vemos em sua análise de A geração perdida:36

Deslocando o referencial especificamente científico na origem dos posicionamentos pretéritos, para a apreensão de seu significado especificamente político, que passa a interessá-lo no presente, considera suas relações políticas nos anos cinqüenta e sessenta.37

O resultado prático destas colocações é assumir que Florestan verga os fatos concretos através do mecanismo de constituição de sua própria autobiografia, pois “é evidente que uma das dimensões da memória consiste em construir o passado no presente, através, entre outros recursos, da reconstituição autobiográfica”.38

Obviamente concordamos que pode haver distorções nas ideias que as pessoas fazem de si próprias – seja no tempo presente, ou no tempo passado. Constatação inclusive feita por Marx:

Do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que de si mesmo faz, tampouco se pode julgar uma tal época de transformações pela consciência que ela tem de si mesma. É preciso, ao contrário, explicar essa consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.39

Mas temos que atinar para a possibilidade de que o indivíduo possa estar fazendo um julgamento condizente com a realidade na qual está ou esteve inserido. Para refutar o “mito da ruptura” Rodrigues nega que o ano de 1969 seja um divisor de águas efetivo na vida de Florestan Fernandes, apesar do autor “insistentemente”, como ela própria afirma, pontuar este ano. E adverte: “Portanto, os cuidados do intérprete devem ser redobrados – as balizas em sua trajetória devem ser matizadas, tanto mais suas elaborações autobiográficas sedimentem a marca da aposentadoria compulsória”.40

Pelo que já foi apresentado em relação ao golpe que o autor recebe em vários planos de sua vida, ao ter sido aposentado compulsoriamente e ver um projeto de vida desmoronar, e a constatação prática de que realmente houve mudanças substanciais a partir deste período em sua produção, nos parece importante levar a sério este marco pontuado por Florestan. Não como uma divisão unilateral – como veremos, haverá muitas continuidades de um momento para o outro –, mas como um reposicionamento geral; e, ao se reposicionar, nada mais normal

36 O texto compõe o livro: FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977.

37 Em: RODRIGUES, Lidiane Soares. Op. Cit., p. 102. 38Ibid., p. 91.

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14 que refletir criticamente sobre sua posição anterior, o que não implica necessariamente em distorções.

Um exemplo disso, que, apesar de transcender ao nosso objetivo, parece conveniente, é que algumas ideias apresentadas por Florestan sobre as ambições políticas da “geração perdida” ressoam em uma carta que só pode ser considerada insuspeita de distorções autobiográficas, pois se trata da primeira carta do autor para Antonio Candido em 1942, quando Florestan acabara de entrar na USP. Nada modesto este rapaz de 22 anos escreve:

Meu caro Antonio Candido:

Perdoe-me a intrometida intimidade, pois penso não nos conhecermos pessoalmente. Entretanto, ela se justifica por dois motivos: primeiro, porque representamos a nova geração. Estamos no mesmo plano, dentro do tempo, apesar de você, neste caso, ser uma espécie de irmão mais velho. Representamos o novo espírito de trabalho, encaramos tudo sob novos aspectos, mais objetiva e humanamente. Segundo, porque encarna um processo admirável e justo de crítica, que eu defendo e lamentava já não existir entre nós. [...] Era uma condição social e política. Contudo a passagem está se processando. [...]

De uma coisa tenho certeza: nós derrubaremos o espírito dominante, de convencionalismo e pseudo-fecundidade, com menos tempo que todos os figurões do passado e do presente, precisaram para erigir esta monumental estupidez do espírito que é o bizantinismo consciente.

Frente a projetos tão ambiciosos de juventude e sabendo como Florestan desenvolve sua carreira de forma tão colossal,41 não nos parecem estranhas as lamentações que realiza ao perceber que todo o esforço de uma vida estava pautado em uma “visão errada”.42 O que o autor verifica, frente ao golpe militar, é que todo o esforço que sua geração teve para cumprir a derrubada do “espírito dominante”, dos figurões do passado e do presente, não foi realizado:

Depois de abafar e reprimir por mais de quatro séculos qualquer florescimento da inteligência crítica e criadora, o pensamento conservador lograra varrer o terreno e impor, não sabemos por quanto tempo, o seu padrão mortiço de entreguismo intelectual e de covardia moral. Uma vitória às avessas, que reabria o país às correntes avassaladoras e sempre revigoradas do colonialismo cultural.43

41 Tendo, como ponto auge, a implantação de um projeto de modernização da sociologia – que é um projeto de modernização da cultura e, em última análise, do país.

