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Introdução aos Estudos Clássicos. Milton Marques Júnior

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Academic year: 2021

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Introdução aos Estudos Clássicos

Milton Marques Júnior

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Caros Alunos,

Esta disciplina Introdução aos Estudos Clássicos vai apresentar-lhes o mundo da poesia heróica e da poesia dramática, a partir da leitura de textos escolhidos de seus principais autores, como Homero e Virgílio, no gênero épico, e Ésquilo, Sófocles e Eurípides, no gênero dramático. Com a leitura dos autores escolhidos, teremos condições de compreender um conceito sobre o Clássico e a funcionalidade das literaturas grega e latina, conhecendo sua periodização e suas especificidades. O estudo da poesia épica, sobretudo, vai ajudá-los a perceber a obra de Homero e de Virgílio como textos deflagradores do fenômeno literário do Ocidente, importantes, portanto, para a nossa cultura.

O objetivo desta disciplina é dar-lhes as condições necessárias para perceber na nossa época e na nossa cultura os elementos de um mundo antigo que muitos supõem morto e enterrado no passado. Apenas com o contato direto com os textos do passado é que teremos condições de entender o processo de evolução de nossa cultura e o modo como ela se apresenta na contemporaneidade. Assim, ao reconhecermos a sua permanência na cultura ocidental e, mais especificamente, na literatura brasileira, passaremos a compreendê-la melhor.

A nossa disciplina está divida em quatro unidades. A primeira unidade mostrará uma introdução e contextualização do mundo clássico greco-latino; a segunda unidade visa ao estudo de Homero, com a leitura detalhada do Canto I da Ilíada; a terceira unidade pretende dar uma visão genérica dos autores do teatro trágico, e a quarta unidade se centrará no estudo de Virgílio e na leitura do Livro I da Eneida.

No tocante ao processo de avaliação, ela deverá ser feita continuamente, através de exercícios e questionários periódicos; participação nos debates no fórum ou on-line e, evidentemente pela contribuição dada por cada um, a partir da reflexão sobre temas discutidos nas aulas.

Passemos, pois, a conhecer um pouco desse mundo, a partir do material que preparamos.

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I – Primeira Unidade: Uma Introdução aos Estudos Clássicos 1. Os Estudos Clássicos: uma tentativa de conceituação 1.1. O Clássico no mundo de hoje

Iniciamos grafando a palavra clássico com letra minúscula, diferentemente do que fazemos quando a ela nos referimos nos outros itens. Qual o sentido desta diferença? Acreditamos que o termo esteja tão banalizado – característica do mundo moderno, imediato e informatizado em que vivemos – que se torna difícil entender o que é o clássico. Num mundo em que tudo se torna clássico com a mesma velocidade com que aparece e desaparece, nada é clássico, obviamente. É isto mesmo: se tudo é clássico, nada é clássico. Não há mais distinção possível. Mundo da imagem, não da reflexão; mundo da concepção de que a aprendizagem é fácil e não dificultosa; mundo da atração que vem de fora e não da curiosidade que vem de dentro. É nesse mundo que o Clássico se viu misturado a qualquer coisa de somenos importância e foi diminuído de sua real importância. Não há, então, um lugar para o Clássico? Antes de respondermos a esta pergunta, passemos a verificar como o termo se constrói ao longo do tempo, para ser destruído pela modernidade em que vivemos.

1.2. O Clássico na Grécia

A referência primeira e maior que se tem sobre o Clássico – agora em maiúscula, para começarmos a distingui-lo, a separá-lo – está na Grécia e em Roma, durante o período que se convencionou chamar de Antiguidade Clássica. Período longo que abriga muitos fatos e muitas idéias, nem sempre ligadas, necessariamente, ao fenômeno que ele denomina. Que se trata de uma antiguidade é um fato inquestionável; que essa antiguidade é totalmente clássica, isso é plenamente discutível. Comecemos por determinar esse período.

Os historiadores, como uma maneira didática de estudar a História, dividiram-na em períodos. Ao primeiro período da história ocidental, chamaram de Antiguidade Clássica, abrangendo um longo tempo entre os séculos VIII a. C. e o século V da Era Cristã. Assim, a Antiguidade Clássica vai da redescoberta da escrita pelos gregos (século VIII a. C) à queda do império romano no Ocidente, no ano 476 (século V), resultado das invasões dos chamados povos bárbaros, provenientes do norte da Europa, a partir do século IV. Como

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podemos ver, trata-se de um longo período de treze séculos. Muitas pessoas, e não me refiro necessariamente aos historiadores, aludem a esses 1300 anos como se fossem um coisa só! Nada mais errôneo. As duas principais culturas da Antiguidade Clássica – a grega e a romana – se assemelham, mais esta àquela do que o contrário, mas são diferentes e, evidentemente, agem de modo diferente e com propósitos diferentes, na política, na guerra, na religião, na organização social, no comércio...

Para o grego, então, o que é o Clássico? Diz-se Clássico o período cultural da Grécia entre o século V a. C. e o século IV a. C. Parece pouco, não? Posso-lhes afirmar, contudo, que se o conhecimento produzido, digamos, nesses cem anos tivesse sobrevivido na íntegra, os estudiosos teriam matéria para muitos e muitos séculos de estudo... Só de peças teatrais trágicas, há uma estimativa de que tenham sido produzidas mais de mil tragédias. Apenas trinta e duas sobreviveram... É nesse chamado Século de Ouro da Grécia, que se produz o maior nível artístico e intelectual do Ocidente, legando à humanidade futura um bem de valor incalculável.

Não é por acaso que nesse momento a democracia toma o lugar da tirania; a filosofia questiona a verdade estabelecida; a palavra escrita ganha relevância jamais vista sobre a palavra oral; o teatro trágico mostra que a humanidade precisa de homens, não de heróis; cria-se o conceito de cidade (pólis) e de cidadão (polites), e o direito é comum a todos os que são iguais – os cidadãos. É a era de escritores como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a tríade do teatro trágico grego, e de filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. E a cidade de Atenas, na Ática, é o palco de todas essas transformações. Veja o mapa abaixo.

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1.3. O Clássico em Roma

Como estamos fazendo uma incursão pelo mundo clássico, é necessário que avancemos um pouco além e cheguemos a Roma. Esta cidade que dominaria o mundo, primeiro pelas armas, depois pela herança cultural, começou como uma simples vila de pastores, na metade do século VIII a. C., em 753. A Roma que nos interessa, mais especificamente, neste tópico, é a Roma compreendida entre o século I a. C. e o século I da Era Cristã, quando a famosa cidade, já centro do mundo conhecido, atinge seu melhor momento artístico-cultural, apesar de conturbado momento político que vai da transição da República ao início do Império (cerca de 60 a. C. a 29 a. C.), passando pelas guerras civis. A Grécia também viu seu momento especial ser marcado pelas guerras contra os persas (início do século V a. C., cerca 499-479) e até contra Esparta, na famosa guerra do Peloponeso (431-404 a.C.).

Assim, podemos marcar o período Clássico em Roma do aparecimento da retórica com Cícero, por volta de 80 a. C., até o

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romance de costumes com Petrônio, cerca de 68 da nossa era. Nesse intervalo se produziu o melhor da literatura latina com o aparecimento de grandes poetas, protegidos por Mecenas, amigo do imperador Augusto: Catulo, Horácio e Virgílio estão entre eles. Nessa época também surgiria o maior dos poemas do mundo latino – a Eneida (17 a. C.), poema que celebra a glória de Roma, na figura de Enéias, o troiano incumbido da ingente tarefa de fundar uma nova Tróia, que daria origem à mais gloriosa das cidades. É o período que se costuma chamar de Século de Augusto. Veja no mapa abaixo a localização de Roma, na Península Itálica, numa situação privilegiada e estratégica no Mediterrâneo.

