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Segundo a teoria de Piaget (1983), o conhecimento é um processo de construção contínua que ocorre por meio da interação entre o sujeito e o objeto. Este último, por sua vez, não se restringe apenas a objetos do mundo físico, mas consiste em tudo aquilo que não é o sujeito. Isto inclui não somente o meio físico, mas também o meio social.

Salientamos que o verbo “interagir” em Epistemologia Genética implica em uma relação mútua onde não somente o sujeito “age” sobre o objeto, mas o objeto também “age” sobre o sujeito. Desse modo, o sujeito só pode “agir sobre” o objeto e não “interagir”. Ou seja, é errado dizer que o “indivíduo interage com o meio” o correto é dizer “o indivíduo age sobre o meio” ou então “indivíduo e meio interagem”. (BECKER; FERREIRA, 2013)

Para Piaget (1972), pensar envolve conhecer o objeto, agindo sobre ele, compreendendo como ele é construído, modificando e transformando-o. Essas transformações ocorrem internamente e, portanto, não podem ser observadas. É por conta delas que o conhecimento não pode ser considerado uma cópia da realidade, isto é, o sujeito não aprende porque alguém ensina. Ele aprende porque o conhecimento é fruto de um processo de construções e reconstruções que ocorrem por meio das ações do sujeito sobre o objeto (assimilação) e das

ações do sujeito sobre si mesmo (acomodação) quando este encontra-se em desequilíbrio na presença de uma situação nova.

Portanto, compreendemos, a partir da teoria de Piaget, que o sujeito aprende agindo, visto que as experiências provocadas por suas ações propiciam pensar sobre o objeto e sobre suas próprias ações. Nesta pesquisa, em particular, o cerne da investigação é a interação entre estudantes e o GeoGebra, sobretudo as possíveis abstrações que podem emergir dessas ações e, consequentemente, as transformações que podem ocorrer sobre as ideias estatísticas.

Para Jean Piaget a construção do conhecimento ocorre por meio do processo de abstração reflexionante. Em sua obra, “Abstração Reflexionante: relações lógico matemáticas e ordem das relações Espaciais16” (1995), ele busca diferenciar a abstração empírica da abstração reflexionante: a primeira é procedente da retirada de características dos objetos através de experiências físicas e observáveis; a segunda “apoia-se sobre as coordenações das ações do sujeito, podendo essas coordenações, e o próprio processo reflexionante, permanecer inconscientes, ou dar lugar a tomadas de consciência e conceituações variadas” (p. 274).

Ou seja, as texturas, as cores, as formas dos objetos são características observáveis que são retiradas desses objetos. Do mesmo modo as ações, que também podem ser observáveis, como girar, falar, andar etc. Retirar as características materiais intrínsecas desses objetos ou das ações compõe o processo que Piaget descreve como abstração empírica. Porém, o ato de atribuir qualidades provenientes das coordenações das ações e que não podem ser observáveis, porque são resultantes das coordenações internas do sujeito, constitui o processo de abstração reflexionante.

Se, por exemplo, uma criança infere que a soma de parcelas iguais pode ser representada pela operação de multiplicação, ou se ela compreende que a disposição retangular de um conjunto de objetos ou pessoas podem ser contados multiplicando-se apenas uma linha por uma coluna, ao invés de contar todos os elementos, então ela coordena as ações de multiplicar e somar. Assim como quando um estudante infere que uma parcela de um gráfico de setores pode ser representada por uma fração, que a mesma também pode ser representada por uma porcentagem e, mais, que isso equivale à frequência relativa dos dados observados em Estatística. Nesse caso, o estudante coordena as ações de representar a fração como parte do todo, como porcentagem e como frequência relativa. Os exemplos citados são provenientes da coordenação das ações que ocorrem na mente do sujeito e, portanto, não podem ser observadas,

16 Obra em português, traduzida da obra original em francês, publicada em 1977 em dois volumes: “Recherches

Sur L´abstraction Réflechissante – L´abstracion desrelations logico-arithmétiques” (vol. 1) e L´abstracion de l´ordre des relations spatiales” (vol. 2).

constituindo-se em abstrações reflexionantes. De modo mais amplo, a abstração reflexionante, ao contrário da empírica, é fonte de novas construções.

Jean Piaget dividiu a abstração reflexionante em dois casos particulares: abstração pseudo-empírica e abstração refletida. A pseudo-empírica ocorre quando o objeto é modificado pelas ações do sujeito e enriquecido por propriedades tiradas de suas coordenações (1995, p.274). Becker, a partir das ideias de Piaget, explica que a abstração pseudo-empírica ocorre quando “se retira dos observáveis não mais suas características, mas o que o sujeito colocou neles” (2014, p.107). Ou seja, quando a leitura dos resultados ocorre a partir de objetos materiais, como se fossem abstrações empíricas, mas que, na verdade, não são retiradas dos aspectos observáveis e, sim, das propriedades introduzidas pelo sujeito (PIAGET, 1995). Uma criança ao observar um círculo e caracterizá-lo como uma bola, por exemplo. A bola não é uma característica do círculo, mas algo que a criança atribuiu a ele.

