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CAPÍTULO 3. VINCULAÇÃO DE RECEITAS E CONTROLE JUDICIAL

3.6. As vertentes procedimentalista e substancialista da jurisdição constitucional

3.6.1. Procedimentalismo

Para os procedimentalistas importa mais a garantia do procedimento democrático que a identificação de valores na Constituição. Estando previsto na Carta

142 TAVARES, André Ramos. A Constituição é um documento valorativo? Disponível em:

<http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-09/RBDC-09-337-Andre_Ramos_Tavares.pdf>. Acesso em 29 jan. 2010, p. 338.

143 A título de ilustração, cite-se, dentre os pensadores da atualidade, Niklas Luhmann, cuja teoria dos

sistemas se refere a Direito e Política como subsistemas da sociedade, que possuem abertura cognitiva entre si e são acoplados estruturalmente pela Constituição.

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Política o modo como o povo se fará representar e garantida a observância das deliberações daí advindas, resta assegurado o principal objetivo da democracia.

Segunda ela, a democracia representativa se materializaria com a eleição livre pelo povo de seus representantes, que retratarão seus anseios em votações futuras. A Constituição, por sua vez, não consagraria conteúdo axiológico que pudesse justificar a exclusão das escolhas feitas pelo legislador, importando apenas aqueles valores que expressamente garantissem o exercício da participação política. Mais uma vez, precisas as palavras de André Ramos Tavares:

Em suma, o que esta corrente está a defender é que o conteúdo da Constituição seja quase que exclusivamente a previsão de procedimentos que estabelecem os meios para se alcançar decisões coletivas. Valores fundamentais ou substantivos, desnecessário dizer, quedam ao relento144.

Para os defensores da democracia procedimental, apenas o procedimento é suficiente para assegurar um resultado justo e correto para todos (o bem comum). Em verdade, não há preocupação com conteúdo, senão com os mecanismos que preservem o Legislativo como âmbito decisório.

Sendo o procedimento democrático o foco principal da teoria, a jurisdição constitucional seria apenas garantidora do exercício da democracia, assegurando a aplicação de direitos que consagram a participação política e os processos deliberativos justos, independentemente do resultado a ser alcançado (se certo ou errado, justo ou injusto). Não haveria espaço para cogitações valorativas que pudessem limitar o papel do Legislativo. Sobre o papel do Judiciário, esclarece Estefânia Maria de Queiroz Barbosa:

Para a teoria procedimentalista, os valores substantivos de uma sociedade devem ser escolhidos por meio de uma deliberação democrática, ou seja, pelos poderes representativos do povo, quais sejam, o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Devendo o Poder Judiciário ser apenas um garantidor do exercício da democracia, não sendo possível, portanto, a possibilidade de ativismo judicial, visto que a deliberação sobre os valores substantivos de uma sociedade por juízes não eleitos atentaria ao princípio democrático145.

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TAVARES, André Ramos. A Constituição é um documento valorativo? Disponível em: <http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-09/RBDC-09-337-Andre_Ramos_Tavares.pdf>. Acesso em 29 jan. 2010, p. 339.

145 BARBOSA, Estefânia Maria de Queiroz. Jurisdição constitucional: entre constitucionalismo e

Esta preocupação com a desqualificação do ativismo judicial não é à toa. A teoria aqui esposada surgiu justamente como resposta ao ativismo judicial da Suprema Corte americana, tanto da Era Lochner, na qual são declaradas inconstitucionais medidas legislativas para implementação do New Deal, quanto da Era Warren146, em que a Corte se imiscui até mesmo de políticas públicas.

Neste ponto, no âmbito dos Estados Unidos da América, destaca-se o procedimentalista John Hart Ely, que defende maior limitação ao ativismo judicial (judicial review), posto que não seria aceitável interpretação vinculativa de normas constitucionais de conteúdo vago por juízes não eleitos. Ely enfatiza o caráter antidemocrático do judicial review, vez que imposto por magistrados irresponsáveis perante os eleitores.

Para ele, ferrenho combatente do ativismo da Corte Warren, não seria possível que a Suprema Corte identificasse um suposto consenso moral existente na sociedade, que pudesse justificar o intervencionismo, sem se valer das posições pessoais dos magistrados.

O controle de constitucionalidade não teria, portanto, justificativa aceitável, visto que fundado na noção equivocada de que o Judiciário seria a casa adequada para a ressonância dos valores sociais, ao invés do Parlamento. Além disso, ao se declarar a inconstitucionalidade de uma lei nova, aprovada pelos representantes do povo, estar-se-ia a privilegiar os valores dos antepassados, que devem ser substituídos pelas mudanças na sociedade, refletidas nas votações.

Porém, Ely não destitui a jurisdição constitucional de qualquer papel, imputando a esta a incumbência de garantir o procedimento democrático, sendo vedada manifestação sobre valores substantivos.

Outra vertente procedimentalista, desta feita desenvolvida no âmbito europeu, é sustentada por Habermas. Com sua teoria do discurso, defende que a

legitimidade do Direito advém da formação discursiva da opinião e da vontade dos

cidadãos, que possuem os mesmos direitos. A teoria pressupõe que, além de possuir, os indivíduos possam exercer seus direitos em igualdade de condições, participando efetivamente do procedimento deliberativo. Este pensamento tende a estabelecer uma concepção universal para a legitimação do fenômeno jurídico, que, no entanto, recebe

146 Assim como Lochner, Warren é ex-presidente da Suprema Corte americana, tendo ocupado o posto de

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duras críticas, por deixar de considerar as variáveis concretas observadas na realidade de outros países. No caso brasileiro, Lenio Luiz Streck é enfático:

Como ter cidadãos plenamente autônomos, como Habermas propugna, se o problema da exclusão social não foi resolvido? Como ter cidadãos

plenamente autônomos se suas relações estão colonizadas pela tradição que lhes conforma o mundo da vida?147

Para Habermas, portanto, a legitimidade democrática é controlada pela realização de um processo público de deliberação, com a participação de todos e realizado de maneira razoável e racional.

O Direito daí advindo não poderia ser questionado na via judicial, senão pela própria instância democrática que o formulou, posto que “o controle abstrato de normas é função indiscutível do legislador, devendo-se reservar essa função, mesmo em segunda instância, a um autocontrole do legislador, o qual pode assumir as proporções de um processo judicial”148.

Por ser o Direito fruto de processo legislativo racional, apenas o próprio Legislativo poderia revisá-lo. À jurisdição constitucional restaria assegurar o procedimento democrático de deliberação, protegendo os direitos políticos dos cidadãos. Na visão de Estefânia Maria de Queiroz Barbosa:

Dessa maneira, Habermas também aceita o papel da jurisdição constitucional na proteção dos direitos fundamentais, já que são essenciais para o processo democrático, razão por que, nestes casos, o Judiciário teria o poder de restringir a vontade da maioria para salvaguardar o exercício da democracia149.