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1.4. O Classicismo

Seguindo o raciocínio que vimos desenvolvendo sobre o Clássico, período que criou na Grécia e em Roma momentos de alta qualidade cultural e literária, é de se esperar que estas características sejam irradiadas ao longo da história da humanidade e recuperadas ciclicamente. Assim, vemos o século XV nos trazer o mundo moderno e, a reboque, a consolidação dos valores clássicos, já apregoados pelo humanismo, desde o século XI. O Renascimento, movimento filosófico, artístico, cultural e político, que nasce na Itália e se alastra pela Europa ocidental, tem como desdobramento natural o Classicismo. O Classicismo europeu se configura para nós brasileiros na obra do português Luís Vaz de Camões (1525-1580), principalmente em Os Lusíadas (1572), poema épico da glorificação da navegação portuguesa e da descoberta do caminho para as Índias, permitindo a expansão para o Oriente, através do Atlântico, oceano de navegação, até então, desconhecida. O poema retoma a tradição da épica clássica de Homero e Virgílio, na exaltação dos feitos heróicos de um povo, de uma nação ou de um herói, com a exaltação centrada na figura histórica do navegador Vasco da Gama (1469-1524), tomado metonímica e ficcionalmente como a nação lusitana.

Assim, não se pode confundir o Clássico com o Classicismo. O Classicismo é por definição um movimento cultural que visa ao retorno do Clássico, em outra circunstância, com outros objetivos. A nova Europa que nascia das grandes navegações, a partir de 1453, com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, era o campo propício para a volta dos grandes heróis épicos, navegadores, cujo símbolo maior eram Ulisses e Enéias. Os ideais filosóficos de busca da verdade são retomados e a verdade absoluta da Igreja Católica, de base medieval, é questionada. O cisma religioso com Martinho Lutero (1483-1546), a partir da publicação de suas teses contra a venda de indulgências, em 1517, fortalece ainda mais o Renascimento, pois o protestantismo significa perda da hegemonia da Igreja Católica. O mundo que se descortina com novas culturas leva a novas reflexões, e a própria configuração do universo se modifica com o heliocentrismo de Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642) e outros. Para o momento, nada melhor do que ter o homem como centro desse universo – antropocentrismo – em oposição ao teocentrismo medieval. É isso que faz o gênio de Leonardo da Vinci

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(1452-1519), quando imagina e desenha O Homem Vitruviano. Nada mais clássico do que o homem como medida de todas as coisas...

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1.5. O Neoclassicismo

Como última representação do Clássico greco-latino toma força, no século XVIII, o Arcadismo ou Neoclassicismo, em plena era da racionalidade iluminista. Tratava-se de um movimento literário nascido na Itália, desde 1690, com a Arcádia Romana, e continuado em Portugal (Arcádia Lusitana, 1756), de onde chegaria ao Brasil e floresceria na Minas Gerais aurífera de 1768 em diante. O ideal do movimento era a volta ao estado natural dos tempos míticos da Idade de Ouro, tempos em que os homens desfrutavam da companhia dos deuses e não precisavam trabalhar ou acumular, pois a natureza farta e generosa se encarregava de prover todas as necessidades. Essa vida simples, em meio à natureza deleitosa, sem preocupações com o amanhã, que se perde diante da ganância do homem, tem sua origem no poema Os trabalhos e os dias, do poeta grego Hesíodo (século VIII a. C.). Constatamos, pois, que, pelo tema ou pelo nome do movimento – Arcadismo –, a ligação com o Clássico é inquestionável. Esse momento, porém, como um de seus nomes indica, trata de um Novo Classicismo. Não sendo o Classicismo do século XV, também não é o Clássico da Idade Antiga, mas vai buscar o alimento da sua doutrina em ambos. Podemos dizer que o Clássico greco-latino é contemporâneo de si mesmo, procurando o seu próprio mundo e seu próprio tempo. O Classicismo surge em um momento propício ao retorno do heroísmo passado por causa da expansão provocada pelas grandes navegações. Agora o Neoclassicismo prega a volta a um passado mítico, de homens moderados, em perfeito equilíbrio com a natureza acolhedora e os deuses que os criaram. Por que esta busca de um tempo mítico e idílico? Corrompidos por si mesmos, os homens brutalmente jogam-se uns contra os outros e a queda é fatal: na Idade de Ferro em que se encontram, não há mais espaço para Vergonha (Aidôs) e Justiça (Nêmesis), deusas que se retiram de seu convívio. Os homens já não vivem em harmonia consigo mesmos, muito menos com os deuses...

Sem a contribuição do Clássico greco-latino, não teríamos, por exemplo a obra-prima de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) Marília de Dirceu.

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1.6. Há espaço para o Clássico?

“Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clássicos, esmagados que somos pela avalanche de papel impresso da atualidade?”

Abro esta última seção com a pergunta inquietante de Ítalo Calvino (1993: 14), que deve ser a mesma de todos os que estudam e que pretendem conhecer mais os clássicos. Eu acrescentaria que somos ainda esmagados por uma avalancha muito maior de informações incorpóreas do mundo virtual da internet, que torna quase impossível uma reflexão sobre elas. A rapidez e a quantidade da informação produzida, em ambiente sedutor de alta tecnologia, contribuem para que se afaste o leitor do livro e, mais especificamente, do Clássico, na visão de muitos um mundo antigo, obsoleto, empoeirado, cuja ressonância no mundo dito moderno é inaudível ou quase.

Constatamos, no entanto, que o Clássico aparece e, retomado como um ciclo, permanece, porque fundado em valores universais e entranhados no ser humano. O Clássico vive em permanente estado de movimentação, o que lhe garante a eternidade. Há dois mil e oitocentos anos, Homero é escutado, lido, comentado e analisado. Nenhum outro autor na história da humanidade ocidental é tão prestigiado quanto Homero. A Ilíada e a Odisséia continuam encantando gerações e gerações de leitores, filmes continuam sendo feitos, em cada página há ainda um mundo a se descobrir com relação a estes poemas, incansavelmente editados, para ficarmos apenas com Homero.

E o que dizer dos tragediógrafos, cujas peças são modernas, inquientantemente modernas? A internet encanta e seduz pela resposta direta e on-line? Leiam o início do Agamêmnon de Ésquilo (Século V a. C.) e verão que o sistema de fogueiras acesas ao longo das ilhas do mar Egeu para dar a notícia a Clitemnestra do retorno do rei Agamêmnon à Grécia, acabada a guerra de Tróia, antecipa em, pelo menos, 2500 anos a internet...

Há espaço, sim, para o Clássico. O que precisamos é de escolas, bibliotecas e uma melhor formação dos nossos professores – parece que para isto é que não há espaço, infelizmente –, pois para onde nos

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voltamos vemos a marca viva do passado em nossas vidas, nos nossos nomes, nos nossos costumes, na maneira como nos organizamos e até como escrevemos. Finalizando esta introdução, diríamos à maneira de Ítalo Calvino que “ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos” (1993: 16).

Busto de Homero (Museu do Louvre) e Fragmento da Ilíada

De forma a fixar o exposto até aqui, propomos a leitura acompanhada de uma das Liras de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga. Gonzaga, na sua erudição, passeia pela antiguidade greco-latina de Homero a Horácio, passando por Virgílio e pelos ciclos da mitologia grega. Não há como ler o narcisismo de Dirceu, sem conhecer o mito de Narciso ou como entender as penas e dificuldades do amor de Dirceu e de Marília, sem conhecer os amores trágicos de Hero e Leandro ou Orfeu e Eurídice. Constatar o aproveitamento sadio da vida, na paz do campo, pelos pastores, sem preocupações com o amanhã, colhendo a ocasião que se apresenta, só é possível com o conhecimento do carpe diem horaciano. É preciso,

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pois, ler a Marília de Dirceu dentro de uma perspectiva de entrelaçamento textual como o Clássico, procurando trazer à tona essa relação existente nas diversas Liras, os seus temas recorrentes e reescrituras, como a beleza divina de Marília, os sofrimentos provocados por Amor e a exaltação do carpe diem horaciano.

Marília de Dirceu é um longo poema lírico, com quase 5000 versos, em louvor a Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, dividido e publicado em três partes, nos anos de 1792, 1799 e 1812. O texto que vamos abordar, a Lira VII, pertence à primeira parte do poema que trata do amor do pastor Dirceu por sua amada, a pastora Marília, cuja beleza é ressaltada e enaltecida. De beleza divinizada, Marília chega a ser louvada como mais bela do que as três deusas olímpicas, padrões da beleza clássica: Hera (Juno), Afrodite (Vênus) e Palas Atena (Minerva). Dirceu faz vários retratos de Marília, mas não deixa de fazer um retrato de si próprio, propagandeando a sua mocidade, sua força de mando e propriedades, além de sua destreza como poeta. É a parte mais árcade do poema, cuja ambientação, muito genérica, reflete a natureza equilibrada do mítico mundo clássico. É importante ressaltar a forte presença mitológica, imprescindível para a compreensão do poema. Vamos à Lira VII1.

