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Proibição de Venire contra Factum Proprium;

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2) Proibição de Venire contra Factum Proprium;

Representa este princípio uma vedação genérica à violação da confiança e deslealdade, ou, como definido por Menezes Cordeiro, ao “exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente pelo exercente”.119

Na mesma esteira, Judith Martins-Costa afirma que o fundamento técnico- jurídico do venire contra factum proprium consubstancia-se na proteção da confiança da parte adversa, devendo haver configuração de alguns elementos para sua ocorrência.120

116 DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende, op. cit., p. 95. 117 COSTA, Judith Martins, op. cit., p. 335.

118 RIBEIRO, José Horácio Halfeld Rezende. “Abuso do direito. Contornos de direito material e processual”,

in Revista do Advogado, n.º 98, São Paulo, AASP, 2008, p. 139.

119 CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. op. cit., p. 742.

120 Na lição de Judith Martins-Costa, “o seu fundamento técnico-jurídico – e daí a conexão com a boa-fé

Fredie Didier Jr. acrescenta que o princípio que veda o venire contra factum proprium não só se relaciona com a proteção à confiança, como também ao princípio da cooperação, haja vista que ambos compõem o conteúdo da cláusula geral da proteção da boa-fé objetiva na relação jurídica processual.121

A proibição do comportamento contraditório derivado do princípio da boa- fé objetiva também encontra guarida no direito estrangeiro, onde também é conhecida como doutrina dos atos próprios.

Diez-Picazo discorre sobre o tema dizendo que dentre as conseqüências do dever de atuar de boa-fé está a exigência de comportamento coerente, que significa que, quando uma pessoa, dentro de uma relação jurídica, agiu de determinada forma, de modo a gerar uma confiança nesta pessoa, não poderá, posteriormente, em conduta futura, quebrar a confiança gerada atuando de maneira incompatível com a conduta inicialmente adotada. Finaliza dizendo que a exigência de comportamento coerente está estritamente vinculada à boa-fé e à proteção da confiança.122

De acordo com Ruy Rosado de Aguiar, havendo real contradição entre dois comportamentos, a significar que o segundo ocasiona a quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta posterior.123

Aliás, como bem observado por Fredie Didier Jr., a vedação ao venire contra factum proprium (regra que proíbe o comportamento contraditório) está

terreno, mediante a configuração dos seguintes elementos, objetivos e subjetivos: a) a atuação de um fato gerador de confiança, nos termos em que esta é tutelada pela ordem jurídica; b) a adesão da contraparte – porque confiou – neste fato; c) o fato de a contraparte exercer alguma atividade posterior em razão da confiança que nela foi gerada; d) o fato de ocorrer, em razão de conduta contraditória do autor do fato gerador da confiança, a supressão do fato no qual fora assentada a confiança, gerando prejuízo ou iniqüidade insuportável para quem confiara” (A boa-fé no direito privado: sistema e

tópica no processo obrigacional, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, p. 470-471).

121 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Alguns aspectos da aplicação da proibição do venire contra factum proprium

no processo civil, disponível no site www.frediedidier.com.br.

122 DÍEZ-PICAZO. La doctrina de los próprios actos, Barcelona, Bosch, 1963, p. 142.

intrinsicamente relacionada à preclusão lógica, que consiste na perda da ‘faculdade’ processual por se ter praticado ato incompatível com seu exercício.124

A jurisprudência também vem dando acolhida ao princípio da boa-fé objetiva, vedando o venire contra factum proprium.125-126-127

