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UM MODELO DE ANÁLISE TEXTUAL ORIENTADO PARA TRADUÇÃO

2. AS FUNÇÕES DA ANÁLISE DO TEXTO FONTE

2.2. O processo de tradução

Aqui, perguntamos onde a análise dos textos fonte, com suas fun- ções específicas, se insere no processo de tradução.

Nos estudos da tradução, o processo de tradução é geralmente representado em um modelo de duas ou três fases. Após uma bre- ve explicação dos dois modelos, vamos apresentar a nossa opinião sobre o processo de tradução que chamamos de “modelo circular”. Em nossa opinião, a tradução não é um processo linear e pro- gressivo que vai de um ponto de partida F (= TF) a um ponto de chegada A (= TA), mas, sim, basicamente, um processo circular e recursivo que inclui um número indeterminado de retroalimenta- ções e em que é possível, e até mesmo aconselhável, voltar a fases anteriores da análise.

2.2.1. O modelo de duas fases

Este modelo representa a tradução como um processo que consis- te de duas fases cronologicamente sequenciais, nomeadas análise (em outras terminologias, fase de decodificação ou compreensão) e síntese (também fase de recodificação, reconstrução ou reverba- lização). Na primeira fase, o tradutor lê o texto fonte, analisando os seus aspectos relevantes.59 Na segunda, o significado ou sentido do

TF é reverbalizado na língua alvo. Sendo assim, ao eleger o signifi- cado ou sentido como um tertium comparationis, o tradutor escolhe os signos da LA que correspondem a cada signo da LF.

Wills considera que o modelo de duas fases é mais “conciso” do que o modelo de três fases, que contém a transferência como uma terceira fase inserida entre a análise e a síntese. Em sua opinião, o modelo de duas fases “traz mais claramente a função dupla R1/E2 do tradutor”, ou seja, seu papel como receptor do TF e emissor do

59 “Passo de identificação do texto da língua fonte. tlf”, segundo W. Wilss, op. cit., 1982.

TA, e “retrata a atividade do tradutor de uma forma mais realista”.60

Talvez ele pense aqui na interpretação simultânea. Nesta forma es- pecial de tradução, os fatores situacionais (por exemplo, tempo, lu- gar, meios) são idênticos para o produtor do TF, para o tradutor e para o receptor do TA, e a maior parte das operações de tradução tem que ser automatizada tanto quanto possível devido ao tempo. Então, na verdade, parece não haver aqui espaço para a “transferên- cia” entre a recepção do TF e a produção do TA. Em nossa opinião, entretanto, a fase de transferência é meramente reduzida aqui ao mínimo de tempo através da automatização, mas não desaparece por completo.

O modelo de duas etapas se baseia no pressuposto de que tra- duzir é uma operação de troca de códigos (code-switching)61 na base

de signo por signo. Mas isso só se aplica a “procedimentos tradutó- rios convencionados ou parcialmente convencionados” — nas pa- lavras de Wilss —, como, por exemplo, a substituição interlingual de expressões clichê, tais como Noentry, Zutrittverboten, Prohibido entrar, Défensed’entrer, Entrada proibida etc., ou a gêneros estrita- mente convencionados, como boletins meteorológicos. O modelo de duas fases sugere indevidamente que competência receptiva no idioma fonte e competência produtiva na língua alvo são tudo o que um tradutor precisa.

2.2.2. O modelo de três fases

A fase intermédia para as operações de transferência, que não está presente no modelo de duas fases, é inserida entre a fase de com- preensão e a fase de reconstrução no modelo de três fases. Então,

60 W. Wilss, op. cit., 1982, p. 80. 61 W. Wilss, op. cit., 1977, p. 626.

o processo de tradução é dividido em três passos: análise (fase de decodificação ou de compreensão), transferência (ou transcodifica- ção) e síntese (ou recodificação).

Isto é, o tradutor primeiro analisa a mensagem do idioma fonte em suas formas mais simples e estruturalmente mais claras, transfere-a neste nível, e então a reestrutura para o nível da linguagem do RECEPTOR, que é mais adequado para o público que ele pretende alcançar.62

Como no modelo de duas fases, a primeira fase do modelo de três fases é a fase de compreensão, que envolve uma análise detalha- da dos elementos estilísticos, gramaticais e semânticos que assegure que o tradutor compreenda o significado (denotativo e conotativo) da informação dada (tanto explicitamente como implicitamente) no texto.