Lira VII Vou retratar a Marília, A Marília, meus amores; Porém como? se eu não vejo Quem me empreste as finas cores! Dar-mas a terra não pode;

Não, que a sua cor mimosa Vence o lírio, vence a rosa, O jasmim e as outras flores.

Ah! socorre, Amor, socorre Ao mais grato empenho meu! Voa sobre os Astros, voa, Traze-me as tintas do Céu.

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GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. In: A poesia dos inconfidentes: poesia completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto; organização de Domício Proença Filho; artigos, ensaios e notas de Melânia Silva de Aguiar et alii. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1966, p. 583-584.

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Mas não se esmoreça logo; Busquemos um pouco mais; Nos mares talvez se encontrem Cores, que sejam iguais. Porém não, que em paralelo Da minha ninfa adorada Pérolas não valem nada, Não valem nada os corais.

Ah! socorre, Amor, socorre Ao mais grato empenho meu! Voa sobre os Astros, voa, Traze-me as tintas do Céu. Só no céu achar-se podem Tais belezas como aquelas, Que Marília tem nos olhos, E que tem nas faces belas; Mas às faces graciosas, Aos negros olhos, que matam, Não imitam, não retratam Nem auroras nem Estrelas.

Ah! socorre, Amor, socorre Ao mais grato empenho meu! Voa sobre os Astros, voa, Traze-me as tintas do Céu. Entremos, Amor, entremos, Entremos na mesma Esfera; Venha Palas, venha Juno, Venha a Deusa de Citera. Porém, não, que se Marília No certame antigo entrasse, Bem que a Páris não peitasse, A todas as três vencera.

Vai-te, Amor, em vão socorres Ao mais grato empenho meu: Para formar-lhe o retrato Não bastam tintas do Céu.

Trata-se de uma Lira constituída por quatro estrofes de doze versos heptassílabos, nitidamente dividida em um agrupamento inicial

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de oito versos (oitava) e um posterior de quatro versos (quadra ou quarteto), funcionando como refrão, em que se observa uma mudança apenas na última estrofe, tendo em vista a inutilidade do esforço de Amor para encontrar tintas que possam reproduzir a beleza de Marília. O esquema das rimas é misturado, do tipo ABCBDEEBFGHG, observando-se a existência de versos brancos.

Marília é retratada como pura e recatada, pois “sua cor mimosa/Vence o lírio, vence a rosa,/ O jasmim e as outras flores”. Sua beleza é sem igual, superando as cores vivas dos corais e a brancura leitosa das pérolas. Prepara-se já nessa estrofe a divindade de Marília, com Dirceu chamando-a de “ninfa adorada”, numa referência às divindades protetoras dos bosques, e da natureza de modo geral, encarnadas por mulheres extremamente belas.

A terceira estrofe reforça a beleza de Marília, fazendo-a mais brilhante que as estrelas, mais bela que a Aurora, deusa responsável pela abertura das portas do Oriente, com seus dedos cor de rosa, para a saída de Apolo cavalgando o carro do Sol. Com esta terceira estrofe, fecha-se o ciclo: Marília é constituída por algo superior aos quatro elementos básicos – terra, água, ar e fogo – vez que não existe nestes quatros elementos nada comparável à sua beleza.

A última estrofe é a confirmação dessa beleza com a alusão à disputa do Monte Ida. Marília é confrontada com as três deusas olímpicas, consideradas padrão de beleza clássica – Hera (Juno), Palas Atena (Minerva) e Afrodite (Vênus), aqui chamada pelo epíteto de Deusa de Citera. Recuperemos a história mítica.

Palas Atena, deusa da sabedoria participa de um concurso de beleza, envolvendo Hera e Afrodite, para saber qual a mulher mais bela presente na festa de casamento de Peleu e Thétis, os futuros pais de Aquiles. A deusa Discórdia ou Éris, furiosa por não lhe darem atenção durante o casamento de Peleu e Thétis, fez surgir entre os convidados um pomo de ouro, destinado "à mais bela". Prontamente as três deusas passaram a reivindicar o título e fruto. Zeus, não querendo decidir uma questão tão delicada, chamou Hermes e mandou que ele as levasse ao Monte Ida, onde o pastor Páris faria a escolha. Apresentando-se diante de Páris, cada uma das deusas tentou suborná-lo. Hera ofereceu-lhe a realeza; Palas prometeu-lhe a invencibilidade na guerra; Afrodite, desnudando os seios, garantiu-lhe o amor da mais bela das mulheres, Helena da Lacedemônia. Após estas ofertas, Páris entregou o pomo a Afrodite, fazendo o ódio das outras duas se voltar

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contra si e contra os troianos. Esta inimizade se fará sentir durante a guerra de Tróia, desencadeada pelo rapto de Helena por Páris, ocasião em que Palas e Hera se colocarão ao lado dos gregos, portanto, contrárias a Páris e aos troianos, protegidos por Afrodite

Afrodite aparece no texto da Lira através de um dos seus vários epítetos deusa de Citera. No tocante ao seu nascimento, pelo menos duas tradições são registradas: a primeira afirma que Afrodite seria a filha de Zeus e Dione, conforme vemos na Ilíada, de Homero (V, 370-372; XIV, 224; XXIII, 185); a segunda, defendida por Hesíodo, apresenta a deusa como filha de Urano e das espumas do mar (versos 134-210). De acordo com a versão da Teogonia de Hesíodo, Urano teve o órgão sexual cortado e atirado por seu filho Cronos ao mar. Assim, da mistura do esperma do deus com as espumas, teria nascido Afrodite. Tão logo nasceu, a deusa foi conduzida pelas ondas, ou por Zéfiro, o vento, para a Ilha de Citera, daí o seu epíteto de Citeréia.

Páris, filho de Príamo e Hécuba, reis de Tróia, foi designado pelo pai para ser morto, devido a uma profecia que o apontava como futuro responsável pela destruição do reino. Por piedade, o pastor incumbido de tal tarefa o criou. Uma vez adulto, Páris é reconhecido por Cassandra, sua irmã, e reintegrado à família real. A quarta estrofe do poema, portanto, refere-se ao julgamento que Páris, teve de fazer, para escolher a mais bela das três deusas, cujas conseqüências serão o rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a destruição de Tróia. Ao aludir ao fato, Dirceu quer não apenas mostrar a superioridade de Marília em relação à beleza clássica, mas também atualizar o mito. Páris a faria vencedora sem que Marília necessitasse suborná-lo. Se não há suborno, não há o rapto de Helena, sem o qual a guerra de Tróia não acontecerá. Em não acontecendo a guerra, Aquiles não morre. Vê-se, portanto, que Helena contraposta a Marília, marca a oposição entre a beleza ruinosa (Helena) e a beleza benfazeja (Marília), contribuindo para a harmonia do mundo. E há mais: como o poeta-pastor diz que para formar o retrato de Marília não bastam tintas do céu, o único meio de eternizá-la é pela memória, através do mito, o ideal. Daí o aproveitamento do mito do julgamento de Páris, para configurar a beleza divina e eterna de Marília. Só o mito torna possível a perenidade e a lembrança, pois se o rito comemora, o mito rememora. Tal leitura só é possível com o conhecimento do mito de Páris e Helena, constante do poema O rapto de Helena, de Colutos (século VI d. C.).

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TEXTO PARA EXERCÍCIO

Leia o texto abaixo e procure compreendê-lo a partir dos elementos do mundo clássico nele existentes. Para a sua análise, recomendamos o conhecimento do mito de Apolo e Dafne.

Soneto 122

O filho de Latona, esclarecido,

Que com seu raio alegra a humana gente, O hórrido Piton, brava serpente,

Matou, sendo das gentes tão temido. Ferio com arco e de arco foi ferido, Com ponta aguda de ouro reluzente; Nas tessálicas praias, docemente, Pola Ninfa Penea andou perdido. Não lhe pôde valer, para seu dano, Ciência, diligências, nem respeito De ser alto, celeste e soberano.

Se este nunca alcançou nem um engano De quem era tão pouco em seu respeito,

Eu que espero de um ser que é mais que humano?2

Luís Vaz de Camões

TEXTOS DE APOIO

1.MITO DE APOLO E DAPHNE

MITO DE PYTHON (v. 416-451). A terra engendrou dela mesma os outros animais sob formas diversas, assim que a umidade que ela ainda retinha foi esquentada sob os fogos do sol, quando o calor inflou a lama e as

2 CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos de Camões (corpus dos sonetos camonianos); edição e notas por Cleonice Serôa da Motta Berardinelli. Paris: Centre Culturel Portugais Lisbonne; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980, p. 180.