42 “Parecia que estávamos mergulhados em um forte processo espontâneo de crescimento institucional da ciência, que nos levaria gradualmente a passos maiores. Ora isso não sucedeu; nem poderia suceder. A minha visão estava errada! [...] É preciso liberar o elemento crítico em planos mais profundos, que afetam a arte, a filosofia e a ciência importadas; e,

principalmente, que diz respeito ao engate da produção cultural com a luta de classes, com a transformação revolucionária do mundo”. FERNANDES, Florestan. A domesticação dos intelectuais (roteiro para exposição na PUC, RJ), datilografado e corrigido, 18 mar. 1981. Acervo Especial Florestan Fernandes. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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15 Obviamente que Florestan, ao resgatar todo o desenvolvimento desta geração, diferencia que uma “geração perdida” não significa uma geração derrotada e o fato de que não se tratou de um esforço inútil:

Não diria que a nossa presença tenha sido inútil: ela não foi e por isto se justifica este ensaio. No entanto, a nossa presença transcendeu às possibilidades da história, na medida em que a sociedade brasileira precisava de nós, contudo, ao mesmo tempo, não tinha como livrar-se de estruturas de poder obsoletas, que entraram em conflito frontal com as nossas tentativas de um audacioso “salto para a frente”.44

Não nos cabe desdobrar aqui uma análise deste tipo, apenas queremos deixar registrado que é possível, e bastante provável, que Florestan não esteja simplesmente remodelando o passado de acordo com o presente, mas olhando o passado de uma posição que só pode ser possível naquele momento. Provavelmente pode haver imputações e distorções próprias da “memória”, o que não, necessariamente, reduz a validade desta releitura de Florestan. Há, de fato, um paradoxo em seu arrependimento de não ter sido mais radical e a compreensão amarga de que não lhe era possível sê-lo, mas não uma incoerência. Parece que ao retomar todas estas questões, após ter dado um “salto no escuro” ao voltar ao Brasil, em 1972, Florestan tenta iluminar, com os “erros” do passado, o caminho adequado ao futuro, dentro de sua situação histórica concreta de então.

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Figura 2 – Primeira página da carta enviada para Antonio Candido. São Paulo, 04 fev.1942. Acervo Especial Florestan Fernandes. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

1.2Dupla condição

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17 que significa para nós, essa debilidade congênita, que converte o sociólogo, automaticamente e inevitavelmente, em ‘intelectuais orgânicos da ordem’?”.45

Pergunta e resposta que nascem “através de uma combinação das atividades práticas com o trabalho acadêmico”, pelo qual consegue “eliminar o impacto da condição burguesa e do radicalismo democrático” de sua “própria reflexão sociológica”.46 Desta forma, amplia suas perspectivas analíticas na medida em que se desvincula dos limites de sua posição anterior, operando a passagem de um radicalismo intelectual (ou “radicalismo puramente subjetivo”)47 para um intelectualismo radical. Em que o primeiro, pautado pela conciliação do “espírito crítico” com as “vantagens da posição de classe”, no melhor dos casos

[...] cindia o intelectual crítico em dois – qualquer que fosse a sua identificação com e a sua participação nos movimentos radical-democráticos ou socialistas – e sofreava nele a compulsão propriamente revolucionária de desligar-se da ordem existente, para romper definitivamente com ela e para lutar contra ela, como e enquanto intelectual. Ele ficava condenado a um inconformismo contido e alimentado pela ordem existente, além do mais concentrado no plano específico da imaginação criadora e do pensamento inventivo.48

A resolução deste conflito se dá pela adoção radical de uma dupla condição,49 que balizará o percurso deste intelectualismo radical; ou seja, a condição de sociólogo e a condição de socialista. Posicionamento que ultrapassa assim uma preocupação acadêmica, que acredita poder se aproximar de um posicionamento neutro, realizando uma dicotomia e oposição entre ciência e ideologia; é desta forma que, para Florestan Fernandes, “a sociologia passa, pois, de autoconsciência crítica à condição de arma de combate”.50

45 FERNANDES, Florestan. A geração perdida (1976). In: Ib., A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 204.

46Ibid., p. 202.