124 DIDIER JÚNIOR, Fredie. op. cit., p. 8.

125PROCESSUAL CIVIL – REEXAME NECESSÁRIO – AUSÊNCIA DE APELAÇÃO DO ENTE

PÚBLICO – INADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL – PRECLUSÃO LÓGICA. 1. É fato público e notório que as reformas processuais implementadas no Código de Processo Civil ao longo dos últimos anos tem como objetivo dar efetividade a garantia constitucional do acesso à justiça, positivada no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Como exemplo desse louvável movimento do legislador tem-se a dispensa do reexame necessário nas causas de competência do Juizado Especial Federal, consoante prevê o art. 13 da Lei 10.259/2001, e nas demais causas mencionadas nos §§ 2º e 3º do art. 475 do diploma processual, na redação que lhes deu a Lei 10.352/2001. 2. À luz dessa constatação, incumbe ao STJ harmonizar a aplicação dos institutos processuais criados em benefício da fazenda pública, de que é exemplo o reexame necessário, com os demais valores constitucionalmente protegidos, como é o caso do efetivo acesso à justiça. 3. Diante disso, e da impossibilidade de agravamento da condenação imposta à fazenda pública, nos termos da Súmula 45/STJ, chega a ser incoerente e até mesmo de constitucionalidade duvidosa, a permissão de que os entes públicos rediscutam os fundamentos da sentença não impugnada no momento processual oportuno, por intermédio da interposição de recurso especial contra o acórdão que a manteve em sede de reexame necessário, devendo ser prestigiada a preclusão lógica ocorrida na espécie, regra que, segundo a doutrina, tem como razão de ser o respeito ao princípio da confiança, que orienta a lealdade processual (proibição do venire contra factum proprium). 4. A ilação de que fraudes e conluios contra a fazenda pública ocorrem principalmente no primeiro grau de jurisdição, levando à não-impugnação da sentença no momento processual oportuno pelos procuradores em suas diversas esferas do Poder Executivo, por si só, não tem o condão de afastar a indispensável busca pela efetividade da tutela jurisdicional, que envolve maior interesse público e não se confunde com o interesse puramente patrimonial da União, dos Estados, do Distrito Federal e de suas respectivas autarquias e fundações. Ademais, o ordenamento jurídico possui instrumentos próprios, inclusive na seara penal, eficazes para a repressão de tais desvios de conduta dos funcionários públicos. 5. É irrelevante, ainda, o fato de o art. 105, III, da Constituição Federal não fazer distinção entre a origem da causa decidida, se proveniente de reexame necessário ou não, pois o recurso especial, como de regra os demais recursos de nosso sistema, devem preencher, também, os requisitos genéricos de admissibilidade que, como é cediço, não estão previstos constitucionalmente. Em outras palavras, a Carta Magna não exige, por exemplo, o preparo ou a tempestividade, e nem por isso se discute que o recurso especial deve preencher tais requisitos. 6. Recurso especial não conhecido em razão da existência de fato impeditivo do poder de recorrer (preclusão lógica)” (STJ, 2ª Turma, RESP 904.885-SP, rel. Ministra Eliana Calmon, DJU 9.12.2008).

Pode este princípio ter aplicação tanto em relação às atitudes omissivas ou comissivas. Anderson Scheiber considera como pressupostos para a incidência do venire: a) um factum proprium, isto é, uma conduta inicial; b) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; c) um comportamento contraditório com este sentido objetivo; d) um dano ou, no mínimo, um potencial de dano a partir da contradição.128

Ocorre o venire contra factum proprium, por exemplo, quando a parte recorrer contra uma decisão que anteriormente havia aceitado, nos moldes do art. 503 do Código de Processo Civil ou, conforme disposto no art. 243, quando a parte requerer a decretação de nulidade que ela mesma deu causa.

Configura-se também o venire contra factum proprium quando, instituído o Tribunal Arbitral, a parte invoca a incompetência deste tribunal e, em razão da Kompetenz Kompetez os árbitros acolhem esta alegação. Assim, o litígio começa a tramitar em juízo e esta mesma parte suscita a existência da convenção de arbitragem, requerendo a extinção do processo sem julgamento do mérito, conforme art. 267, VII, do Código de Processo Civil.

Outrossim, ocorrerá o venire contra factum proprium na hipótese em que a parte tentar beneficiar-se da própria torpeza, a denominada nemo auditur propriam turpitudinem allegans, pois é da própria essência do Direito e da Justiça que a parte não possa se beneficiar de um ato malicioso. Aliás, a própria alegação de desconhecimento da 127 “CIVIL E PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA. TAXAS DE CONDOMÍNIO. OBRIGAÇÃO

PROPTER REM. PROPRIETÁRIO. ARREMATAÇÃO. ÔNUS DO PAGAMENTO QUE SE TRANSMITE AO ARREMATANTE. SUPPRESSIO. SURRECTIO. PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ OBJETIVA, DA CONFIANÇA, DO ABUSO DE DIREITO E DO "VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM" (TEORIA DOS "FATOS PRÓPRIOS"). 1 - Segundo o entendimento predominante no STJ, a responsabilidade pelo pagamento das cotas de condomínio transmitem-se ao adquirente, ainda que a alienação tenha-se dado em arrematação judicial. 2 - Constitui abuso de direito e violação aos princípios da boa-fé objetiva, e da confiança, a cobrança de cotas condominiais a despeito de ter o condomínio deixado de cobrá-las do devedor originário durante quase vinte anos, vedada, segundo a teoria da suppressio/surrectio, a sua cobrança, exclusivamente em relação ao arrematante, após esse tempo, ainda que não implementado o prazo prescricional vintenário. 3 - Recurso do autor improvido, maioria. recurso da ré não conhecido, Unânime” (TJ-DF, 4ª Turma Cível, Apel. n. 20020110912155, rel. Des. Cruz Macedo, DJU 20.9.2005, p. 136).

128 SCHREIBER, A. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra

lei não poderá ser invocada para seu benefício, já que tal escusa foi afastada pelo ordenamento brasileiro (LICC, art. 3º).

Como se vê, o instituto em questão tem incidência quando a parte, por exemplo, alegar nulidade processual que tenha dado causa. Ou quando o suposto pai recusa-se a participar de exame para comprovar a paternidade, e tenta valer-se da falta de prova para a improcedência do pedido.129