Na segunda fase, o “significado da mensagem recebida” é relacio- nado com a “intenção da mensagem alvo”, como aponta Zimnjaja,63

e transferido para a LA, seja com base na relação de equivalência entre itens lexicais ou, se a função do texto deve ser alterada, de acordo com a função do TA. Esse é o ponto em que a competência para transferência vem à tona, pois é aqui que o tradutor precisa desenvolver uma espécie de plano ou estratégia tradutória.

A terceira fase do modelo de três fases corresponde à segun- da fase do modelo de duas fases. Os itens transferidos do TF são reestru turados em um texto alvo que está em conformidade com as necessidades do receptor do TA.

62 E. A. Nida, “The nature of translating”, p. 79.

63 I. A. Zimnjaja, „Die psychologische Analyse der Translation als Art der Redetäti- gkeit“, in O. Kade (ed.), Vermittelte Kommunikation, Sprachmittlung, Translation, Lei- pzig, Verlag Enzyklopadie Leizig, 1977, pp. 66-77.

O modelo de três fases se baseia na ideia de que o objetivo da tradução é “a realização de comunicação verbal entre pessoas que falem línguas diferentes”.64 Por isso, parece contraditório, na nossa

opinião, afirmar que o tradutor pode ser simultaneamente tanto re- ceptor do TF como emissor do TA. Em uma comunicação verbal entre o autor do TF e o receptor do TA, o autor do TF não renuncia a seu papel de emissor, e o tradutor é um produtor de texto seguin- do as instruções do emissor.

2.2.3. O modelo circular

O modelo de três fases parece estar muito mais próximo da realidade da tradução profissional do que o modelo de duas fases. Contudo, ambos os modelos partem da hipótese de que o TF tem certa função inerente a ele, que deve ser transferida para a situação alvo, e de que é a análise do texto fonte sozinha que fornece os critérios de transfe- rência. Segundo esse modelo, supõe-se que cada TF carrega as suas instruções de tradução, dizendo ao tradutor como deve ser transferi- do. Tal como descrito no Capítulo 1.2, no entanto, a função do texto é estabelecida na situação comunicativa e a partir dela, e isto é válido tanto para o texto fonte como para o texto alvo. Por conseguinte, não existe um texto fonte com uma função inerente. Mas, sim, temos de considerar uma variedade maior ou menor de diferentes versões do TF, cada uma com uma função diferente. Uma vez que o tradutor é apenas um dos muitos possíveis receptores do TF (e não é, de fato, um receptor típico), a sua opinião sobre a função do texto fonte não pode ser considerada definitiva. O que ele trata como uma função do TF não deve ser necessariamente a função do TF.65

64 V. N. Kommissarov, „Zur Theorie der linguistischen Übersetzungsanalyse“, p. 46. 65 H. J. Vermeer, op. cit., [1979] 1983, p. 72.

A abordagem do problema sugerida por Reiss e Vermeer66 é mais

convincente. Na opinião deles, o texto alvo representa uma “oferta de informação” sobre a oferta de informação fornecida pelo tex- to fonte. Ou, para ser mais preciso, o tradutor oferece informações sobre determinados aspectos do TF-em-situação, de acordo com o skopos do TA fixado pelo iniciador. Mesmo assim, o modelo de três fases não pode ser considerado tampouco uma boa representação do processo de tradução, porque não leva em conta o encargo de tradução formulado pelo iniciador (possivelmente em colaboração com o tradutor). O encargo é o único meio de verificação dos resul- tados da recepção do TF pelo tradutor e, assim, submete-os a um critério mais objetivo.

Por isso, temos de estender a representação esquemática da ação tradutória apresentada na Figura 1, com se segue (ver Figu- ras 3 e 4). O primeiro passo (preferimos falar de passos em vez de fases) no processo de tradução é a análise e/ou a interpretação do skopos do TF, ou seja, dos fatores que são relevantes para a realiza- ção de certo propósito pelo TA em uma dada situação SITA. Seria

útil operacionalizar o skopos do TA, uma vez que sua importância para o processamento dos diversos elementos e aspectos do TF é aparente (ver Capítulo 4.0c). O segundo passo é uma análise do texto fonte, que é dividida em duas partes. Considerando que, na primeira parte da análise do TF, o tradutor só precisa ter uma ideia geral sobre se o material fornecido pelo texto fonte é com- patível (c) com as exigências do encargo. Já a segunda parte pode exigir uma análise detalhada e abrangente de todas as categorias do texto, concentrando-se a atenção sobre os elementos do texto que, segundo o skopos do TA, são de particular importância para a produção do texto alvo.