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águas pantanosas, quando os germes fecundos das coisas, nutridos por um solo vivificante, se desenvolveram como no ventre de uma mãe e tomaram com o tempo aspectos diferentes. Assim, quando o Nilo das sete embocaduras deixou os campos inundados e levou de volta suas torrentes para seu antigo leito, quando do alto dos ares o astro do dia fez sentir sua chama no limo recente, os cultivadores, retornando à gleba, lá encontram um grande número de animais; eles vêem alguns que estão apenas esboçados, no momento mesmo de seu nascimento, outros imperfeitos e desprovidos de alguns de seus órgãos; muitas vezes no mesmo corpo uma parte está viva, a outra não é senão ainda terra informe. Com efeito, assim que a umidade e o calor se combinaram um com ou outro, eles concebem; é destes dois princípios que nascem todos os seres; ainda que o fogo seja inimigo da água, uma claridade úmida engendra todas as coisas e a concórdia na discórdia convém à reprodução. Portanto, tão logo a terra coberta de lama pelo dilúvio recente3, recomeça a receber do alto dos ares o calor dos raios do sol, ela deu à luz espécies inumeráveis; tanto ela devolveu aos animais sua figura primitiva, quanto ela criou monstros novos. Foi contra sua vontade que ela engendrou também nessa época a colossal Python; para os povos recém-nascidos, serpente então desconhecida, tu era um objeto de terror, tanto tu ocupavas o espaço ao longo da montanha. O arqueiro divino, que jamais antes não havia se servido de suas armas senão contra os gamos e os cabritos prontos para a fuga, a abateu com mil setas; quase esvaziando sua aljava, ele a matou; por negras feridas se espalhou o veneno da fera. Para que o tempo não pudesse apagar a memória deste feito, ele instituiu, sob a forma de concursos solenes, os jogos sagrados que do nome da serpente vencida tomaram o nome de Pythicos. Nestes jogos, os jovens, que por seus punhos, suas pernas ou as rodas de seus carros tinham tido a vitória, recebiam como recompensa uma coroa de carvalho; o loureiro ainda não existia e, para cingir seus longos cabelos ao redor de sua bela fronte, Febo tomava emprestado seu ramo a árvores de toda sorte.

MITO DE DAPHNE (v. 452-567). O primeiro amor de Febo foi Daphne, filha de Peneu; sua paixão nasceu, não de um desconhecido acaso, mas de uma violenta ira de Cupido. Recentemente, o deus de Delos, orgulhoso de sua vitória sobre a serpente, o vira curvar, puxando a corda para si, as duas

3 O dilúvio enviado por Zeus, para punir os homens (Les métamorphoses, I, v. 253-312).

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extremidades de seu arco: “Que tens a fazer, louca criança, disse ele, destas armas poderosas? Cabe-me a mim suspendê-las em minhas espáduas; com elas eu posso desferir golpes inevitáveis em uma besta selvagem, em um inimigo; ainda há pouco, quando Python cobria grande superfície com seu ventre inchado de venenos, eu a abati sob minhas flechas inumeráveis. Para ti, que te seja suficiente iluminar com tua tocha não sei que fogos de amor; guarda-te de pretender meus sucessos”. O filho de Vênus lhe respondeu: “Teu arco, Febo, pode tudo furar; o meu vai te furar a ti mesmo; tanto todos os animais estão abaixo de ti, quanto tua glória é inferior à minha”. Ele disse, fende o ar com o batimento de suas asas e, sem perder um instante, se posta sobre o cimo umbroso do Parnaso; de sua aljava cheia de flechas, ele retira duas setas que têm efeitos diferentes: uma expulsa o amor, a outra o faz nascer. A que o faz nascer é dourada e armada com uma ponta aguda e brilhante; aquela que o expulsa é arredondada e sob a haste contém chumbo. O deus fere com a segunda a ninfa, filha de Peneu; com a primeira ele traspassa através dos ossos o corpo de Apolo até a medula. Este ama logo; a ninfa foge até ao nome do amante; os abrigos das florestas, os despojos dos animais selvagens que ela capturou fazem toda a sua alegria; ela é a êmula da casta Febe4; uma faixa retinha só seus cabelos caindo em desordem. Muitos pretendentes a pediram, mas ela desdenhando todos os pedidos, recusando-se ao jugo de um esposo, ela percorria a solidão dos bosques; o que é o canto do himeneu, o amor, o casamento? Ela não se inquietava de sabê-lo. Freqüentemente seu pai lhe disse: “Tu me deves um genro, minha filha”. Mas ela, como se se tratasse de um crime, ela tem horror às tochas conjugais; o rubor da vergonha se espalha sobre seu belo rosto e, com os braços carinhosos suspensos no pescoço de seu pai, ela lhe responde: “Permite-me, pai bem-amado, gozar eternamente minha virgindade; Diana bem que o obteve do seu5”. Ele consente, mas tu tens encantos demasiados, Daphne, para que seja como tu o desejas, e tua beleza faz obstáculos a teus votos. Febo ama, ele viu Daphne, ele quer se unir a ela; o que ele deseja, ele o espera e ele está enganado por seus próprios oráculos6. Como uma palha leve se abrasa, depois que se colheram as espigas, como uma sebe se consome ao fogo de uma tocha que um viajante por acaso dela aproximou demasiado ou que ele ali deixou quando o dia já nascia; assim o deus inflamou-se; assim ele queima até o fundo de seu coração e nutre de esperança um amor estéril. Ele contempla os cabelos da ninfa flutuando sobre seu pescoço sem ornamentos: “Que aconteceria, diz ele, se ela tomasse

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A deusa Diana (Ártemis), a irmã de Apolo, de cujo séquito Daphne participava. 5 Referência a Júpiter (Zeus), pai de Diana (Ártemis).

6 Como deus da profecia, Apolo deveria saber que não teria sucesso no amor com Daphne, mas o amor engana até os profetas...

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cuidado com seu penteado?” Ele vê seus olhos brilhantes com os astros; ele vê sua pequena boca, que não lhe é suficiente apenas ver; ele admira seus dedos, suas mãos, seus punhos e seus braços mais que seminus; o que para ele está escondido, ele o imagina mais perfeito ainda. Ela, ela foge, mais rápido que a brisa ligeira; ele tenta lembrá-la, mas não pode retê-la por tais propósitos:

“Ó ninfa, eu te imploro, filha de Peneu, pára; não é um inimigo quem te persegue; ó ninfa, pára. Como tu, a ovelha foge do lobo; a corça, do leão; as pombas com as asas trêmulas fogem da águia; cada uma tem seu inimigo; eu, é o amor que me joga sobre tuas pegadas. Qual não é minha infelicidade! Cuidado para não cair à frente! Que tuas pernas não sofram indignamente feridas, a marca das sarças, e que eu não seja para ti uma causa de dor! O terreno sobre o qual te lanças é rude; modera tua corrida, eu te suplico, diminui a tua fuga; eu mesmo, eu moderarei minha perseguição. Sabe, no entanto, que tu me encantaste; eu não sou um montanhês, nem um pastor, ou um desses homens incultos que vigiam os bois e os carneiros. Tu não sabes, imprudente, tu não sabes de quem tu foges e porque tu foges. É a mim que obedecem o país de Delfos7 e Claros8 e Tênedos9 e a residência real de Patara10; eu tenho por pai Júpiter; foi a mim que ele revelou o futuro, o passado e o presente; sou eu que caso o canto aos sons das cordas. Minha flecha acerta golpes certeiros; um outro, no entanto, acerta mas seguramente ainda, foi ele que feriu meu coração, até então isento deste mal. A medicina é uma das minhas invenções; em todo o universo me chamam o que socorre e o poder das plantas me é submisso. Ai de mim! não existem plantas capazes de curar o amor e minha arte, útil a todos, é inútil a seu mestre.”

