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Canto XXIV (Omega) – O resgate do corpo de Heitor (

E XERCÍCIOS

III. Terceira Unidade: Visão Genérica dos Autores do Teatro Trágico

3. Prometeu Acorrentado

Ésquilo traz para a tragédia a idéia de Justiça, mais ou menos estranha a Homero, mas que aparece com nitidez em Hesíodo (v. Trabalhos e dias). Afirma Paul Mazon na introdução geral à obra de Ésquilo21:

“Ésquilo compreende que a essência do drama deve ser esta idéia de justiça, que se incorporou à definição mesma do homem. Toda ação humana formula uma questão de direito. A tragédia tratará, portanto, das questões de direito” (ÉSCHYLE, 2002: XI).

Uma idéia original em Ésquilo é a de que o direito se desloca, pela incapacidade do homem em retê-lo. Ao querer mais do que lhe compete, o homem vê o direito colocar-se ao lado do adversário. A única maneira de combater o excesso é a moderação, virtude suprema aos olhos do grego. Ao saber se moderar, o homem poderá conservar consigo o direito que lhe cabe. Entregar-se às paixões é o meio mais rápido para que o homem se veja privado do seu direito.

A discussão travada em Prometeu acorrentado enfoca justamente a concepção de direito e justiça. Texto de data desconhecida, esta peça faz parte de uma trilogia – Prometeu acorrentado, Prometeu libertado

21 ESCHYLE. Tragédies: Les suppliantes, Les perses, Les sept contre Thèbes,

Prométhée enchaîné; texte établi et traduit par Paul Mazon. 2. éd. Paris: Les Belles

e Prometeu porta-fogo –, em que personagens divinos são mostrados numa teomaquia, a exemplo de Homero e de Hesíodo, com a diferença de que nos dois poetas épicos as teomaquias não constituem tragédias, pois não comportam uma idéia moral.

Tendo roubado o fogo sagrado de Zeus para dá-lo aos humanos, Prometeu é punido com o acorrentamento ao Cáucaso, com o sepultamento vivo pela montanha e, posteriormente, com o martírio de uma águia, a águia de Zeus, que vem comer-lhe o fígado diariamente. Na peça, que ora estudamos, única que nos sobrou, só vemos as duas primeiras partes da punição: o aprisionamento e o sepultamento vivo de Prometeu, embora Hermes anuncie ao Titã a terceira parte da punição.

O conflito Zeus x Prometeu, no entanto, vai além do roubo do fogo ou do ludíbrio de Prometeu a Zeus. Não há dúvida de que o Titã se rebelou e quebrou a lei divina ao levar o fogo aos homens, mas Prometeu é detentor de um segredo importante para Zeus, o oráculo de Thêmis, que lhe foi anunciado e cujos desdobramentos ele conhece por ser ele sabedor do que vai acontecer, vez que seu nome significa o que conhece antes. No conflito da peça fica clara a desmedida de Zeus em relação a Prometeu, sendo a Força e o Poder, deuses que acompanham Hefestos na missão de acorrentar Prometeu, o símbolo desta desmedida. Ao que parece, o endurecimento da punição é menos pelo roubo do fogo e mais por ser o Titã detentor de um segredo danoso a Zeus, cuja revelação depende de sua libertação.

Na trilogia, se estabelece que é da desmedida que se reconhece, dolorosamente, a moderação e o domínio de si, como virtudes importantes e necessárias, mesmo no Olimpo. Zeus como um deus cósmico, que ordena o universo, deverá se moderar e permitir a libertação de Prometeu – primeiro com Hércules matando a águia, depois com a troca de Prometeu pelo Centauro Quíron, que, ferido por Hércules, aceitará descer ao Hades em lugar do Titã – para não pôr em risco a ordem que ele mesmo criou. Desse modo, é importante o episódio de Io, antepassada de Hércules, que toma boa parte da peça.