47 “Os mais íntegros protegeram-se através de radicalismo puramente subjetivo (isto é, sem suporte institucional, já que não se poderia apoiar na estrutura e no funcionamento da universidade brasileira; e sem suporte de massa, já que não existia qualquer movimento político-social suficientemente forte para servir de contrapeso à pressão conservadora)”. Ib., Mudanças Sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, p. 22.

48Ib., A geração perdida (1976). In: Ib., A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 241.

49 Apesar de Florestan afirmar que esta dupla condição já estava presente em seu ideário desde 59 só teremos a concretização desta posição de maneira radical (ou completa) no final dos anos 70: “Este livro reúne ensaios que refletem o espírito da época em que foram escritos: entre 1959 e 1962 [...] O Autor, naquela época, como nos dias que correm, vinculava à sua dupla condição de sociólogo e de socialista uma ampla visão dos problemas teóricos, empíricos e práticos da sociologia como ciência, pois, na verdade, a sociologia não valeria uma missa se não fosse possível associar a pesquisa sociológica à

revolução democrática na sociedade brasileira”. Ib.,Prefácio à segunda edição (1976). In: Ib., A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 9. Outros autores afirmam a radicalidade do pensamento de Florestan Fernandes bem antes, já no período dos anos 50 como Carlos Guilherme Mota: “A radicalização de Florestan Fernandes se processa, de fato, na década de 50, sobre tudo nos últimos anos, quando passa a realizar estudos não mais de acentuada orientação funcionalista”. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). São Paulo: 34, 2008, p. 220.

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18 Foi pela própria incoerência que observava entre os fatos concretos que ocorriam no Brasil e na América Latina e a produção científica das ciências sociais de então, que Florestan conclui que incorporar à sociologia sua ideologia socialista não lhe limitaria cientificamente, mas, ao contrário, lhe ampliava a capacidade de apreensão da realidade.

Não diria que a infiltração ideológica e utópica inerente ao socialismo produza um saldo negativo ou uma reação bloqueadora na interpretação sociológica do capitalismo dependente e de suas vinculações com o imperialismo. Isso só ocorre quando essa infiltração empobrece o horizonte intelectual ou enrijece a perspectiva de observação do sociólogo, graças aos influxos de um dogmatismo especulativo a que o sociólogo não tem direito, especialmente se for um sociólogo socialista. Tudo isso fica muito claro quando se considera que não são os socialistas que querem calar ou deturpar as verdades que a sociologia crítica pode descobrir. Os socialistas distinguem o “momento intelectual” do “momento político” no que se refere ao conhecimento científico. Embora estejam empenhados em passar de um a outro e de estabelecer uma relação dialética entre ambos, para eles o conhecimento sociológico só possui valor se for obtido dentro dos cânones da ciência e puder ser submetido ao teste da prática, pelo qual se determina seu grau de verdade, de capacidade de “transformar o mundo”, ou o grau da revisão que se faz necessária. O que pressupõe um vínculo recíproco entre ciência, ideologia e utopia, que não aparece nem pode existir onde a imaginação sociológica não seja intrinsecamente revolucionária. 51

Este intelectualismo radical busca vincular o rigor científico e elementos positivos da sociologia à utopia e à ideologia do socialismo52 que não ficassem circunscrito ao universo burguês da defesa da ordem, é dizer: realiza “uma correção socialista do pensamento sociológico”.53

51 FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 205.

52 Uma leitura interessante sobre ideologia e utopia retirada a partir do texto do próprio Florestan é a de Gabriel Cohn ao expressar: “Nesse ponto, é preciso ler diretamente a brilhante análise que Florestan faz do significado do liberalismo na construção da sociedade nacional no século XIX, ao oferecer aos estamentos senhoriais as referências utópicas que lhes permitem projetar aspirações e visões da sociedade no futuro, em contraste com as referências ideológicas que ela também oferece, e que alimentam a conservação no plano econômico”. COHN, Gabriel. Florestan Fernandes – A revolução burguesa no Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas. (org.) Introdução ao Brasil – um banquete nos trópicos. São Paulo: SENAC, 1999, pp. 400-401.