Ele ia dizer ainda mais, porém a filha de Peneu continuava sua corrida louca, fugiu e o deixou lá, ele e seu discurso inacabado, sempre tão bela a seus olhos; os ventos desvelavam sua nudez; seu sopro, vindo sobre ela em sentindo contrário, agitava suas vestes e a brisa ligeira jogava para trás seus cabelos levantados; sua fuga realça ainda mais sua beleza. Mas o jovem deus renuncia a lhe endereçar em vão ternos propósitos e, levado pelo próprio amor, ele segue os passos da ninfa redobrando a sua velocidade. Quando um cão gaulês percebia uma lebre na planície descoberta, ambos disparavam, um para pegar a presa, outro para salvar sua vida; um parece sobre o ponto de pegar o fugitivo, ele espera segurá-lo em um instante e, o focinho tenso, estreita de perto suas pegadas; o outro, incerto se ele o pegou, se livra das

7 Cidade na Grécia, onde Apolo tem seu templo mais famoso. 8 Cidade na Jônia, onde existe um templo de Apolo.

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Ilha no mar Egeu, em frente a Tróia, onde existe o célebre templo de Apolo Esmintheu, o dos ratos.

10 Residência dos soberanos da Lícia, na Ásia Menor. Apolo é chamado também de Apolo Lício.

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mordidas e esquiva-se da boca que o tocava; assim o deus e a virgem são levados um pela esperança, outro pelo medo. Mas o perseguidor, levado pelas asas de Amor, é mais rápido e não tem necessidade de repouso; já ele se inclina sobre as espáduas da fugitiva, ele roça com o hálito os cabelos esparsos sobre seu pescoço. Ela, no fim das forças, empalideceu; quebrada pelo cansaço de uma fuga tão rápida, os olhares voltados para as águas do Peneu: “Vem, meu pai, diz ela, vem em meu socorro, se os rios como tu têm um poder divino, livra-me por uma metamorfose desta beleza demasiado sedutora”.

Mal acabara sua prece e um pesado torpor se apossa de seus membros; uma fina casca cobre seu seio delicado; seus cabelos que se alongam se mudam em folhagem; seus braços, em ramos; seus pés, logo tão ágeis, aderem ao solo por raízes incapazes de se mover; o cimo de uma árvore coroa sua cabeça; de seus encantos não resta senão o brilho. Febo, no entanto, sempre a ama; sua mão posta sobre o tronco, ele sente ainda o coração palpitar sobre a casca recente; cercando com seus braços os ramos que substituem os membros da ninfa, ele cobre a madeira com seus beijos; mas a árvore recusa seus beijos. Então o deus: “Bem, diz ele, visto que não podes ser minha esposa, ao menos serás minha árvore; para todo o sempre tu ornarás, ó loureiro, minha cabeleira, minhas cítaras, minhas aljavas; tu acompanharás os condutores do Lácio, quando vozes alegres farão escutar cantos de triunfo e o Capitólio11 verá vir até ele longos cortejos. Tu crescerás, guardião fiel, diante da porta de Augusto12 e tu protegerás a coroa de carvalho suspensa no meio; igualmente, que minha cabeça, cuja cabeleira jamais conheceu tesoura, conserve sua juventude, igualmente a tua será sempre ornada com uma folhagem inalterável13”. Peã14 havia falado; o loureiro inclina seus galhos novos e o deus o viu agitar seu cimo como uma cabeça.15

11 Principal sítio de Roma.

12 Dois loureiros davam sombra ao palácio do imperador Augusto, no Palatino. 13

O loureiro não perde as folhas no inverno.

14 Um dos epítetos de Apolo e nome do hino em sua honra.

15 OVIDE. Les métamorphoses; texte traduit par Georges Lafaye. Paris: Les Belles Lettres, 1928. Tradução operacional de Milton Marques Júnior.

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2.OMITO DAS RAÇAS HUMANAS16

De ouro foi a primeira raça de homens perecíveis, que os Imortais habitantes do Olimpo criaram. Eram os tempos de Cronos, quando ele reinava ainda no céu. Eles viviam como deuses, o coração livre de inquietações, longe e ao abrigo das penas e das misérias: a velhice miserável não pesava sobre suas cabeças; ao contrário, braços e pernas sempre jovens, eles se alegravam nos festins, longe de todos os males. Quando morriam, pareciam sucumbir ao sono. Todos os bens lhes pertenciam: o solo fecundo produzia espontaneamente uma abundante e generosa colheita, e eles, na alegria e na paz, viviam de seus campos, no meio de bens inumeráveis. Desde que o solo recobriu os desta raça, eles são, pela vontade de Zeus Todo-Poderoso, os bons gênios da terra, guardiães dos mortais, distribuidores da riqueza: é a honra real que lhes foi atribuída em partilha.

Em seguida uma raça bem inferior, uma raça de prata, mais tarde foi criada ainda pelos habitantes do Olimpo. Estes não parecem nem pelo talhe nem pelo espírito aos da raça de ouro. A criança, durante cem anos, crescia brincando ao lado de sua digna mãe, a alma toda pueril, na sua casa. E quando, crescendo com a idade, eles atingiam o termo que marca a entrada na adolescência, viviam, então, pouco tempo, e, por sua falta de discernimento, sofriam mil penas. Eles não sabiam abster-se de um descomedimento louco. Recusavam o oferecimento de culto aos Imortais ou o sacrifício nos santos altares dos Bem-Aventurados, segundo a lei dos homens que se deram moradas fixas. Então Zeus, filho de Cronos, encolerizado, os sepultou, porque eles não rendiam homenagens aos deuses Bem-Aventurados que possuíam o Olimpo. E, quando o solo, por sua vez, os tinha recoberto, eles se transformaram naqueles que os mortais chamavam os Bem-Aventurados dos Infernos, gênios inferiores, ainda merecedores, contudo, de alguma honra.

E Zeus, pai dos deuses, criou uma terceira raça de homens perecíveis, a raça de bronze, bem diferente da raça de prata, filha dos freixos, terrível e poderosa. Estes aqui não sonhavam senão com os trabalhos gemebundos de Ares e com as obras do descomedimento. Eles não comiam o pão; seu coração era como o aço rígido; eles causavam terror. Poderosa era a sua força, invencíveis os braços que se pregavam contra a espádua de seus corpos vigorosos. Suas armas eram de bronze, de bronze suas casas, com o bronze eles trabalhavam, pois o ferro não existia. Eles sucumbiram, sob os próprios braços e partiram para a estada mofada do arrepiante Hades, sem

16 HÉSIODE. Les travaux et les jours. In: Thégonie, Les travaux et les jours, Le

bouclier; texte établie et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1996,

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deixar nome sobre a terra. A negra morte os pegou, por apavorantes que fossem, e eles deixaram a resplandecente luz do sol.

E, quando o solo tinha novamente recoberto esta raça, Zeus, filho de Cronos, dele criou ainda uma quarta sobre a gleba nutriz, mais justa e mais brava, raça divina dos heróis que se nomeiam semi-deuses e cuja geração nos precedeu sobre a terra sem limites. Estes aqui pereceram na dura guerra e na batalha dolorosa, uns contra os muros de Tebas das Sete Portas, outros sob o solo cádmio, combatendo pelos filhos de Édipo; outros além do abismo marinho, em Tróia, aonde a guerra os conduzira em belonaves, por Helena dos belos cabelos, e onde a morte, que tudo acaba os sepultou. A outros, enfim, Zeus, filho de Cronos e pai dos deuses, deu uma existência e uma morada distante dos homens, estabelecendo-os nos confins da terra. É lá que habitam, o coração livre de inquietações, nas Ilhas dos Bem-Aventurados, à borda dos turbilhões profundos do Oceano, heróis afortunados, para quem o solo fecundo produz três vezes por ano uma florescente e doce colheita.

E prouvesse ao céu que eu não tivesse, por meu lado, de viver no meio dos da quinta raça, e que eu tivesse morrido mais cedo ou nascido mais tarde. Pois esta é agora a raça de ferro. Eles jamais cessarão de sofrer, durante o dia, cansaços e misérias; durante a noite, de ser consumidos pelas duras angústias que lhes enviarão os deuses. Ao menos, acharão eles ainda alguns poucos bens, misturados aos seus males. Mas chegará a hora em que Zeus aniquilará, por sua vez, toda esta raça de homens perecíveis: este será o momento em que eles nascerão com as têmporas brancas. O pai, então, não parecerá com o filho, nem o filho com o pai; o hóspede não será mais querido de seu anfitrião, o amigo pelo seu amigo, o irmão pelo seu irmão, assim como os dias passados. A seus pais, assim que eles envelhecerem, eles não mostrarão senão desprezo; para se queixarem deles, eles se exprimirão com palavras rudes, os malvados! e não conhecerão nem mesmo o temor ao Céu. Aos velhos que os nutriram, eles recusarão o alimento. Não haverá prêmio para a manutenção do juramento, para os justos ou os bons: para os artesãos do crime, para o homem só descomedimento é que irão os seus respeitos; o único direito será a força, a consciência não mais existirá. O covarde atacará o bravo com palavras tortuosas, que apoiará com um falso juramento. Ao passo de todos os miseráveis humanos atar-se-á o ciúme, à linguagem amarga, à fronte odiosa, que se compraz com o mal. Então, deixando pelo Olimpo a terra dos largos caminhos, escondendo seus belos corpos sob véus brancos, Honra (Aidós) e Justiça (Némésis), abandonarão os homens, subirão para os Eternos. Restarão aos mortais apenas tristes sofrimentos: contra o mal não mais existirão recursos.