A abstração pseudo-empírica encontra-se no meio do processo de abstração empírica e abstração reflexionante. Segundo Becker, “como reflexionante, ela reconhece a legitimidade da abstração empírica, mas, ao mesmo tempo, mostra que é a reflexionante que organiza, dá sentido aos dados obtidos pela empírica” (2014, p.119). Já a abstração refletida ocorre quando o sujeito toma consciência de suas ações, ou seja, quando o sujeito compreende o processo de seu pensamento.

Para Jean Piaget (1995), o processo de abstração reflexionante é realizado em duas etapas: o reflexionamento e a reflexão: o primeiro consiste em projetar para um patamar superior aquilo que foi tirado do patamar inferior como, por exemplo, conceituar uma ação; o segundo consiste em um “ato mental de reconstrução e reorganização sobre o patamar superior daquilo que foi assim transferido do inferior” (1995, p.274-275).

Ao longo de suas pesquisas, Piaget (1995) identifica diferentes graus de reflexionamentos: o primeiro consiste em um processo que conduz das ações sucessivas à sua representação atual; o segundo consiste na reconstituição da sequência de ações do início ao fim, reunindo representações de um todo coordenado; o terceiro patamar é o das comparações, onde a ação total reconstituída no nível anterior é comparada a outras, semelhantes ou diferentes; após a identificação das estruturas comuns e não comuns inicia-se o quarto patamar que consiste nas “reflexões” sobre as reflexões precedentes, chegando, assim, a vários graus de meta reflexão ou pensamento reflexivo. Este último permite ao sujeito “encontrar as razões das conexões, até então simplesmente constatadas” (PIAGET, 1995, p.275).

A união do reflexionamento e da reflexão compõem uma estrutura que comporta diferenças qualitativas entre patamares inferiores e patamares superiores. Segundo Becker

(2012, p.36) “a metáfora patamar superior significa que conhecimentos de menor complexidade são reconstruídos dando origem a sínteses de maior complexidade e, portanto, de maior abrangência”. Gera-se assim um processo espiral, onde “todo o reflexionamento de conteúdos (observáveis) supõe a intervenção de uma forma (reflexão), e os conteúdos assim transferidos exigem a construção de novas formas devido a reflexão” (PIAGET, 1995, p.276). O processo de abstração acontece toda vez que o ciclo reflexionamento-reflexão é iniciado, não importando o nível que se encontra. A figura 12 apresenta uma síntese do processo de abstração reflexionante em evolução identificando os diferentes graus de reflexionamento e a alternância entre reflexionamento e reflexão.

Figura 12 - Processo de abstração reflexionante e graus de reflexionamento.

Fonte: Construção da autora.

Para Piaget (1995), o processo de abstração reflexionante ocorre em todos os estágios do desenvolvimento. Porém, a capacidade de realizar abstrações acompanha o desenvolvimento do sujeito. Ou seja, na medida que ele vai ficando mais velho maior a sua capacidade de atingir abstrações reflexivas. Do mesmo modo, quanto menor a idade do sujeito, prevalecem as abstrações empíricas e pseudo-empíricas, devido à necessidade de a criança ter que apoiar-se ao concreto para realizar abstrações (BECKER, 2014). Na medida que o estudante é estimulado a fazer abstrações através das interações com objetos e situações problemas, ele melhora a sua capacidade de pensamento evoluindo no processo de abstração reflexionante.

Compreendemos que a tecnologia pode potencializar o pensamento reflexivo, visto que ela apresenta recursos que podem concretizar as ideias não observáveis dos estudantes, assim como ajudá-los a atingir novos patamares de reflexionamento e de reflexão. Em particular, nesta pesquisa as ideias de Piaget darão o aporte teórico necessário para compreender como o software GeoGebra poderá ampliar as abstrações dos alunos frente aos conceitos estatísticos. Para ilustrar como compreendemos o processo de abstração reflexionante decorrentes da interação entre o sujeito e o GeoGebra, construímos um modelo inspirado no esquema apresentado por Valente (2005, p.54).

Figura 13 - Processo de abstração reflexionante na interação entre o sujeito e o GeoGebra.

Fonte – Reconstrução do esquema apresentado por Valente (2005, p.54).

De acordo com o modelo, o sujeito, ao interagir com o software, retira qualidades das construções presentes na tela através de características observáveis. Ao modificar essas construções ele atribui características ao objeto modificado e que não são observáveis realizando abstrações pseudo-empíricas. A abstração reflexionante ocorre quando o sujeito coordena suas ações mediante ao novo objeto construído. Ao conceituar aquilo que foi modificado, tomando consciência de suas ações, ocorre a abstração refletida.