Mas podemos ler também que Florestan manterá sua compreensão de utopia e ideologia de acordo com a compreensão de Mannheim, ou seja: “ideologia é o conjunto das concepções, ou legitimações, ou reprodução, da ordem estabelecida. São todas aquelas doutrinas que têm um certo caráter conservador no sentido amplo da palavra, isto é, consciente ou

inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, servem à manutenção da ordem estabelecida. Utopias, ao contrário, são aquelas ideias, representações e teorias que aspiram uma outra realidade, uma realidade ainda inexistente. Têm, portanto, uma dimensão crítica ou de negação da ordem social existente e se orienta para sua ruptura”. LÖWY, Michel. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 1991, p. 13.

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19 Um exemplo do contraste entre o radicalismo intelectual e seu intelectualismo radical se expressa claramente através de sua crítica ao conceito autoritarismo, na medida em que explicita a diferença entre os horizontes intelectuais dos cientistas da ordem e dos que se pautam pela superação da ordem.

Assim, segundo Florestan, o conceito de autoritarismo foi abusivamente utilizado na sociologia e nas ciências políticas, representando uma perplexidade ideológica pela qual os cientistas sociais realizam “muitas manipulações repressivas da ‘autoridade’ (aparentemente ‘legítimas’ ou claramente ‘ilegítimas’)” com o objetivo

de confundir os regimes de transição socialista com o fascismo; e uma tendência generalizada de estabelecer confusões sistemáticas, pelas quais: a) “regime autoritário” seria equivalente de “democracia forte” e o “regime soviético” (e todas as variantes) podiam ser postos no mesmo saco do totalitarismo. [...] O que permite aplicar o termo autoritarismo em conexão com qualquer regime, em substituição ao conceito mais preciso de ditadura.54

Com este tipo de análise, o cientista burguês mantém-se em seu horizonte intelectual de defesa da ordem, afirmando idealmente a sociedade democrática como perfeita; mais precisamente, “trata-se de uma definição formal ‘perfeita’ e, ao mesmo tempo, exemplar e apologética” que acarreta “não só à crítica como o repúdio da ‘democracia popular’”. Para estes intelectuais:

A massa neutraliza a ação criadora das elites [...] põe o estômago em primeiro plano (como afirma Rickert) e desloca a razão, destruindo-a. [...] Trata-se de condenar a democracia popular, de demonstrar que ela é intrinsecamente aberrante e corrompida [...] Portanto, a ciência política fecha-se dentro do universo burguês e introduz o elemento autoritário na substância mesma do “raciocínio científico”.55

Florestan desmascara assim o quanto as ciências que se pretendem neutras se valem de perversões lógicas para a defesa, no plano ideológico, da afirmação da ordem, ao afirmarem a democracia burguesa como única possibilidade efetivamente democrática.

Se acompanharmos a trajetória de Florestan desde os anos 50, quando conclui sua formação e assume na prática a cadeira de Sociologia I,56 veremos que o autor já vinha,

54 FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”. São Paulo: Hucitec, 1979, pp. 5-6. 55Ibid., pp. 10-11.

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Figura 3 – Trecho final de apresentação do documento intitulado: A domesticação dos intelectuais (roteiro para  exposição na PUC, RJ), datilografado e corrigido, 18 mar
Figura 4 – Fichamento para palestra datada de 12 de março de 1971, intitulada: The Social Costs of  Development, escrito para exposição no The Latin American Committee and Department of Sociology, Harvard
Figura 8 – Na Imagem vemos o comentário marginal no prefácio da segunda edição do “18 Brumário” de Karl  Marx
Figura 9 e 10 – Na esquerda, Ficha de 17 jun. 1975, título: O “modelo de desenvolvimento brasileiro”,  preparação para palestra que foi proibida pelos militares em Natal
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Referências

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