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2. Contextualização do Clássico: os períodos históricos das Literaturas grega e latina

2.1. Introdução à Literatura Grega

A literatura grega compreende basicamente três momentos: o período Arcaico (século VIII – V a.C.), o período Clássico (século V – IV a. C.) e o período Alexandrino (século IV – III a. C.). A partir do século III a. C., com a dominação da Grécia por Roma, a literatura que se sobressai é a latina, iniciada pelas mãos de gregos tomados como cativos pelos romanos nas guerras de conquistas.

O período Arcaico (VIII – V a. C.) marca o do princípio do fato literário, quando a escrita retorna à Grécia, depois de seu desaparecimento por quatrocentos anos, entre os séculos XII e VIII a. C. Ainda se trata de uma cultura oralizada, apesar da escrita, em que a literatura aparece cantada pelos aedos e rapsodos, os poetas e cantores da época. É nesse momento que são produzidos os poemas homéricos – Ilíada e Odisséia – e os poemas de Hesíodo – Teogonia e Os trabalhos e os dias –, iniciando-se, assim a literatura ocidental. É por isto que se chama a esse período de arcaico. Diferentemente do sentido que a palavra tem hoje, arcaico significa para o mundo grego algo que está no princípio, na origem dos fatos. Os poemas homéricos e hesiódicos são o princípio, a origem de toda a literatura que se faz no Ocidente greco-latino. Além do mais, esse período marca a reintrodução da escrita no mundo ocidental. Nesse momento, a literatura procura retratar o mundo mítico dos deuses e heróis, mundo mais próximo da natureza e tendo no mito a sua explicação. Se Homero trata de heróis em guerra ou retornando para casa após a guerra, Hesíodo trata da ordem do universo, de como os deuses nasceram e da necessidade da justiça entre os homens.

O período Clássico (século V – IV a. C.) nos mostra o mundo da pólis, da cidade, que substitui o mundo anterior mais ligado à natureza. É um momento complexo em que a filosofia cria uma explicação lógica para o mundo, a partir de um discurso racional. Nesse mundo nasce o teatro trágico grego, procurando refletir sobre a condição e a fragilidade humana. Mesmo apoiado nos mitos antigos, o teatro revela o conflito do homem entre o passado e o presente da pólis com suas leis escritas, diferentes das leis divinas do mundo mítico do passado. Ésquilo, Sófocles e Eurípides serão os grandes autores desse período, legando-nos obras-primas como Orestéia, Édipo Rei e Hécuba, respectivamente.

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O período Alexandrino (século IV – III a. C.) é caracterizado pela expansão do mundo helênico com o império de Alexandre, o Grande (335-323 a. C.) e a criação da Biblioteca de Alexandria, por volta do século III a. C., reunindo um sem-número de obras importantes. O último grande poema do mundo grego, pertencente a esse período e que chegou até nós foi Argonáuticas de Apolônio de Rhodes, cerca de 295 a. C. Após esse momento, se dá a dominação romana sobre a Grécia e começa a surgir a literatura latina.

2.2. Introdução à Literatura Latina

O caminho percorrido pela literatura latina de suas origens até Virgílio, no período Clássico, é longo e nem tudo pode ser chamado com propriedade de literatura. Da fundação de Roma (753 a. C.) à edição da Eneida (17 a. C.), distam quase oito séculos. Desse tempo, apenas o período compreendido entre o século III a. C. e o século III d. C., a partir do emprego literário do latim e que traduz um momento particular da glória romana, é que pode ser chamado realmente de literário. Trata-se de uma literatura como produto de uma convergência entre a cidade, que se faz senhora do mundo, e uma língua, que se faz literária. É o estado social e político poderoso criando as condições para a existência de uma língua de cultura.

O fervilhamento cultural da Alexandria dos Ptolomeus, produto direto da helenização, a partir do século III a. C., a expansão romana pelo mar mediterrâneo, após a primeira vitória sobre Cartago, em meados desse mesmo século, e o domínio militar sobre os gregos favorecerão o florescimento da literatura latina. Dentre os nomes importantes desse momento, está o de Apolonius de Rhodes (295 a. C.), com um poema épico em quatro cantos, Argonáuticas, cuja influência, dois séculos mais tarde, sobre Virgílio será marcante. É, pois, a dominação cultural grega, apesar do domínio militar romano, que permite a afirmação de que a literatura latina é proveniente da literatura grega.

Esse período – do século III a. C. ao século III d. C. – situa-se entre a fase primitiva ou pré-literária (século VIII – século III a. C.), em que predomina a oralidade, e a literatura cristã (a partir do século III-IV da nossa era), que já se distancia do espírito da Roma gloriosa. Nesse momento podem-se distinguir os períodos Arcaico (século III – I a. C.) e Clássico (século I a. C. – I d. C.). É no período Arcaico que passa a existir o fato literário, marcado a partir de Livius Andronicus,

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escravo originário de Tarento, cuja Odissia (cerca de 250 a. C.) é uma tradução e adaptação da Odisséia de Homero, por sua temática ocidental, pois as viagens de Ulisses o levam à costa italiana, antes de retornar em definitivo para Ítaca. Não menos importante é o Bellum Punicum ou Guerra Púnica, de Naevius, escrito por volta do ano 209 a.C., tratando da primeira guerra entre Roma e Cartago. Os primeiros cantos são ocupados por um tema mítico, resgatando a tradição de Enéias como mito fundador e herói itálico, além dos seus amores com Dido, de onde se originaria a rivalidade entre Roma e Cartago. Deste modo, Naevius não só antecipa Virgílio e a Eneida, mas também abre espaço para a exaltação dos heróis nacionais.

O período Clássico começa com Cícero (106-43 a. C.), por volta de 80 a. C., com a consolidação da língua literária, que tem na sua base a retórica. Os grandes autores da poesia estarão nas décadas seguintes, sobretudo, a partir de 43 a. C., no início da chamada era de Augusto, com a poesia atingindo o seu apogeu. É no período Clássico que surgem Catulo (87-54 a. C.), Lucrécio (98-55 a. C.), Virgílio (70-19 a. C.), Horácio (65-8 a. C.), Tibulo (54-(70-19 a. C.), Propércio (50-15 a. C.) e Ovídio (43 a. C. – 17 d. C.), produzindo a excelência da literatura latina.

GLOSSÁRIO

Aedo: É o cantor dos poemas narrativos. A palavra é grega, significando cantor. Cabia ao aedo cantar os episódios mais conhecidos da poesia épica, quando solicitado pelo público.

Antiguidade Clássica: Primeiro período da história ocidental, marcado pelo reaparecimento da escrita na civilização grega. Costuma-se marcar o seu início a partir do século VIII a. C. Seu limite se estenderia até o século V da Era Cristã, quando da queda do império romano do Ocidente, em 476.

Arcadismo: Movimento literário, originada na Itália a partir da fundação da Arcádia Italiana, em 1690, tendo se expandido para Portugal, em 1756 com a Arcádia Lusitane, e chegado ao Brasil em 1768, fixando-se em Minas Gerais. Tinha como objetivo recuperar a harmonia da vida simples do pastor, em contraposição à vida desregrada e corrupta da cidade. O seu nome se liga a uma das regiões mais antigas da Grécia, a Arcádia, no Peloponeso.

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Carpe Diem: Expressão latina, proveniente da Ode XI, Livro I das Odes de Horácio (século I a. C.), significando colhe o dia. O sentido é o de

que devemos aproveitar as ocasiões quando elas se apresentam. O ser humano não deve se inquietar com o amanhã, cujo saber pertence aos deuses. Enquanto nos preocupamos com o que não nos cabe saber, o tempo foge. Devemos, portanto, saber reconhecer quais as ocasiões favoráveis para aproveitá-las.