A peça se inicia com Hefestos, acompanhado do Poder e da Força, levando Prometeu, que segue e se mantém calado, para o aprisionamento. Hefestos é quem tem a obrigação de prender Prometeu ao rochedo do Cáucaso. O erro de Prometeu foi roubar o fogo brilhante de onde nascem todas as artes para levá-lo aos homens: Prometeu está sendo punido por ser benfeitor dos homens. Zeus como

novo mestre, que impõe uma nova ordem, tem coração inflexível, duro como um rochedo.

O Poder demonstra sua força sem concessões, enquanto Hefestos mostra-se constrangido em aprisionar Prometeu, revelando o conflito da técnica obrigada a servir ao poder constituído. Daí dizer-se que a peça trata da prepotência, palavra que não deve ser entendida como arrogância, mas com o sentido de alguém ter o poder sobre todas as coisas.

Prometeu só se pronuncia a partir do verso 88, para lamentar-se de sua condição, iniciando com a invocação das forças da natureza:

“Éter divino, ventos de asa rápida, águas dos rios, sorriso inumeráveis das vagas marinhas, Terra, mãe dos seres, e tu, Sol, olho que tudo vê, eu os invoco aqui: vede o que um deus sofre pelos deuses!” (v. 88-92).

O roubo do fogo numa férula, entregando-o aos mortais é mais do que uma rebelião contra Zeus, é a afirmação de Prometeu como mestre de todas as artes. O fogo aí aparece como um grande recurso, permitindo aos seres humanos a entrada na civilização. Toda a constituição da peça aponta para os primórdios, para os mitos da origem, do mundo arcaico, portanto. Assim é que o coro, formado pelas Oceânides, mostra a nova lei que se impõe a partir de Zeus, lei que destrói os colossos do passado, numa alusão aos Titãs e à titanomaquia – a luta e vitória de Zeus contra os Titãs e, sobretudo, seu pai, Cronos. Esta vitória, só possível com a astúcia de Zeus, mais do que a força dos seus adversários, conta com a ajuda de Prometeu, antigo aliado do deus supremo do Olimpo. O que leva, então, Prometeu a cair em desgraça e passar da ventura à desventura, como diria Aristóteles? Foi o fato de ele ter infringido o direito e ter dado cegas esperanças aos seres humanos. Ele comete a desmedida e não segue o aforisma básico da contenção: “Conhece-te a ti mesmo” (v. 309).

Oceano, pai das Oceânides, intervém para recriminar Prometeu por sua falta de humildade e por querer se opor a um monarca, cujo poder não tem contas a prestar. Mesmo assim, Oceano tenta ajudar Prometeu, mostrando-se disposto a intervir junto a Zeus a seu favor, mas é ironizado pelo Titã. Em lugar de se mostrar humilde, Prometeu passa a desfiar todos os benefícios que levou aos seres humanos. E aí,

flagramos o conflito dialético da peça: quem ensinou aos seres humanos todas as artes, para libertação da ignorância, ignora a arte de se libertar a si mesmo:

“No início, eles viam sem ver, eles escutavam sem ouvir, e, iguais às formas oníricas, viviam sua longa existência na desordem e na confusão. Eles ignoravam as casas de tijolo ensolaradas, eles ignoravam o trabalho da madeira; eles viviam sob a terra como formigas ágeis, no fundo de grotas fechadas ao sol” (v. 447-453).

Prometeu ensina aos seres humanos a astronomia, os números, as letras, a arte de construir os carros atrelados a cavalos, os navios a vela, a medicina, as artes divinatórias, a ornitomancia, a queima da carne envolta na gordura para saber os presságios; revelou-lhes os tesouros sob a terra – ouro, prata, bronze, ferro: “Com uma palavra tu saberás tudo ao mesmo tempo: todas as artes aos mortais vieram de Prometeu (resposta ao Corifeu, v. 505-506).

