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Procedimentos metodológicos: a busca de um referencial teórico do Seja

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CAPÍTULO 2: A PESQUISA DA POLÍTICA PÚBLICA MUNICIPAL DA EJA I EM

2.3 Procedimentos metodológicos: a busca de um referencial teórico do Seja

De um lado, a equipe de pesquisa verificou dentre os documentos existentes no Seja se havia algum que explicasse claramente os pressupostos filosóficos e pedagógicos em que o trabalho local se fundamentava. De outro, procurou-se essa informação nas falas dos entrevistados, professores e assistentes técnico-pedagógico.

Da leitura de alguns documentos, depreende-se que a pedagogia do Seja é basicamente humanista. A presença constante de certas expressões — como conscientização, participação, realidade dos oprimidos, libertação, transformação da realidade e politização — leva a concluir que a base de pensamento do Seja está na pedagogia de Paulo Freire, educador

que se notabilizou no Brasil pela criação de um método de alfabetização de adultos na década de 1950-1960. Por vezes, no plano do discurso, apenas e por vezes na prática educativa esta pedagogia é almejada até hoje. Porém, uma leitura mais atenta demonstra que aquelas noções aparecem, em regra, fragmentadas, não explicitando o contorno de uma proposta pedagógica. Tais ideias estão quase sempre contidas na formulação dos objetivos, sem que se mostre de que modo mais claro se incorporarão à prática do cotidiano. Até aí, poderíamos pensar que se trata de documentos gerais para o grande público. Contudo, encontramos nas falas dos educadores e dos ATP. a mesma fragmentação de ideias e conceitos. Os termos estão presentes no discurso, mas não aparecem articulados como fundamentação da proposta pedagógica.

Quando solicitados a relacionar tais ideias a algum educador que as tivesse elaborado, da parte dos professores foram indicados desde Freire até a Coordenação do Seja, passando por diversos autores das áreas de pedagogia e psicologia que se debruçaram sobre a educação de adultos. Também no discurso dos docentes e dos ATP transparecia a percepção de que aquele ideário resultava da posição da Prefeitura de Diadema de alguns anos pra cá.

Nossa constatação foi que a prática pedagógica desenvolve-se sem o domínio de um referencial teórico por parte de muitos professores e também entre os ATP. Há, de fato, um discurso que anunciava a conscientização dos analfabetos como tarefa salvífica das camadas subalternas da sociedade. Mas, ao mesmo tempo, a maioria de nossos entrevistados desconhecia os componentes básicos da cultura popular analfabeta, adulta, dos centros urbanos e, dos seus alunos(as).

Outra constatação é que, na maioria, os técnicos(as) e professores(as) entrevistados(as) entendem que a metodologia freiriana aplica-se universalmente, de forma monolítica, a todas as realidades educacionais. Os que assim pensam não conseguem, porém, explicar como se organizaria a prática decorrente desta ideia.

Freire concentra sua análise na relação entre os indivíduos; seus melhores resultados convergem para o que seria uma “teoria da consciência opressora” e, por reciprocidade, da consciência oprimida. Isso não o impede de, na análise da inadequação fundamental da educação oficial, descobrir “temas universais” e denunciar sua intencionalidade, sua função de ideologia, como fica bem claro na obra Pedagogia do

Oprimido.

Observamos que, no âmbito do Seja, ainda não se diferenciava a amplitude de uma metodologia geral conscientizadora da realidade cultural, concreta, de cada grupo. Todos trabalhavam temas universais.

Integravam também o entendimento pedagógico dos participantes do Seja as ideias de interdisciplinaridade, construtivismo e mais recentemente, do “estudo do meio” como procedimento metodológico de estudos.

Na analise inicial, aplicava-se também a inserção destas noções no entendimento e na prática pedagógica e didática dos educadores. Conforme vários entrevistados, o conteúdo dos textos introdutórios deste tema era suficiente para orientar a prática. Desconheciam os principais títulos da bibliografia especifica e, assim, julgavam estar praticando a interdisciplinaridade e o construtivismo (teoria da construção do conhecimento).

Com relação ao “estudo do meio”, tivemos acesso a uma apostila fornecida aos cursistas do Seja, da qual se conclui que esta prática pedagógica não teve explicitados seus fundamentos (sociológicos, antropológicos e psicológicos) e foi entendida apenas no nível da didática. Vários entrevistados consideraram que a proposta de “estudo do meio” não vingou entre os educadores. Os argumentos variam desde “[...] ‘o estudo do meio’ foi um pacote na nossa cabeça” até que implicaria sobrecarga de serviço.

Finalmente, pode-se dizer que nem nos documentos, nem nas falas transparece qualquer preocupação de integrar estas práticas. Estas aparecem sempre isoladas. Estava em jogo, portanto, o desejável referencial teórico da prática pedagógica do Seja.

A partir do conteúdo analisado nos discursos dos entrevistados, foi realizado um cuidadoso cruzamento entre os dados colhidos ao longo do trabalho em campo, os documentos oficiais, os planos de aula, os planejamentos dos cursos para alfabetização de adultos nas escolas municipais, as observações registradas pelos pesquisadores em seus diários de campo, os dados quantitativos sobre o funcionamento do Seja como um todo ao longo dos anos. Só após refazer as análises foi escrito o relatório final.