Classicismo: Período cultural que se firma a partir do século XV, como um desdobramento natural do Renascimento, uma vez iniciada a difusão da cultura clássica. Na língua portuguesa, o grande humanista foi o poeta Luís Vaz de Camões, cuja obra-prima é Os Lusíadas (1572).

Guerras Púnicas: O termo designa as guerras entre Roma e Cartago, nos séculos III e II a. C. Como os cartagineses eram originários de Tiro, na Fenícia (atual Líbano), o termo grego para designar fenício, acaba se transformando em púnico. Foram três guerras (264-241; 218-202 e 148-146 a. C.) e aquela que determina a derrota de Cartago e o controle de Roma sobre o Norte da África é a segunda (218-202 a.C.). Nessa guerra, Cipião, o Africano, vence Aníbal, o Cartaginês, na batalha de Zama, em 202 a.C., no Norte da África.

Heliocentrismo: Teoria astronômica em que o sol é o centro do universo e os planetas giram ao seu redor. Esta teoria formulada por Nicolau Copérnico contraria a anterior, a geocêntrica, em que a terra é que constituía o centro do universo e os demais planetas, inclusive o sol, giravam a seu redor.

Humanismo: Base do Renascimento e do Classicismo, o Humanismo teria se iniciado desde o século XI com o estudo das obras dos filósofos gregos.

Idade de Ferro: V. Idade de Ouro.

Idade de Ouro: Idade mítica do homem, presente na obra do poeta grego Hesíodo (século VIII a. C.) Os trabalhos e os dias. Na concepção do poeta grego, o homem teria sido criado em meio a uma natureza harmônica e generosa. Não sabendo respeitar os deuses, o homem vai decaindo e perdendo as benesses que os deuses lhes deram. A última etapa da decadência humana é a Idade de Ferro, em que a corrupção e os males grassam sem poder ser contidos. Antes de chegar à Idade de Ferro, o homem ainda passaria por mais três etapas: a Idade de Prata, a Idade de Bronze, a Idade dos Heróis. A simbologia dos metais mostra como a degradação vai se processando: do metal mais nobre e incorruptível a um metal menos nobre e oxidável, o ferro.

Iluminismo: Movimento filosófico-político nascido na França em meados do século XVIII, preconizando a liberdade do homem através da razão. O conhecimento é a luz que levará à razão.

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Julgamento de Páris: Julgamento operado por Páris, príncipe troiano, no Monte Ida, na Frígia, Ásia Menor. O julgamento consistia em decidir qual era a mais bela entre as deusas Hera, Palas Atena e Afrodite. Tendo escolhido Afrodite, seduzido pela promessa de casar-se com Helena, a mulher mais bela do mundo, Páris atrai a fúria das outras deusas contra si e contra os troianos. Seu ato terá como conseqüências o rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a destruição de Tróia.

Neoclassicismo: Movimento artístico-literário (final do século XVII até a segunda metade do século XVIII) que busca o retorno a uma vida simples na natureza equilibrada, fugindo da dissolução do mundo urbano. Inspirado no Clássico greco-latino, o movimento se volta para um tempo mítico e harmônico.

Rapsodo: Poeta e cantor de poemas narrativos. Além de cantar, o rapsodo tecia a narrativa e compunha.

Reforma Protestante: Cisma na Igreja Católica levado a cabo por Martinho Lutero, desde que ele se insurge, pregando as suas 95 teses contra a Igreja, na Alemanha, no início do século XVI.

Renascimento: Movimento cultural filosófico de origem italiana, cujo centro foi a cidade de Florença. Estima-se que, desde o século XIV, o Renascimento tenha iniciado com a redescoberta e difusão da cultura greco-latina.

Século de Augusto: Período no século I a. C., em que o latim se firma como língua literária, iniciando com a retórica de Cícero e chegando ao seu apogeu com Catulo, Virgílio, Horácio e Ovídio. A referência é a Otávio Augusto César, primeiro imperador romano (29 a. C. – 14 d. C.).

Século de Ouro: Diz-se do período entre o século V e o século IV a. C., vivido pelos gregos, em que se registra o apogeu artístico, com a tragédia; o filosófico com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles, e o político, com a democracia.

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II. Segunda Unidade: Estudo de Homero – O Canto I da Ilíada 1. Estudo de Homero

Produzidos no período Arcaico da Literatura Grega (VIII – V a. C.), a Ilíada e a Odisséia são os poemas fundadores de toda a literatura ocidental. A sua autoria foi atribuída a Homero, aedo cuja existência é sempre questionada17. Tendo sobrevivido na tradição oral por duzentos anos, estes dois poemas conheceram sua primeira forma em texto no século VI a. C., cerca de 560, quando o tirano Pisístratos, acreditando-se descendente de Nestor de Pilos, teria ordenado a escritura dos versos.

A tradição oral, se por um lado garantiu a permanência do poema, por outro lado contribuiu para uma grande variante dos versos, tendo em vista que o aedo ou o rapsodo, os poetas-cantores de então, escolhiam os episódios para cantar ao seu público e, muitas vezes, introduziam versos de outros poemas. A depuração dos textos só aconteceu no século III a. C., trabalho desenvolvido pelos sábios do Museu de Alexandria. Esses eruditos, dentre eles Zenódoto de Éfeso, Aristófanes de Bizâncio e, principalmente, Aristarco, se preocuparam em estudar, corrigir e comentar os poemas, constituindo, assim, os primeiros estudos filológicos de que se tem notícia. É Aristarco, por exemplo, que determina, definitivamente, o número de versos dos poemas. Essa fixação, no entanto, não impediu que os poemas conhecessem várias fontes.

Poemas recitados para um público nobre – veja-se, por exemplo, a existência de um poeta cego, Demódoco, no Canto VIII da Odisséia, cantando as façanhas dos gregos em Tróia, e em especial as de Odisseus (nome grego de Ulisses), no banquete oferecido por Alcínoos, rei Feácio, ao próprio Odisseus – a sua narrativa é de exaltação da nobreza guerreira. Embora se referindo a uma civilização arcaica, a Ilíada e a Odisséia se tornam poemas clássicos, pois lidos e comentados em classe, na sala de aula, tendo não só ajudado a formar o espírito grego, mas, principalmente, permanecido na cultura universal.

17

Nada menos do que sete cidades da atual Turquia, a antiga Ásia Menor, dentre elas Chios e Esmirna, disputam a primazia de ser o local de seu nascimento. O que suscita a disputa é o fato de que, na essência, o dialeto dos poemas homéricos é o jônio, com alguns empréstimos do eólio, língua da mesma região.

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Visto consensualmente como o poema da fúria de Aquiles ou uma Teomaquia, a Ilíada é a maior expressão da poesia épica em todos os tempos, enfocando um mundo das origens, em que heróis são comandados por um grande senhor, investido de um poder divino. Poema de estrutura oral, próprio para ser cantado pelo aedo ou rapsodo, ao ritmo dos versos hexâmetros dactílicos, fazendo a exaltação dessa aristocracia da civilização arcaica, que tinha em Micenas o seu apogeu e em Agamêmnon o seu grande senhor.

Os limites da Ilíada, normalmente conhecido como tratando da guerra de Tróia, estão restritos, na realidade, a um momento específico no início do décimo ano do cerco dos Argivos (nome genérico para designar os gregos) a Tróia. A narração desse momento parte da querela entre Aquiles e Agamêmnon (Canto I) aos funerais de Heitor (Canto XXIV). Os gregos são comumente chamados de Aqueus ou Acaios, Argivos, Dânaos e Helenos; já os troianos são chamados de Teucros, Dardânios e Troádes. Como se trata de um tema presente na tradição oral há séculos antes de sua formulação como poema, no século VIII a. C., é normal que Homero e os aedos de forma geral não precisem explicar muita coisa que já é do conhecimento do público. Costumamos dizer que o poema épico não é poema para iniciantes, mas para iniciados, visto que supõe um conhecimento anterior. Assim é que muitos heróis ou são apresentados pelo seu epíteto ou pela sua genealogia, mesmo antes de se dizer o seu nome. Aquiles é o Pelida (filho de Peleu) ou o Eacida (neto de Éaco), mas pode ser “o de pés velozes”; Odisseus é o Laertida (filho de Laertes) e o “muito astucioso”; Zeus é o Cronida (filho de Cronos) e o “ajuntador de nuvens” ou “o que se compraz com o relâmpago”; Agamêmnon e Menelau são os Atridas (filhos de Atreu); aquele é o “Senhor dos Heróis” e este o “Pastor do Povo”; a geração de Príamo são os Priamidas, enquanto Heitor é “o do capacete ondulante”...