O episódio de Io (v. 591-886) é dos mais importantes na peça, pois anuncia o nascimento do libertador de Prometeu, treze gerações depois. Perseguida pelo fantasma de Argos, o cão de Hera, morto por Hermes, enquanto a vigiava, Io vai falar com Prometeu, que lhe prediz o futuro: ela, fugindo aos moscardos que a picam, atravessará o estreito que separa a Europa da Ásia e que levará seu nome (futuro estreito de Bósforo ou passagem da vaca, pois Io se apresenta como uma novilha). Depois, chegando ao Egito, Io dará à luz Epafos, iniciador de gerações que vão culminar em Hércules, o futuro libertador do Titã (v. genealogia em seguida).

A Io, Prometeu revela parte do oráculo de Thêmis sobre a queda de Zeus: o deus pai terá um casamento de que se arrependerá, pois o filho por ele gerado será mais forte que o pai, proporcionando a sua queda. Com a queda, Zeus saberá qual a diferença entre reinar e servir (v. 926-927).

Hermes, mensageiro de Zeus, aparece como núncio de castigos maiores (v. 944-1093). Querendo descobrir qual o casamento que proporcionará a queda de Zeus, Hermes encontra um Prometeu cheio de orgulho e de ironia, para quem o segredo só será revelado com a libertação. Em resposta a Hermes que lhe diz ser Zeus desconhecedor do lamento, Prometeu retruca:

“Não existe nada que com a velhice, o tempo não ensine” (v. 980).

Hermes anuncia o castigo além do acorrentamento: ele será sepultado vivo pela montanha e, depois, a águia de Zeus comerá o seu fígado eternamente. Na sua fala final, Prometeu faz o encerramento com o mesmo lamento inicial sobre a injustiça de que é vítima:

“Mas eis os fatos e não mais as palavras: a terra vacila; nas suas profundezas, ao mesmo tempo, muge a voz do trovão; em ziguezagues embrasados o raio surge explodindo; um ciclone faz turbilhonar a poeira; todos os sopros do ar se lançam ao ataque uns aos outros; a guerra é declarada entre os ventos, e o éter já se confunde com os mares. Eis, portanto, a tormenta que, para me espantar, manifestamente vem sobre mim, em nome de Zeus. Ó Majestade de minha mãe e tu, Éter, que faz rolar em torno do mundo a luz oferecida a todos, vós vedes bem as iniqüidades que eu suporto? (v. 1080-1093)

É essencial para o estudo da peça que compreendamos o seguinte: Prometeu está ligado ao mito primordial da criação da terra, dos deuses e dos homens, fruto de uma teogonia, que se desdobra em uma titanomaquia, para estabelecimento de uma cosmogonia (v. Hesíodo, Teogonia.), em que Zeus reinará absoluto, mesmo partilhando o poder com os irmãos Posídon (deus do mar) e Hades (deus do interior da terra, o mundo inferior). Por outro lado, o oráculo de Thêmis revela uma possível queda de Zeus, o que resultaria no retorno ao caos. É a justiça que vai de encontro ao direito. É do direito de Zeus punir Prometeu pelo roubo do fogo, levado aos seres humanos, mas é justo que ele seja punido por tirá-los da cegueira em que viviam, abrindo- lhes as portas da civilização? Eis a grande questão da peça.

Para não correr o risco de retorno ao caos com a perda do seu poder, Zeus terá de se vencer a si mesmo, moderando a sua desmedida e proporcionando a libertação de Prometeu, através de uma das mulheres por ele fecundadas, Io. A libertação sairá das mesmas mãos de quem puniu. Saindo da ventura para desventura, Prometeu conhece antecipadamente a possível queda de Zeus, mas ignora como poderá

se libertar. Submetido à força e ao poder, seu trunfo é a justiça divina, o oráculo de Thêmis.