A seguir, algumas conclusões desse trabalho.

1) Desconhecimento da realidade cultural dos alunos por parte de professores e dos ATP.

2) Grande identificação entre experiências de vida dos alunos, dos professores e dos ATP.

3) Acentuada identificação dos professores com as carências materiais e psicológicas dos alunos.

4) Relação professor-aluno permeada, em muitos casos, pela dependência aluno/professor.

5) Não aprendizado como principal motivo da evasão escolar, no que se refere ao programa educativo.

6) Visão quanto ao Seja:

 os alunos desconhecem que se trata de um serviço público e surpreendem- se ao descobrir que há outros cursos no município;

 os professores mostram tendência a criticar a administração, qualificando- a de desorganizada;

 alguns ATP queixam-se de improvisação no Serviço.

7) Formação escolar bastante diversificada dos professores e dos ATP.

8) Expectativas de aprendizagem dos alunos não respondidas pelos professores. 9) Expectativas de orientação pedagógica dos professores não respondidas pelos

ATP.

10) Despreparo dos professores para o trabalho de educação, em geral, e de educação de adultos, em particular.

11) Visão equivocada dos professores e dos ATP quanto ao que é conhecimento — há, por parte deles, constante negação do valor do saber produzido científica e historicamente.

12) Desconhecimento por professores e ATP não só do significado da teoria, como de sua importância — em decorrência, há supervalorização da pratica.

13) Fragmentação das práticas de capacitação docente, o que evidencia falta de um pensamento norteador no trabalho.

14) A formação e o desempenho profissional de professores antigos e novos não apresentam diferenças significativas.

15) Falta de preparação pedagógica para o trabalho no Seja, percebida por professores ingressantes dos últimos anos.

16) Vago e confuso entendimento, entre professores e ATP, de noções como participação, conscientização, comunidade e prática democrática — os docentes as trabalham isoladamente, com base em suas experiências pessoais.

17) Entendimento de trabalho coletivo e trabalho em grupo traduzido, na maioria das vezes, por ajuntamento de pessoas em determinadas atividades, incluindo festas e eventos — o trabalho em grupo, por sua vez, significa apenas dividir o conjunto dos alunos em pequenos aglomerados.

18) Desconhecimento de conceitos introdutórios à noção de planejamento e, em consequência, ignorância de tecnologias para sua elaboração, revelados por professores e ATP.

19) Desconhecimento, entre professores e ATP, do significado de currículo e de sua inerência ao processo educativo, assim como de suas bases sociológicas e psicológicas.

20) Total desconhecimento da fundamentação e da prática didática, manifestado por professores e ATP.

21) Acentuada dicotomia entre ensino e aprendizado, na percepção dos professores.

22) Metodologia típica do ensino primário para as classes de adultos, a qual é percebida como infantilizante pelos alunos adultos.

23) A interdisciplinaridade e o estudo do meio são pouco referidos pelos professores.

24) Avaliação escolar:

 Alunos trazem informações sobre a avaliação formal praticada em outras escolas. Para eles, esta é um parâmetro e também uma expectativa. Ao se depararem com um tipo de avaliação fluida, concluem que o resultado apresentado pelo professor é de caráter pessoal. Se, de um lado, cobram

avaliação do professor, de outro, temem-na, o que leva alguns a se evadirem.

 Não há por parte dos professores entendimento cientifico da avaliação escolar. Há comumente a negação de uma avaliação formal. A chamada avaliação contínua é extremamente fluida.

 Não há por parte dos ATP um procedimento metodológico definido em relação à avaliação. O que se encontrou foram relatos sobre o trabalho dos professores com base na observação pessoal.

25) Relação conflitiva entre os alunos e as condições ambientais das Emeb (Escolas Municipais de Educação Básica).

26) Nuances de prática autoritária em oposição a discurso democrático.

27) Intermitência presença/ausência dos alunos no curso não percebida pelos professores em suas causas, nem assimilada pelo plano pedagógico- administrativo — um problema direta e indiretamente apontado é o turno único para aulas.

28) Percepção indiferenciada dos níveis de alfabetização e de pós-alfabetização entre os alunos — o mesmo ocorre com os professores.

29) A proposta pedagógica do Seja não é identificada na prática dos professores e, em alguns casos, dos ATP.

Essas conclusões são fruto da comparação feita entre a estrutura de funcionamento dos cursos nas escolas e o modelo anunciado nas falas cotidianas de técnicos e professores. O quadro detalhado no Relatório final da pesquisa etnográfica: “Perfil do aluno do Seja —

Perfil do Seja” , em seus resultados, não era dos melhores em relação aos objetivos

que estava a frente da secretaria de educação na época da apuração dos resultados. O ano da entrega dos resultados, 1996 era atípico, pois havia muitos desafios administrativos pela frente, assim consideramos que não havia tempo para as mudanças necessárias, o que lamentamos profundamente. Certamente ações coletivas e engajadas para a garantia de qualidade da educação e, no Seja, seriam positivas para pelo menos tentar minimizar toda a problemática identificada.

De modo profícuo há uma construção de conhecimento decorrente dessas relações no processo educativo.

Ao penetrar nesse universo, da Eja I de Diadema, identifica-se aspectos atuais e problemas apontados nas conclusões como superados, enquanto outros persistem.

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