Entre os principais heróis gregos, podemos encontrar: Ájax Oileu (o pequeno), comandante dos Lócridas; Ájax Telamida (o maior), comandante dos Salaminos; Diomedes, comandante dos argivos e dos tiríntios, ao lado de Estênelos e Euríalo; Agamêmnon, comandante de Micenas e Corinto, e comandante supremo dos gregos; Menelau, irmão de Agamêmnon, comandante da Lacedemônia, Esparta e Auriclas; Nestor, comandante de Pilos e Dorion; Odisseus, comandante de Ítaca, Jacinto e Samos; Idomeneu e Mérion, comandantes de Creta; Tlepôlemo, filho de Hércules, comandante de

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Rhodes; Aquiles, comandante dos Mirmidões, Helenos e Aqueus;

Pátrocles, amigo dileto de Aquiles; Macâon e Podalírio, irmãos

médicos, filhos de Asclépios, comandantes da Oicália.

Entre os Troianos se destacam Heitor, comandante dos Troianos;

Páris, irmão de Heitor, raptor de Helena e causador da guerra; Enéias,

filho de Anquises e Afrodite, comandante dos Dardânios; Pândoro do arco de Apolo, filho de Licaon, comandante dos Zeleus; Sárpedon e

Glaucos, comandantes dos Lícios.

Dividida em vinte e quatro cantos, que correspondem às letras do alfabeto grego18, distribuídos ao longo de 14. 412 versos, a Ilíada tem como argumento a fúria funesta de Aquiles, que se explicará a partir dos muitos episódios do poema. Cada canto, no entanto, apresenta o seu argumento, os quais podem ser assim sintetizados:

Canto I (Alfa) – A querela entre Aquiles e Agamêmnon (611

versos).

Canto II (Beta) – O sonho de Agamêmnon/ Catálogo das naus e

dos heróis (878 versos).

Canto III (Gama) – Combate singular Menelau e Páris (461

versos).

Canto IV (Delta) – Revista de Agamêmnon (544 versos). Canto V (Épsilon) – Heroísmo de Diomedes (909 versos).

Canto VI (Dzeta) – Combate Glauco e Diomedes/Entrevista de

Heitor e Andrômaca (529 versos).

Canto VII (Eta) – Combate entre Heitor e Ájax (482 versos). Canto VIII (Theta) – Interrupção do combate/Neutralidade dos

Deuses (565 versos).

Canto IX (Iota) – Embaixada a Aquiles (713 versos). Canto X (Kappa) – A Dolonia (579 versos).

Canto XI (Lambda) – Heroísmo de Agamêmnon (848 versos). Canto XII (Mu) – Assalto às muralhas gregas (471 versos). Canto XIII (Nu) – Combate perto das naus gregas (837 versos). Canto XIV (Ksi) – Zeus enganado por Hera (522 versos).

Canto XV (Omicron) – Troianos repelidos com a ajuda de

Posídon (764 versos).

18 A Ilíada se representa com o alfabeto maiúsculo e a Odisséia com o alfabeto minúsculo.

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Canto XVI (Pi) – A Patroclia (867 versos).

Canto XVII (Rhô) – Heroísmo de Menelau/ Batalha Apolo

contra Atena (761 versos).

Canto XVIII (Sigma) – Fabricação das armas de Aquiles (617

versos).

Canto XIX (Tau) – Aquiles renuncia à cólera contra Agamêmnon

(424 versos).

Canto XX (Úpsilon) – O Combate dos Deuses/A fúria de Aquiles

(503 versos).

Canto XXI (Phi) – A Verdadeira Teomaquia/ Combate perto do

rio (611).

Canto XXII (Khi) – Morte de Heitor (515 versos).

Canto XXIII (Psi) – Jogos fúnebres em honra a Pátrocles (897

versos).

Canto XXIV (Omega) – O resgate do corpo de Heitor (804

versos).

Tudo concorrerá para se mostrar a razão da fúria funesta de Aquiles, núcleo da Ilíada. Podemos observar, no entanto, no decorrer do poema, vários episódios embrionários, ligados ou não à guerra de Tróia. Como temos um poema in medias res – a narrativa abre com o início do décimo ano do cerco dos gregos a Tróia – e não há um flash-back continuado para explicar os fatos anteriores a esse décimo ano da guerra contra Tróia, o recurso utilizado são referências fragmentadas e dispersas, aludindo ao motivo da guerra, como o rapto de Helena por Páris, que se encontra, por exemplo, no Canto III (versos 442-445). Outras referências se encontram na Ilíada como a alusão ao casamento de Peleu e Thétis (Canto XVIII, versos 433-434; Canto XXIV, versos 59-63), e a alusão ao julgamento de Páris (Canto XXIV, versos 26-30).

Por ser uma narrativa envolvendo muitas lutas e muitos heróis, apesar de o seu personagem principal ser Aquiles, a leitura da Ilíada não suscita com facilidade uma estrutura para o leitor desavisado. A ausência de Aquiles por quase dois terços da narrativa, mesmo sendo o protagonista, torna ainda mais complexa essa assimilação. Muitos heróis, muitas batalhas, muito mortos, muitas genealogias desfiadas... Numa tentativa de pôr um pouco de ordem no caos, sugerimos uma estruturação da Ilíada dividindo-a em três momentos: a Querela entre

(35)

Aquiles e Agamêmnon (Canto I), a Embaixada a Aquiles (Canto

IX), o Retorno de Aquiles à Guerra (Canto XVIII).

A querela entre os dois maiores heróis gregos da guerra de Tróia leva à retirada de Aquiles do campo de batalha, porque ofendido pelo todo-poderoso Agamêmnon. A conseqüência é a perda de espaço para os troianos que conseguem acuar os gregos em seu próprio acampamento. Pela primeira vez, em dez anos de cerco, os troianos acampam fora e longe das muralhas. O recuo dos argivos conduz à embaixada despachada por Agamêmnon a Aquiles (Canto IX). Os esforços de Odisseus, Ájax maior e Fênix, bem como os presentes de Agamêmnon são inúteis, não têm força para demover Aquiles, afetado duramente em sua honra, porque o Atrida lhe tomara a sua presa de guerra, Briseida, o que distingue um herói da grande massa. O fracasso da embaixada e um relativo sucesso dos gregos (Canto X, Dolonia), em incursão noturna de Diomedes e Odisseus ao acampamento troiano, remetem gregos e troianos a novas lutas, cujo resultado é a ferimento dos heróis mais importantes – Odisseus, Agamêmnon, Diomedes, Macáon, Eurípilo (Canto XI), lutando contra as hostes de Heitor que conseguiu chegar ao acampamento grego (Canto XII-XVI) e ameaça queimar os navios, chegando ainda a queimar o de Protesilau (Canto XVI, 119-123). É com a ajuda de Pátrocles, que retorna à guerra com o consentimento e as armas de Aquiles, que se debela o fogo que poderia atingir todas as outras naus (XVI, 292-293). O ponto culminante do fracasso sistemático dos gregos é a morte de Pátrocles (Canto XVI) e a espoliação de suas armas por Heitor. Isto determina o retorno de Aquiles à guerra.

Este último momento da Ilíada é importante, pois as desavenças entre Aquiles e Agamêmnon são postas de lado (veja-se o prêmio atribuído por Aquiles a Agamêmnon no Canto XXIII, sem que ele precise participar das competições dos jogos fúnebres em honra de Pátrocles), é feita uma desculpa formal pública a Aquiles, bem como a reparação material da sua honra ofendida, com a devolução de sua presa de guerra, Briseida. A conseqüência da paz entre os dois heróis é a carnificina levado a cabo por Aquiles, cujo ponto culminante é a morte de Heitor e o ultraje a seu cadáver (Canto XXII), levando ao belíssimo e tocante episódio do resgate do corpo do filho por Príamo, no Canto XXIV.

Assim como a Odisséia é o poema do reconhecimento, a Ilíada é o livro das prolepses. Conforme já dissemos anteriormente, não

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