Por fim, podemos ver Prometeu acorrentado como uma alegorização da Pólis, no sentido de que a civilização está em desacordo com o poder prepotente que, como diz Oceano, não tem contas a prestar. GENEALOGIA DE HÉRCULES Zeus ~ Io Epafos ~ Mênfis Líbia ~ Posídon

Agenor (Fenícia) ~ Telefaassa Belo (Egito) ~ Anquíone

Cadmo Europa ~ Zeus Danaos Egipto

Hipermnestra ~ Lynceu Abas ~ Aglaia Eurídice ~ Acrísio Zeus ~ Dânae Andrômeda ~ Perseu

Estênelo ~ Nícipe Eléctrion ~ Anaxo

Euristeu Zeus ~ Alcmena

GLOSSÁRIO

Acrópole: Literalmente, cidade alta, cidade no cume. É a parte

alta da cidade de Atenas, onde se encontra o Partenon, grande templo em louvor de Palas Atena, a deusa protetora da cidade.

Antístrofe: Movimento do coro para a esquerda, em torno do

altar, no centro da orquestra, durante a apresentação da tragédia.

Bacante: Seguidor de Dionisos, tomado pela fúria do deus. O

deus Dionisos também era conhecido como Baco.

Catarse: A tragédia tinha por objetivo inspirar terror e piedade. A

catarse era a conseqüência disso, objetivando a purificação das emoções.

Deuteragonista: O segundo personagem em cena, introduzido por

Ésquilo.

Ditirambo: Hino a Dionisos, cantado durante a procissão da

faloforia.

Entusiasmo: Trata-se da possessão divina, a animação por um

transporte divino, para transformar-se em bacante.

Estreito de Bósforo: Passagem que divide a Europa da Ásia, que

dá acesso do Mar de Mármara ao Mar Negro ou vice-versa. Na parte Européia do Estreito de Bósforo encontra-se Istambul, que já foi Constantinopla e já foi Bizâncio. Seu nome significa literalmente “Passagem da Vaca” por causa de Io.

Estrofe: Movimento do coro para a direita, em torno do altar, no

centro da orquestra, durante a apresentação da tragédia.

Êxtase: Trata-se do deslocamento do espírito. O seguidor de Dionisos buscava sair de si para ir ao encontro do deus ou para que o deus pudesse entrar nele.

Faloforia: Procissão para culto de Dionisos e da fertilidade. Os

seguidores do deus carregavam um enorme falo sobre o andor, em homenagem ao deus Príapo, agradecendo pelas colheitas e pela fertilidade.

Grandes Dionisíacas: Festas entre os meses de março e abril,

durante a primavera, em honra ao deus Dionisos, para culto da fertilidade e da colheita. Durante essas festas acontecia o concurso de teatro.

Oceânides: Filhas de Oceano e Téthys. Hesíodo alude a quarenta

próprio nome indica, divindades marinhas.

Ornitomancia: É a prática de se descobrir o futuro a partir do vôo

dos pássaros ou do estudo de suas entranhas.

Peripécia: Ação que na Tragédia resulta no contrário do esperado. Pólis: Assim se chama a cidade grega, a partir do século VI a. C.

A pólis marca a entrada da Grécia na democracia, com os cidadãos (polites) se reunindo em torno da praça (ágora) para tomar as decisões.

Protagonista: O personagem principal. Até Ésquilo, tratava-se do

único personagem em cena.

Reconhecimento: Momento da tragédia em que o personagem sai

da ignorância para o conhecimento dos fatos.

Teomaquia: Batalha dos deuses. É assim que acontece na Ilíada,

nos Cantos XX e XXI, quando Zeus libera a participação dos deuses na guerra de Tróia, para que eles tomem o partido que lhes parecer melhor. Também na Teogonia de Hesíodo existe uma teomaquia, mais especificamente uma titanomaquia, na luta de Zeus contra os Titãs, liderados por seu pai Cronos. Zeus é o vencedor, aprisionando os Titãs no Tártaro.

Titanomaquia: V. Teomaquia.

Trilogia: conjunto de três peças trágicas, apresentadas por ocasião

dos concursos.

Tritagonista: Terceiro personagem em cena, introduzido por

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