Exemplo 2.2.3/1

O relato de uma testemunha ocular da “revolução pacífica” da antiga rda, em 9 de novembro de 1989, foi gravado em fita e posteriormente transcrito. Um jorna- lista norte-americano pede uma tradução da transcrição porque ele quer usar as informações para um livro sobre as mudanças políticas na Europa Oriental em 1989. Tendo em vista essa função pretendida do TA, o tradutor dará atenção especial a qualquer informação explícita ou implícita contida no relato, negligen- ciando, no entanto, as características de espontaneidade, a fala informal e os clichês retóricos utilizados pela testemunha para impressionar o entrevistador, uma vez que estes são de importância secundária para o propósito do jornalista. No entanto, se a transcrição for traduzida para publicação em um jornal ame- ricano como um “testemunho ocular”, as características da fala espontânea e emocional são de particular interesse, porque elas vão enfatizar o gênero “teste- munho ocular” para os leitores.

Após o término da análise do TF, o tradutor é capaz de iden- tificar os elementos ou características relevantes à tradução do TF que serão, se necessário, adaptados em seguida para o skopos do TA e combinados com os elementos correspondentes da LA. O tradutor tem que decidir quais dos elementos potencialmen- te apropriados da LA serão adequados para a função do TA. A estruturação do texto alvo é o último passo que fecha o círculo. Se o tradutor foi bem-sucedido na produção de um texto funcio- nal, conforme as necessidades do iniciador, o texto alvo será con- gruente com o skopos do TA.

Figura 3: O processo de ação tradutória (2)

PRODUÇÃO TF RECEPÇÃO TF

SITUAÇÃO COMUNICATIVA SIT-F SITUAÇÃO COMUNICATIVA SIT-A

SKOPOS DO TEXTO FONTE SKOPOS DO TEXTO ALVO

PROCESSO DE TRADUÇÃO TF-R INI TF-R TA-R TRD X TF X X X C X PRODUÇÃO TA RECEPÇÃO TA E X TA X X TRADUÇÃO

A Figura 3 é a continuação da Figura 1 e mostra todas as fa- ses e componentes envolvidos na tradução, enquanto a Figura 4 representa o processo de tradução com o modelo circular, acima descrito. Este último está intimamente ligado à pessoa do tradu- tor, que é a figura central do processo de transferência intercul- tural do texto. O processo começa após o iniciador fixar o skopos do TA (situação alvo e função do TA), no topo da figura, com a análise e, se necessário, a interpretação do encargo de tradução, e segue em sentido anti-horário até a produção de um TA que se insere na situação alvo prospectiva.

O caminho circular do processo de tradução contém uma sé- rie de pequenos movimentos circulares que se mantêm recorrentes

entre a situação do TF e o TF, entre a situação do TA e o TA, entre os passos da análise e entre a análise do TF e a síntese do TA. Isso significa que a cada passo adiante o tradutor “olha para trás”, para os fatores já analisados, e cada conhecimento adquirido no transcurso do processo de análise e compreensão pode ser confirmado ou cor- rigido com base em “descobertas” posteriores.

Figura 4: O processo de tradução

Interpretação das instruções de TRD PLANIFICAÇÃO DA ESTRATÉGIA TRANSLATIVA Análise do TF Teste de compatibilidade SITUAÇÃO DO TF SITUAÇÃO DO TA Produção do TA Controle de qualidade Identificação das características do TF relevantes para o TA Operações de transferência

Levý compara esse processo a um jogo estratégico:

[...] uma vez que o processo de tradução tem a forma de um JOGO COM INFOR- MAÇÕES COMPLETAS — um jogo em que cada jogada subsequente é influen- ciada pelo conhecimento das decisões anteriores e pela situação resultante (por exemplo, xadrez, mas não jogos de baralho).67

A interpretação da tradução como um processo circular pode ser considerada uma analogia representando um conceito moder- no de hermenêutica,68 em que o “círculo de compreensão” é uma

metáfora da “interdependência dos movimentos da tradução e o movimento do intérprete”.69